O filme Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu! (Airplane!), com Lloyd Bridges (Aventura
Submarina), Leslie Nielsen (O Destino do Poseidon) e outros, lançado em 1980,
foi um enorme sucesso. Aquele humor tipicamente americano da Paramount, gags e
esquetes de praxe. Mas em alguns momentos não dava para segurar a gargalhada, como
no esquete em que dois jovens negros conversavam naquele ‘dialeto’ bem Bronx.
Ao lado deles, duas freiras, uma intrigada com o idioma em que os vizinhos
estariam conversando e outra, a quem a primeira indagou: do you speak jive? (jive seria
aquele dialeto, também sinônimo de curtição). A segunda respondeu yes, e passou
a ‘traduzir’ a conversa para o inglês.
Rua do Harlem, NY |
O dialeto complicado dos viajantes
nova-iorquinos ia ao extremo de quase não se entender o que estavam dizendo.
Mas ao andar e ouvir o que se fala pelo Bronx ou o Harlem de NY, ou ainda o Roxbury
de Boston e outros bairros ou distritos com cultura própria pode não ser lá muito
diferente. Nem vale tentar aqueles tradutorezinhos eletrônicos, o aparelho pode
dar um tilt (apresentar problema
eletrônico), palavra que também pode significar algo como ‘me deu um troço’, ou 'confundi-me'.
As redes sociais e programas de
mensagens do mundo inteiro, como o Facebook e o WhatsApp, se encarregam de
disseminar dialetos, slangs (gírias) e corruptelas, do inglês ao português. No
celular, cuja tela e teclado são mínimos, os jovens usuários tornam-se virtuoses em escrever rápido. E curto. (Disseram-me
que os menores de 25 usam os dois polegares para digitar, e os mais velhos costumam
ser mais lerdos, usam um indicador). Palavras são encolhidas, por força de uma
desconhecida urgência, e abreviaturas são formadas aos borbotões, como vdd
(verdade), fora aglutinações de palavras, como em ‘talquei?’ (está ok?). Eis uma
brevíssima lista dessas curiosidades minimalistas, elaborada com a ajuda dos
universitários, meus filhos:
agr, agora
asap, as soon as possible, o mais rápido possível
bj, beijo
blz, beleza
DIY, do
it yourself, faça você mesmo
ctz, certeza
dms, demais
dmr, ‘demorô’
fds, fim de semana
gnt, gente
hj, hoje
Idk, I
don’t know, eu não sei;
lol, laughing
out loud, rindo alto
mds, meu Deus
omg, oh,
my God, oh, meu Deus
pdc, pode crer
pls, please
plmdd, pelo amor de Deus
pq, por que
qdo, quando
qq, qualquer
sry, sorry,
desculpe
tlg, tá ligado?
tbm, também
tc, falar com
U R, you
are, você é, você está
ur, your, seu
U2, you
too, você também
vdd, verdade
wtf, what
the fuck (não publicável)
wth, what
the heck, que diabo.
Miguel Oniga, Regina Casé e eu (Jornal do Brasil, 1971) |
Lembrei-me de um episódio da época de
colégio. Não, claro que não havia essas traquitanas eletrônicas, existia apenas
o mundo para inventar. Eu e um amigo, Miguel Oniga, músico e dublê de ator com
uma passagem pela Globo e do qual nunca mais ouvi falar, inventamos uma
brincadeira, à qual demos o nome de ‘neobabelismo’ – brincando com Babel,
cidade da Mesopotâmia onde, segundo o Gênesis, 11, foi construída uma torre alta
a se perder de vista, para que seu cume tocasse os Céus. Detalhe: toda a
humanidade – leia-se: os povos conhecidos na região – falava um único idioma. Deus
confundiu suas línguas, a construção da torre foi embargada e espalhou os homens
por toda a face da Terra. Diz a lenda popular que aquela construção era tão
alta que começou a desmoronar, e todos rolaram e tiveram suas línguas torcidas
na queda, daí a multiplicação de idiomas e dialetos.
Street dance: hip-hop |
À parte a beleza do Gênesis, voltemos
ao neobabelismo. A nossa brincadeira era tornar a compreensão de um texto
impossível, ou escrever muitas linhas e não dizer quase ou absolutamente nada.
Ou ainda pegar um texto e complica-lo de tal forma que só nós o entenderíamos, combinando
palavras inventadas. “A conspurcação etológica é uma oclusão hiperbólica da ontologia
meridiana”. No caso, nada.
Cena de rua: Bronx |
Os dialetos tribais, como os dos
guetos de NY, são uma forma de os grupos se organizarem em núcleos fechados para
se defenderem. É claro que falar só slang (gíria), como no episódio das
freirinhas do filme, não é para qualquer um. A tribo do hip-hop (‘salta-quadril’,
algo assim) e seu dialeto, surgidos no South Bronx, formam uma cultura à parte:
MCing e DJing, graffiti, danças como o b-boying e body-popping. Ali tudo
é hive – colmeia, agrupamento de pessoas, dizem all hive, no jive. Esta
última, palavra surgida na origem de certo tipo de blues dos anos 1940.
Sly & The Family Stone. Radio City Music Hall, 1974 |
Um cidadão não se insere em uma comunidade dessas sem conhecer-lhe
o dialeto. São grupos enormes, e hoje bem espalhados, com linguagem e sotaques
próprios, formando núcleos bem coesos. No início dos anos 1970, em NY, fui
assistir a um show do histórico Sly & the Family Stone, ícone do funk real.
Escoltado por Yinca, um baixista negro do Harlem, senti-me à vontade. Mas não
entendia nada do que falavam ao meu redor, às vezes uma ou outra palavra, mas o
meu vizinho de poltrona me ajudava. Parece que entre o Bronx e o dialeto da
estenografia eletrônica de hoje ergue-se de uma outra torre de Babel mundial,
tudo em nome da modernidade e da globalização – embora o mundo desde que existe
seja um globo.
Mudou a velocidade de transmissão de informações e com ela o que
anda nas cabecinhas dos usuários desses gadgets ou gizmos. Globalização,
palavra tão desgastada, está em voga na TV, nas universidades e nos bares, e chegou
com os economistas a Davos 2019. Globalizemos. Mas querida, não encolha nossos
idiomas, parodiando outro título.
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