Baiana, da poeta Cecília Meireles |
O sambista
Geraldo Pereira foi assassinado na boêmia Lapa carioca com um soco no fígado desferido
pelo lendário Madame Satã, um travesti de shows da noite e de pouca e azeda conversa,
bom de briga. Pereira foi o criador do chamado samba do telecoteco, letras
cheias de sílabas às vezes difíceis de serem encaixadas no ritmo sincopado. Influência
nordestina, coisa de embolada, embora tenha nascido em Minas. Mais comedido na
prosódia é o samba Falsa Baiana (1944), brincadeira sobre a mulher de um amigo,
para lá de desajeitada na fantasia de balangandãs, brincos de argola e turbante,
em plena segunda de carnaval: “A falsa baiana quando entra no samba / ninguém
se incomoda / ninguém bate palma /
ninguém abre a roda / ninguém grita oba
oba / salve a Bahia, senhor do Bonfim / (...) mas a gente sabe quando uma
baiana samba direitinho / e mexe e remexe, revira os óinho / dizendo eu sou
filha de São Salvador”. A falsa baiana do amigo inspirou esses versos que
fizeram sucesso até décadas após, na crista a Gal Costa. Caetano aproveitou a
deixa de Pereira e saiu-se com A Verdadeira Baiana: “sabe ser salsa / valsa e
samba quando quer...”
Bolero (Hipsonfire) |
O falso, para Aldir
Blanc, letrista de João Bosco, é o charme discreto do ‘brega-kitsch’ da moça
que, tirada para dançar, fez o coração traiçoeiro do rapaz bater “mais que o
bongô”, ela sussurrando-lhe ao pé do ouvido os passos da dança, “são dois pra
lá, dois pra cá”. Um lindo bolerão, daqueles de maracas e tudo, gravado
magistralmente em LP de Elis Regina, em 1974: “No dedo um falso brilhante /
brincos iguais ao colar / e a ponta de um torturante / bandeide no calcanhar”. Com
direito a observar o beberico ‘social’ da moça, que escondia o gosto amargo de whisky no falso doce do guaraná. Décadas depois
veio o roqueado Falso Samba, do grupo Cainã, que canta a moça de falseio sedutor:
“já disse o seu nome e você nem percebeu / que a sua falsidade afeta tolos como
eu”. Faz o trocadilho, “a sua falsa idade / pra mim já deu”, e se despede, “bye,
bye”.
Os doutos homens da lei que me corrijam, mas o falso
testemunho, no Brasil, é chamado perjúrio, coisa para
lá de comum. O cidadão que se cala – ‘só falo em juízo’ – em um inquérito policial
tem esse direito (faz eco à famosa 5ª emenda americana, o direito de permanecer
calado até julgamento). Mas se o meliante falou, depois talvez de algum
‘telefone’ na frente de uma câmera de TV. Instruído, logo vai negar tudo perante
a autoridade judiciária, dizendo que bateu com a língua nos dentes sob coação. Mais
diretos, alguns países
da tradição greco-romana, como Itália e França, proíbem suspeitos de serem
ouvidos sob juramento. Assim não cometem perjúrio, independentemente do que venham
a dizer durante o processo.
Entre nós também é
criminalizada a falsidade ideológica, descrita no Art. 299 do Código Penal. Trata-se
de quando o cidadão omite, “em documento público ou particular, declaração que
dele deveria constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou
diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar
obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”. E existe a
‘falsa carteirada’, o malandro que se apresenta como autoridade para tirar proveito,
ou simplesmente faz-se passar por outra pessoa para obter vantagem. Se para
isso empregar um documento falso, ai, ai, a casa cai mesmo.
Diferentemente do
Brasil, nos países cujo direito é dito anglo-saxão, a exemplo dos EUA e Reino
Unido, perjúrio seria a falsa declaração sob juramento, seja verbalmente ou por
escrito. Não é crime de perjúrio mentir sobre a própria idade ou de terceiro,
salvo se o ato influenciar um resultado legal, como antecipar uma aposentadoria,
entre outros.
Eu mesmo senti na
pele o rigor desse tipo de juramento. Quando recebi meu visto permanente nos
EUA passei pela experiência (era o
chamado green card, hoje cinza mas ainda dito verde). Mão sobre a Bíblia, a
outra erguida e espalmada, fui interrogado por uma oficial. Uma série de
perguntas sobre se já tive qualquer ligação com o tráfico ou a guerrilha, várias
coisas do tipo. Não sem antes ser avisado do rigor da pena caso mentisse sob
juramento.
Já em locais e países
de mais longa tradição, como Queensbury, o 2° maior estado da Austrália, federação
criada 1901 mas ainda parte do Commonwealth ao Reino Unido, a lei é mais radical:
o crime de perjúrio pode levar à pena máxima, reclusão perpétua.
É cada vez mais comum alguém ou a imprensa apontar
dados falsos inseridos no currículo de um cidadão, títulos que o ilustre nunca
teve, mestrados e doutorados que nunca fez, e, em alguns casos, até
certificados nebulosos, como aqueles obtidos na Internet em sites que vendem
todos os tipos de fake certificates de escolas e universidades, existentes ou
não. Aí a coisa complica. O cidadão pouco conhecido no meio torna-se expert em
assunto que mal conhece, mas a ‘falsa baiana’ acadêmica volta e meia acaba
sendo descoberta, e se fizer o autor cair no ridículo já está muito bom, já que
pode levá-lo à desgraça e execração em sua comunidade, virar notícia e meme de
redes sociais, fazendo o autor da falseta carregar a tatuagem de vigarista o
resto de sua vida.
[Disse
Shakespeare, em All’s Well that Ends Well (Tudo vai bem quando termina bem): “Ele
afirma não manter juramentos, para quebra-los é mais forte do que Hércules.
(...) Tem tudo o que um homem honesto não deve ter, e nada do que um homem
honesto deveria ter”. (Trad. Livre do A.)]
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