Descrevo como cidadão, claro que não-especialista,
um passeio pelos espinhos das crises que conheci, em cada etapa da vida.
Afinal, foram tantos reveses financeiros e políticos, angústias pouco
conhecidas nos países desenvolvidos! A partida é de até eu sair do Brasil, em
1977: números nada confiáveis, índices de inflação maquiados pelo expurgo dos itens
chamados sazonais ou que imporiam danos à mentira oficial. Cifras embelezadas por
fórmulas magistrais, mas a coisa não ia bem. Já entre o 1968 do AI-5 e 1974, houve
um estratosférico investimento em infraestrutura que abriu um imenso rombo no
Tesouro, camuflado por benefícios indiretos ao povo, o “milagre brasileiro”. Como
disse Tom Jobim, ‘o Brasil não é para principiantes’. Todos têm de ser um pouco
de tudo, de médico e de louco, de técnico de futebol e economista.
Deixei o país naquele
obscuro cenário, governo Geisel. Nos anos de exterior as rádios de ondas curtas
ironicamente me informavam bem mais do que a censura permitia no Brasil. O gen.
Golbery, eminência parda um pouco mais esclarecida do regime, passou ao Médici o
contraste entre os números oficiais e a pobreza: “A economia vai bem, mas o
povo vai mal”. Já o ex-ministro Delfim Netto escancarou a prática concentradora
de renda vigente: “Vamos primeiro fazer o bolo crescer, para depois repartir”.
Sacco e Vanzetti (ao centro) |
Nos
EUA, um dia recebi de minha mãe, pelo correio, exemplar de um semanário com o
Lula na capa, um sindicalista liderando a massa em greve, como no filme Sacco e
Vanzetti. Era um sinal de que já começava a abertura ‘lenta, gradual e
irrestrita’. De volta ao Brasil, a posse do Sarney, opção simpática aos
militares criada para fazer média na dobradinha com Tancredo, que preferia ter
como vice o Antonio Ermírio de Moraes. Mas o plano Ermírio vazou e o maranhense
dos ‘marimbondos de fogo’ foi para o banco de reserva. Tancredo morreu e tomou
posse Sarney, parte daquele bem-bolado com o ‘antigo regime’. O governo, ao ‘entregar
a rapadura’, deixou nas mãos de Sarney uma inflação que chegaria a 84,3% ao mês.
Maestro Eleazar de Carvalho |
Eu guardava as minhas contas mensais em
uma pasta dividida como um calendário, para pagá-las apenas no dia de cada vencimento:
deixava minha conta corrente quase zerada, mas a aplicação no overnight dava
fácil 1% ou mais ao dia! Eu tinha um bom emprego, mas e o futuro? Preocupado,
perguntei ao maestro Eleazar de Carvalho, mestre dos mestres, o que ele achava.
Ele cravou uma lapidar, sempre rebobinada em minha cabeça como fosse um filme: “professor,
nunca vi um país fechar, mas pode sempre haver uma primeira vez”. Era 1985.
Posse de Collor: empáfia e prepotência |
O Brasil não fechou, e Sarney passou
a criar factoides, como os seus ‘fiscais’, insuflando o povo com o questionável
instinto policialesco de denunciar remarcações de preços no comércio. Em 1990, o
país votou pela primeira vez em 26 anos por pleito direto, elegendo um dândi,
Fernando Collor, um moralista ‘contra a corrupção’, eterno discurso que seduz as massas desiludidas e cansadas. O
‘caçador de marajás’ mais adiante cairia na rede que fingira armar na caça aos lapinas
do dinheiro público. Com apenas três meses de governo, a ministra Zélia Cardoso
de Mello lançou um plano (que deveria se chamar “Merlin”) a fim de salvar a
economia. Deixou perplexo até o Fidel Castro, ao sequestrar uma quantia de cada
conta bancária acima de 50 mil NCz$ (cruzados novos), hoje R$ 17 mil, às vezes
poupança de vida. Esse valor foi decidido por sorteio, regado a bom uísque na
proa de um iate em Angra, no Rio. Alea
jacta est, como disse Júlio César, enfrentando a correnteza e o inimigo,
para chegar a Roma e ser sagrado imperador. Mas o alea (do grego: dado de jogar, sorte) de Collor foi aleatório, imprevisível
e inconsequente. Eu tinha dinheiro confiscado na poupança mas havia autorização
para sacar quem comprovasse dívidas: salvaram-me dois talões de boletos para pagar
um terreno.
Descíamos a ladeira aos trancos e
barrancos, tiraram três zeros aqui, outros três depois, ilusão de que mais as
moedas valem quanto menor for o número de dígitos. E, jogada de mestres cogitada
já no tempo de Itamar, concretizou-se o Plano Real (mérito do FHC!). Com riscos
calculados e a paridade entre a nova moeda forte e o dólar, sossegaram a besta-fera
da inflação.
A Sagração da Primavera: Constituição Federal, outubro de 1988 |
Hoje, fala-se outra língua: um
desemprego que já vinha de antes, as finanças do país afundando nos lodos
abissais da Previdência, dos enormes juros da dívida pública e dos gastos
descontrolados da máquina administrativa. A Previdência tem de mudar, e rápido,
mas não como gestada nos gabinetes palacianos. Uma reforma que não sacrifique
ainda mais os pobres, idosos e o povo em geral. Só que a lábia corporativista e
eleitoreira de bancadas do Congresso haverá, fatalmente, de criar obstáculos e
piorar qualquer texto, à maneira (mas sem o discurso e o charme) da
Constituição de 88, uma vistosa colcha de retalhos.
Reformar a Previdência parece o canto
da sereia, panaceia para todos os males. Porém, maiores são os juros da dívida
pública, assunto por demais intricado para os mortais, e o urgente freio nos gastos
públicos, na máquina administrativa dos três poderes e das Forças Armadas,
mordomias e privilégios que deverão resguardar a qualquer custo: os que detêm o
poder político estão de mãos dadas com os mandachuvas do poder econômico.
Um dia chamarei meus netinhos, quando
puderem entender, para explicar o árduo caminho do sucesso da nossa economia.
Ou seu retumbante fracasso.
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