O jardim "do seo Francisco" |
Francisco de Souza mora em
Petrópolis. Negro, magro, idade não sabida, jardineiro por profissão.
Caprichoso, cuidava do jardim da casa dos meus pais e de outras no entorno do
bairro. Perfeccionista, apegava-se ao trabalho com carinho, mas talvez antes de
jardineiro fosse verdadeiro artista. Depois que meus pais se foram, a casa foi
vendida e Francisco não quis saber de continuar, desistiu. Talvez até da
pintura, sua vocação nas horas de descanso.
Uma de suas telas, de 60 x 40cm em
tinta acrílica, adorna a entrada da minha casa. É um assombro. Primitivista?
Talvez, mas certo surrealismo não é estudado, saía de dentro dele naturalmente.
No quadro, descrevia o jardim do jeito que o via: plantas e flores enormes,
maiores algumas vezes do que as pessoas (insignificantes diante do poder da
natureza que ele conhecia). No canto esquerdo, a pequena figura de um
clarinetista sentado sobre uma raiz. Ainda menor, perto dele, um violinista que
lembra um duende sentado dentro de uma vagem seca de fava. Ao centro, diminuta,
uma flautista, e à direita dela, um homem toca um enorme violão na vertical
exatamente como eu segurava o contrabaixo. Surrealista? Mas com certeza nunca ouviu
de Salvador Dali, Max Ernst ou Joan Miró. Surreais em Francisco eram os olhos com
que ele via a natureza, imponente, poderosa e plena de mistérios e fantasias.
Eu lecionava na ECA/USP quando
conheci Jonas, um porteiro do prédio central. Certo dia, descobri que ele
também cultivava o hábito de pintar. Encomendei-lhe uma tela que retratasse um violoncelista.
Quando a vi, fiquei fascinado com a paisagem campestre, um céu bem azul encimando
o verde, pinceladas de certo sotaque francês. Mais à frente, uma cerca baixa a
separar essa visão pastoral de um estranho violoncelista e seu instrumento, meio
que se apoiando sobre o joelho direito. Pernas e braços avantajados e algo distorcidos,
de longe me remete ao magnífico Abaporu, da Tarsila do Amaral, mas não imagino que
Jonas tenha visto alguma reprodução da obra-prima modernista em algum lugar. O
braço direito e o arco descrevem uma curva, quase um grande finale à maneira do virtuose Mstislav Rostropovich (este
tenho certeza de que ele não conhecia. Ou penso eu que não). No canto, assinou ADJonas,
sem data, presumo que por volta de 1996.
Tanto gostei que lhe pedi outra obra,
sugeri que fosse mais uma vez sobre um violoncelo. Prazo falado, prazo cumprido,
e lá estava meu outro instrumentista, de incrível semelhança com o primeiro,
até na cabeça, abaixada e em proporção menor em relação ao resto do corpo,
parece que em súplica e submissão (à natureza, tal como Francisco). Só que
agora essa versão basicamente transforma a paisagem campestre em ondas do mar
que, músico ao centro, se derrama sobre um piso quadriculado, azulejos cor de
tijolo e azul. À direita do violoncelista, as ondas avançavam mais do que as do
lado esquerdo, num deslocamento curioso sobre onde que deveria ser areia, uma espécie
de tabuleiro bem à maneira da op-art (Arte Óptica), lembrando o húngaro Victor
Vasarelli. A água do mar tem o músico como seu Moisés, divide-se e faz dele seu
costado para rebentação. Essas obras preciosas de Jonas merecem estar vizinhas,
e o lugar ideal, pensei, seria a escada de madeira que leva ao mezanino. A
subida é uma promenade, um passeio como
o de Viktor Hatmann em Quadros em uma Exposição, descrito musicalmente por
Mussorgsky.
Henrique Boliani, figura querida, também
era porteiro, mas na Escola Municipal de Música do Theatro Municipal de São
Paulo (fundada em 1969), onde fui diretor. Apesar de às vezes resmungão e ranheta, escusável por
difíceis problemas familiares, era sempre amigo, era o meu faz-tudo em casa, nas
horas vagas. Descobri que também tinha um grande talento como artista plástico:
sobre um antigo LP, bolachão de baquelita de 78 rpm, pintou-me tocando um
violino que eu não tocava, baseou-se em uma foto de uma matéria do Estadão em
que posei a pedido do repórter, instrumento ao ombro.
Boliani pintou para mim a obra-prima
que terminou virando capa do meu livro O Arco (Ed. Vitale), escrito a partir de
minha tese de doutorado na USP. Toque cubista, cores fortes, expressava talvez músicos
que costumava ver pela escola. Uma obra tão bela que o profissional que fotografou
a capa do livro teve medo de leva-la para o estúdio, poderia até ser roubado,
disse. As cores fortes em manchas no violoncelo se repetem no fundo, projetando-o
para a frente em plano. Assina HBoliani, data pouco clara.
Henri Rousseau |
Ora, falei de um jardineiro e dois
porteiros fazendo o que se chama arte naïve,
embora de ingênuo neles eu não veja nada. Nem primitivistas, coisa mais para os
flamengos, os italianos do século 15, ou o autodidata Henri Rousseau, do séc.
19. Ou espontâneos como Van Gogh. Mas quando a pintura tem uma história por
trás, como as minhas, há um valor intrínseco, inestimável por quem a possui.