Bach, sisudo |
Já falamos, neste espaço, sobre a farta produção
do compositor Johann Sebastian Bach (1685-1750). No período em que foi
Konzertmeister (mestre de concerto), ele compôs uma cantata por mês e às vezes
uma peça para cada domingo ou feriado. (Já sua prova para o cargo de
Kapellmeister - mestre de capela - da Igreja foi tão extensa que em tudo se
assemelhava, guardadas as proporções, a uma sustentação oral no plenário para investidura
em nossos altos cargos jurídicos: os temas incluíram latim, bíblia e legislação).
Erfurt |
Bach produzia muito, mas como necessitava de boa
renda para o sustento de sua enorme prole, em 1730 chegou a escrever a um
amigo, Erdmann, queixando-se da saúde pública da cidade de Erfurt, que “lamentavelmente
havia melhorado muito”. Para piorar, completou, o saneamento havia progredido a
olhos vistos, e por causa disso já escasseavam as encomendas de músicas para cerimônias
fúnebres. (Parece não muito sincera a afirmação de Bach de que ele havia trabalhado
incessantemente a vida inteira, e que quem pegasse no batente como ele obteria
os mesmos resultados. Era falsa modéstia, ele se sabia genial: ego inflado,
escreveu nada menos que 37 peças a partir das iniciais de seu sobrenome, B-A-C-H
- em alemão, Si bemol, Lá, Dó e Si).
Fagotista, por Gerard Portielje |
O compositor era muito rancoroso e cheio das vaidades, tanto
que após um de seus intermináveis ensaios não hesitou em ameaçar na praça Geyersbach,
um jovem fagotista que teria feito à boca miúda bochichos desairosos sobre o
mestre após uma repreensão. Bach já havia registrado queixa contra ele, e, naquele
dia, na rua, enquanto alguns colegas tentavam apartar a briga, o músico brandia
um pedaço de pau e Bach passou a ameaça-lo ensaiando de sacar a espada. Valeu-lhe
uma reprimenda superior pela impaciência como chefe.
Apesar do pavio curto, o temperamento do mestre
fora do trabalho era em geral o de um bonachão que gostava de levar músicos e
amigos a um café ou cervejaria para rir, beber, cantar e tocar com os colegas.
Mas o talento de brigão era recorrente: em 1717 queria porque queria ser
Kappelmeister de Sachsen-Weimar, para cujo duque trabalhava, mas o cargo que
lhe foi negado. Vencidos os argumentos, passou do sério e foi devidamente retirado
do palácio e preso. Um mês depois, a prisão foi relaxada (palavra que soa mais
para afrouxar do que soltar)
John Taylor e suas desastradas intervenções |
Já muito idoso, Bach estava cego e apoplético, e
um cirurgião inglês, John Taylor, foi chamado para aliviar o sofrimento do
mestre. Esforçou-se para curá-lo, mas foi malsucedido, e levou-o de vez à morte
(Taylor tentou salvar Händel, dois anos depois, e igualmente falhou, deixando-o
cego). E se a ciência da época não era mais de serventia ao mestre, restou-lhe apelar
em súplicas à misericórdia do Pai. Pouco antes de se encontrar com Aquele de
dizia ter sido sua única fonte de inspiração, ainda chegou a conhecer seu neto,
filho de Johann Christian e Elizabeth. A esposa Anna Magdalena trouxe-lhe rosas,
e ele as apreciou, achou-as maravilhosas apenas tocando-as com os dedos, dizendo
que pelo tato podia sentir-lhes a beleza.
A bela, jovem e talentosa esposa Anna Magdalena |
No leito de morte, Bach pediu ao genro
Christian que pegasse partitura e pena, e passou a ditar nota por nota o coral
Com Isto, Apresento-me Diante do Vosso Trono. Também solicitou aos presentes,
ao seu redor, que cantassem Todos os Homens Deverão Morrer, coral por ele
composto sobre versos de Lutero. Com um sorriso, inteiramente cego àquela
altura, disse que, finalmente, seus olhos veriam o Salvador. Depois de tal súplica
e da devoção de uma vida inteira, o Senhor finalmente acedeu em recebê-lo,
naquele julho de 1750. Partiu de forma absolutamente conformada, entregando-se,
como parece ter antevisto na declaração de amor, um tanto mórbida, que havia deixado
no livro de notas dedicado à esposa: “estando tu ao meu lado, irei com alegria
para a morte e o descanso. E como será lindo meu fim, se tuas belas mãos me
cerrarem os olhos”.
Händel e sua espada, por Philip Mercier |
Cenas de desavenças que nada devem às de Bach foram
protagonizadas por George Friederich Händel (1685-1759). Ambos tiveram música e
brigas em comum, além de fracassos nas mãos do cirurgião John Taylor. Durante
um ensaio de uma ópera de autoria de Johann Mattheson, este, que fora tutor de
Händel, tentou afasta-lo do cravo, irritado que estava – naquela época, era
comum uma espécie de regência dividida entre o cravista e o primeiro violino,
coisa que, claro, nunca daria certo. Após alguns bate-bocas, a discussão
resvalou para a baixaria, passando de meros xingatórios aos tapas, e depois com
ambos desembainhando suas adagas. Mas a fama de impaciente e agressivo de
Händel já era conhecida desde quando, possesso de ódio, tentou atirar pela
janela Cuzzone, uma soprano de nome um tanto impróprio que se atrapalhava para
cantar uma ária da sua ópera Ottone, Re di Germania, em um ensaio.
[O compositor escapou de ser vítima fatal de um golpe certeiro de seu antigo mestre, salvo de uma espadada graças a um dos enormes botões de sua capa – coisa de filme “caubói-espaguete” italiano, como o herói Giuliano Gemma, em O Dólar Furado, na cena em que sobreviveu a um tiro certeiro no coração, felizmente escudado por uma moeda no bolso esquerdo superior de seu colete – daí o título do filme. No caso de Händel, deve tê-lo ajudado também sua protuberante barriga a almofadar o botão do sobretudo contra um golpe da ponta da espada. Ajudou a salvá-lo de alguma injúria maior ser um comilão assumido e inveterado – mestre, além da música, em instrumentos como o garfo e a faca].