Gil (Varela Noticias) |
Com essa provocação musical logo nos
primeiros versos, Gilberto Gil compôs Cultura e Civilização com fina ironia:
“somente me interessam / contanto que me deixem / meu licor de jenipapo / o
papo / das nites de São João”. Orgulhoso
de sua terra, a Bahia, das coisas mundanas e simples, traz a reflexão conceitual
típica de suas músicas. Em frente, torna ainda mais clara sua ótica: “somente
me interessam (...) / contanto que me deixem / ficar com a minha vida na mão”. O
poeta afirma necessitar de pouco, seu jenipapo, seu coentro, viver a vida lhe
bastam.
Pensemos a Cultura tomando, por um
lado, a definição clara e simples da ASA (Associação Sociológica Americana):
“linguagens, costumes, crenças, regras, arte, conhecimento, identidades
coletivas e memórias desenvolvidas por membros de todos os grupos sociais que
fazem seus ambientes em sociedade terem um significado. Narrativas sociais,
ideologias, práticas, gostos, valores e normas” (Trad.do A.) Por outro, o
teórico, esteta e filósofo marxista húngaro Gyorgy Lukács (1885-1971), em sua ponta
– saudável ver duas abordagens -, agregava Cultura a valores essenciais para sua
filosofia, a par da luta de classes e, consequentemente, rumo ao socialismo
revolucionário. Seja qual for a abordagem do assunto, no caso um técnico e
outro impregnado de ideologia, percebe-se a real dimensão da Cultura entre nós.
Woodstock: 50 anos |
Convido o leitor a uma breve
digressão. A Cultura é de tamanha importância que podemos entendê-la como algo imenso,
que engloba a Educação, entre outros pilares de uma sociedade. Razão para
discordar do mote ora em voga “Cultura é Educação”, para, ao contrário,
compreender Educação como fazendo parte do conceito mais amplo de Cultura. Percebemos
isso em poucos períodos, talvez com Pedro II, os projetos de Villa-Lobos e um
pouco com JK. Fora tentativas espontâneas isoladas, como a eclosão da revolução
cultural do Ocidente, a partir de 1968, um caldo universalista que durou quase duas
décadas, apesar da violenta censura no Brasil e outros países da América Latina
na época - caldo universal este fervilhante em criação, crítica e renovação, que
transformou os rumos e costumes de uma juventude mundialmente decepcionada com o
seu presente.
O binômio Cultura e Civilização traz certa
sinonímia entre uma e outra palavra, entrelaçam-se de modo a nunca terem seus pontos
desfeitos, estão enraizadas de modo tão profundo que nem o mais potente dos
tratores que devastam florestas pode arrancá-las. O leitor deve ter se perguntado
sobre a música do Gil como introdução a este artigo. Bom, não sei se o tema
lembrou-me da poesia ou se foi a letra que me trouxe a ideia, possivelmente uma e outra tenham emergido do meu
subconsciente devido ao estímulo de fatos noticiados recentemente, o que não raro
acontece.
UFRJ: colapso (Hora do Povo) |
Especialistas observam essas questões
via óticas as mais diversas, como as sociológicas, antropológicas, estéticas,
históricas, artísticas, psicanalíticas ou pedagógicas. Todas na alça de mira do
obscurantismo que corre solto. E é exatamente disso que falo: quando a Cultura
é relegada a um plano inferior e praticamente esquecida, arrasta para baixo o
fio da história, a linha evolutiva da Civilização e, em particular no Brasil, soterra
na vala comum uma de suas musas prediletas, a Educação. De forma direta, cortes
na Cultura e na Educação têm sido a tendência nos países onde elas se tornam
débeis por indesejáveis, e, de forma mais acentuada, no Brasil, em todas as
esferas e instâncias. Se a pesquisa de qualidade da Capes foi inviabilizada, algumas
universidades podem ser a bola da vez, a exemplo do corte profundo na modelar UFRJ,
que viu seu orçamento cair, em valores atualizados, de 582 milhões, em 2014,
para 361 milhões, em 2019 – quase 38% de perda!
Hospital Universitário da USP (Correio Popular) |
Além da missão precípua das universidades
públicas atingidas, perde também a insubstituível pesquisa criadora de novas vacinas,
novas drogas e métodos de cura, descobertas na aplicação de novos materiais, energia,
meio ambiente e preservação das riquezas naturais, além de nossa própria
história em si. Do lado prático, afetam igualmente ou sustam atendimentos hospitalares,
de urgência, psicológicos, odontológicos, veterinários, bibliotecas, museus, e,
claro, as artes e a produção de Cultura, em geral. Pior ainda, puxam consigo as
escolas de primeiro e segundo graus, tornando inevitável o surgimento de gerações
condenadas à fraqueza de conhecimento, forçada a se compromissar com o
analfabetismo político. Dane-se a polis, o país.
Bertold Brecht |
Cito, e é mais do que oportuno, o
dramaturgo Bertold Brecht (1898-1956), em seu lapidar O Analfabeto Político: “O
pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa
dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do
feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das
decisões políticas. (...) Da sua ignorância política nascem a prostituta, o
menor abandonado e o pior de todos os bandidos, o político vigarista, pilantra,
corrupto”.
Educação e a Cultura sufocadas e sem
perspectivas lobotomizam cérebros pensantes. O antropólogo francês Claude
Lévi-Strauss, que viveu no Brasil por três anos, observou, a partir das
culturas indígenas, o sentido de progresso e Civilização modernos (Tristes
Trópicos, 1955). Pelo andar da carruagem, prezado Gil, ficaremos no coentro, no
jenipapo, levando a vida e dizendo ‘a Cultura, a Civilização, elas que se danem’!
Ou nãoʔ
O milagroso e adorado jenipapo |
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