CONTEMPORÂNEOS, IMPROVISOS
Villa, mostrando intimidade com cuíca e violão |
O
choro, apesar de verdadeira amálgama musical, não foi um pacto de união entre os
gêneros clássico e popular. Pixinguinha nunca foi ‘erudito’, assim como
Villa-Lobos nunca foi um chorão. Verdade que o compositor escondia um violão
debaixo da cama para, sorrateiro, cair na gandaia à noite, nas rodas de choronas
dos botequins – sem falar no piano nos fundos de um bordel, cuja cafetina lhe
permitia usar. Já Ernesto Nazareth (1864-1934), autor das célebres Odeon e
Apanhei-te, Cavaquinho, apaixonou-se pelo gênero, e encheu de ginga brasileira
seus tangos, marchas, polca-tangos e outros.
Página manuscrita do Guia, com "Escravos de Job" |
Villa
bebia direto no popular, em suas pesquisas de campo e nas músicas publicadas no
Guia Prático - que deveria adotado em nosso ensino fundamental! Percebo algumas
parecenças entre as melodias de O Trenzinho do Caipira, da Bachianas n° 2, e
uma das melodias do cancioneiro popular que Villa publicou no Guia. Parece que
o ritmo e as notas da melodia dessa obra lembram a canção que traz essa pérola
de letra: “Sempre sentava na rede / pra ver meu canário cantar / agora sento na
rede / pra ver meu canário penar / Meu canário está doente / doença de
inflamação / mandei chamar o doutor / pra fazer a operação / Na primeira
lancetada, o meu canarinho tremeu / na segunda lancetada, o meu canarinho
morreu”, história assaz trágica. Benéfica é a intromissão das raízes
brasileiras na obra dos compositores ‘clássicos’, como queria Mário de Andrade!
Vinicius e Baden-Powell |
Villa
também mescla influências do mestre alemão em outra das Bachianas (a de n°4), onde
se respira o prelúdio da Suíte 3 para violoncelo, de Bach – aliás compositor homenageado
nessa linda série do brasileiro. Tanto o alemão quanto Villa parecem ter
influenciado também Baden Powell, em flerte do com a Suíte 3 de Bach já no
título dado por Vinicius, Samba em Prelúdio (1963): “Eu sem você / não tenho
porque / porque sem você / não sei nem chorar”. Através dos tempos, as
influências são tão sadias que um dia fiz uma piada brincando com Lavoisier, o
‘pai da química’: Em música nada cria, nada se perde, tudo se copia.
Altamiro Carrilho e Pixinguinha |
Pensando
nos que veem o choro mais clássico, lembro que o flautista Altamiro Carrilho
(1924-2012) chegou a gravar em disco uma versão chorona de alguns ‘hits’ de
Beethoven, Mozart e Bach. Apesar de ter um som encorpado, Carrilho era da ‘escola
intuitiva’, aprendeu a tocar sozinho em uma flauta de bambu.
O mestre Severino Dias de Oliveira |
E
por falar em talento nato, há muito tempo um rapazinho albino procurou o grande
maestro Guerra-Peixe (1914-1993) para pedir-lhe aulas de música. Chapéu de
couro e usando alpercatas nos pés, mais parecia um cangaceiro. O maestro
petropolitano, que fazia arranjos para a Rádio Tamandaré do Recife, deu-lhe
algumas lições, mas o jovem logo sumiu. Reapareceu cinco anos depois na TV, tocando
o dificílimo Moto Perpétuo, de Paganini, em passo de virtuose na sanfona. Antes
que eu me esqueça, o apelido desse garoto albino era Sivuca (1930-2006), um
gênio.
Villa e Pixinguinha |
Quem,
ao contrário, gostava de exibir intuição de músico popular era o próprio
Villa-Lobos. Em Boston, onde certa vez proferia uma palestra, alvejado por
perguntas técnicas inoportunas, para escapar Villa fez de sua formação musical uma anedota:
disse que havia se graduado na “Universidade de Cascadura”, com os mestres Donga
e Pixinguinha.
Ran Blake e Gunther Schuller |
A
música contemporânea – falo daquela de concerto escrita nos dias de hoje – mostra
semelhanças com a música popular de vanguarda quando cede ao experimentalismo.
Seja com sinais exóticos nas partituras, deixando ao músico a tarefa de
‘recompô-las’, ou sem papel, só sons. Como na Third Stream, ou Terceira
Corrente: nem clássica nem popular, um pouco de tudo. Foi outra via criada por
Gunther Schuller, há décadas herdada por Ran Blake, com quem tive um ano de aulas,
mostrando-me o caminho para aproveitar mais os ouvidos do que as notas das partituras.
O resultado tinha a ver com a moderníssima música popular, pois integrantes de
ambas as correntes se dedicam a uma mesma meta: criar novos sons.
O Ensemble Intercontemporain regido por Boulez |
Os
tipos que se entregam às vanguardas costumam ser pitorescos em todas as
nacionalidades. Em 1995 recebemos, na Escola Municipal de Música de SP, o
Ensemble Intercontemporain, conjunto fundado pelo famoso maestro Pierre Boulez
(1925-2016) em Paris (os franceses adoram conservar vanguardas, divirto-me). Pois
assim que cheguei na escola, eles já estavam lá. O clarinetista cumprimentou-me
com o cotovelo, pois devorava uma pera com as duas mãos. A cantora, esfomeada,
já havia detonado sozinha quase a metade dos lanches feitos para o grupo. O da
tuba isolou-se em uma pequena sala, e fechou as janelas para evitar a invasão
dos sons de outros instrumentos. À frente de uns quinze alunos, falava sobre
improvisos usando técnicas microtonais – frações de tom como entre um dó e um
ré. A temperatura, com janelas fechadas e aquele monte de tubistas respirando e
soprando, devia estar acima dos 40 graus, naquele verão.
O
contrabaixista do grupo, quase pisei no sujeito. É que ao entrar pela porta de
minha sala topei com ele simplesmente esticado no chão. Assustado, perguntei se
estava tudo bem, e ele respondeu apenas oui,
oui. Estava relaxando. Depois,
conduzimos o músico para a sala onde deveria fazer sua exposição. Embora espaço
amplo, ele reclamou, concordando que sim, era mais do que suficiente para tocar
- mas não para que ele pudesse dançar. Tous
complètement fous! (todos completamente loucos). E que dia exaustivo e pleno
de improvisos em todos os sentidos!