Noel Rosa |
/ vá dizer ao charuteiro / que me
empreste uma revista / um isqueiro e um cinzeiro”. Noel Rosa (em parceria de
1935 com Vadico), embora médico de formação, era um fumante inveterado. Fumava
tocando e até mesmo cantando, com o cigarro no canto da boca ou entre os dedos
anelar e médio da mão direita. Neste samba, Conversa de Botequim, fala um exigente
freguês de um ambiente que Noel conhecia bastante bem, o boteco. Sempre um cigarro
e a caixinha de fósforos à guisa de instrumento de percussão na roda da mesa
pelas mãos de muitos sambistas, como Cyro Monteiro.
Jean-Paul Belmondo |
Frida Kahlo, Jean-Paul Belmondo, Cid
Charisse, Marlon Brando, James Dean, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, uma
legião de artistas e intelectuais carregava o charme nada discreto do cigarro
sempre à boca ou às mãos. Clarice por pouco não morreu, em 1967, quando caiu
dormindo, como de costume. Jogou-se sobre a cama, cigarro na mão, e logo veio o
fogo nos lençóis. Queimaduras na mão e pelo corpo lhe deixaram marcas, mais uma
cicatriz da memória já flagelada daquela menina judia ucraniana que terminou no
Brasil para tornar-se uma brilhante e amada escritora e intelectual brasileira.
O cigarro era acessório tão charmant que, em 1970, Gérson, estrela
do tricampeonato mundial de futebol, foi convidado para atuar em um comercial,
hoje de triste memória. Na TV, ele afirmava que “o brasileiro gosta de levar
vantagem em tudo”. Propaganda cujo lema, para infelicidade do tricampeão, virou
sinônimo de pilantragem, falcatrua – a Lei de Gérson. Foi péssimo para a imagem
do jogador, o estigma nunca o abandonou.
No final daquela década, outra
propaganda de uma marca famosa de cigarros, dessa vez trazida dos EUA, mostrava
um caubói-galã, ‘o homem de Virgínia’, fumando montado em um lindo cavalo.
Associava o cigarro à virilidade, e de tabela a um certo prazer fálico. Em
outro anúncio americano, uma linda mulher, encostada em um carro e fumando com
uma piteira, fazia bico e soltava baforadas enquanto lá no fundo, meio nebuloso,
meio sfumato à Michelangelo, a imagem
de uma senhora às vezes carregando um carrinho com feno, outras tirando a neve
da calçada com uma pá. Em miúdos, aquela linda mulher fumando em primeiro plano
era a modernidade, contra o fundo de um passado de submissão. Encimando o
anúncio do cigarro slims feminino, a
frase you’ve come a long way, baby
(você vem de longe, garota).
Fumódromo em aeroporto |
Mas o apelo do cigarro foi declinando
no mundo. Nos EUA, não se fuma senão em lugares como ‘fumódromos’, feitos para
isso em locais como aeroportos. Salas lacradas, com má ventilação, de fora dá
para se ver a estufa do veneno, todos baforando sem parar. No enorme campus Universidade
de Richmond, em lugar algum se fuma. Em NY, jogar bituca na rua dá multa e as
pessoas quando se conhecem costumam perguntar: are you a smoking person? (você é fumante?), o que pode encerrar
ali mesmo qualquer conversa ou futura relação, caso uma delas seja
fumante. Fumar passou a ser um vício
caríssimo: a média nacional do preço de um maço nos estados chega a US$ 8.50,
ou R$ 33,00. Em NY, US$ 10.85, ou R$ 42,31 cada (e há quem fume dois ou três
por dia!). É para frear mesmo o tabagismo. Até estancar.
Portal: drauziovarella.uol.com.br |
Um conhecido artista e figura notável
cujo nome prefiro guardar por não ter a matéria comigo, disse que de todos os
vícios o do cigarro é o pior. Mata, mas não traz sequer prazer ou ilusão como
outras drogas, a exemplo da heroína. Curto e grosso. O Dr. Dráuzio Varella
alertou que já teve pacientes de enfisema que fumavam pelo orifício da
traqueotomia no pescoço, tamanha a angústia da abstinência. E também já viu
muitos morrerem por tabagismo, mas maconha, nunca, sempre bem embasando suas
opiniões. Conheci um senhor, músico, que estava fazendo radioterapia, o câncer
havia tomado os dois pulmões. Só tinha um desejo, disse, doutor, quero fumar,
nem que seja a última vez. O médico comprou-lhe um maço, fechou a varanda do
quarto para não entrar fumaça e deixou-o lá fora, entregue ao prazer do vício, à
sombra da morte.
Foto de Proibindo o Proibidão (créd.: veja.com) |
Escrevi há dois anos um artigo de
três páginas sobre o funk, Proibindo o Proibidão, para uma revista de
circulação nacional. O senador Romário seria o relator (e era voto contra) de
um projeto de lei ridículo que visava a proibir bailes funk, pois neles que
corriam soltos drogas, sexo livre, prostituição de menores e todos os males de
que o mundo padece. Ou seja, queriam proibir o efeito apenas, o sintoma, sem
atacar a doença. O projeto foi engavetado e nem entrou em pauta de votação.
Agora, o país se vê na iminência de ver
baixarem o valor do IPI, imposto que encarece o cigarro em 80%, a pretexto de combater
os terríveis contrabandeados. Não é preciso ser especialista para vislumbrar que
o ilícito continuará, os contrabandistas também baixarão o preço, a margem de
lucro dos envolvidos já é enorme. Mais barato, o apelo do cigarro será maior, e
fumar será mais acessível para adolescentes. A medida é um presente bilionário
que engordará as grandes indústrias e o agronegócio do ramo, são 16 bilhões
anuais em vendas contra 57 bilhões gastos direta e indiretamente em saúde.
Termino este artigo da mesma forma que concluí o texto sobre o funk. Há uns 20
anos, um congressista tentou lançar um projeto de Lei para lacrar os
porta-malas de carros, pois era ali que trancavam sequestrados. Como querer
acabar com o crime proibindo bailes funk, ou o contrabando de cigarros
reduzindo o IPI. Seria dourar a pílula sem curar os males.
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