Seria cegueira
intelectual ignorar o pensamento de um líder por seu passado ou ideologia. Reflexões,
estudos e aforismas de Bonaparte são fundamentais à compreensão da nossa
civilização a partir do turning point, a Revolução Francesa. Ao leigo com formação básica convém fazer um
passeio sobre tema, mas é essencial desprender-se de conceitos e pré-conceitos.
As análises críticas de Bonaparte representam uma luz tanto sobre a visão do
passado quanto da atualidade - e uma perspectiva do futuro. (O compositor Arnold
Schönberg falou sobre investigar o que foi feito no passado, compreender o que
está acontecendo no presente para antever os rumos daquilo que,
presumivelmente, deverá acontecer).
Le Brumaire: ikustração |
Três livros,
três abordagens. O primeiro deles é O 18 Brumário de Luís Bonaparte¹ (Der 18te Brumaire des Louis Napoleon, em alemão). No calendário pós-Revolução
Francesa, Brumário era o segundo mês (22/10 a 20/11) do ano VIII, e 18 o dia do
golpe. O texto se debruça sobre os fatos que desembocaram na chamada Revolução de Fevereiro de 1848 - “A primavera dos povos” -, eclosão de revoltas em boa
parte Europa que na França culminou com um golpe de Luís Bonaparte (Napoleão
III), em 1851. Como seu tio, ele derrubou a República e fez sagrar-se imperador.
(Beethoven, entusiasta republicano, em 1804 rasurou a dedicatória na partitura
original feita a Napoleão I na Sinfonia nª 3, Eroica. Para ele, seu
herói morrera ao se ungir imperador).
Dedicatória na partitura: rasurada por Beethoven |
Lênin: outubro de 1917 |
‘O 18
Brumário’ é um estudo histórico e filosófico do alemão Karl Marx (1818-1883). Indispensável
lembrar essa e outras contribuições do autor à história, à filosofia e à economia,
de que alguns exemplos são os conceitos de Práxis, um materialismo oposto ao
positivista, e a mais valia/menor valia, entre tantos outros. Todos de grande valor
para o estudo dessas ciências sob qualquer ótica, incluindo a antimarxista (et pour cause: por um bom
motivo!) Ressalto que este artigo não é uma abordagem à luz da teoria de Marx,
levada adiante por Lênin e os bolcheviques, movimento que culminou com a Revolução Comunista de
1917, cedo transformada em retumbante fracasso para a humanidade. E menos ainda, por
óbvio, comungo das ideias bonapartistas ou maquiavelistas.
No segundo
livro, Manual do Líder², encontramos pensamentos, aforismas e análises de
Napoleão I, ideias compiladas por Jules Bertaut. Ali, ele se desnuda em um
texto depositário de seu livre-pensar. Invoca a si próprio o talento de um
Beethoven, seu antigo admirador, quando diz “Amo o poder, mas como artista.
Amo-o como o músico ama seu violino para dele tirar sons, acordes e
harmonias”. Sobre as virtudes do líder, afirma
que “é preciso ter a cabeça fria, (...) que nunca se exalte, não se deixe
deslumbrar pelas boas ou más notícias”, e que “a força em si não é nada sem a
inteligência”.
O Príncipe, edição com comentários de Bonaparte |
O Príncipe, de Maquiavel³, o último desta tríade
de publicações a que me refiro, traz anotações feitas por Bonaparte à margem do
texto. Nele, em ‘os vários tipos de estados e sua constituição’, sobre os novos
domínios a serem consolidados, diz: “assim será o meu, se Deus me conceder vida
bastante”. Ao lado de uma vaga fé que brota aqui e ali não afinada com seus
atos, ele prevê um árduo caminho, uma jornada que lhe custaria longa vida. Quanto
à observação de Maquiavel sobre a necessária presença do soberano, “inibitória
da ganância de seus lugares-tenentes”, Napoleão contesta, pois acha conveniente
seus subalternos ‘enriquecerem’, justificando: “me servem incondicionalmente”. Moral
à parte, o laissez voler (‘deixe
roubar’), tão comum em nossas plagas, é o sustentáculo do poder de muitos.
Luís XIV |
Maquiavel insiste
na necessidade de o soberano estar presente no território, pois dessa forma
“será muito difícil arrebatá-lo a seu domínio”. Napoleão, comandante expansionista
e conquistador, acha que isso é “impossível, no que me diz respeito; o terror
do meu nome equivalerá à minha presença” - espírito totalitário, impondo o medo
até se ausente. Sobre ‘a liberalidade e a parcimônia’, Maquiavel pensa que, “se
praticada, de modo que seja vista por todos, prejudicará o príncipe”, e o
francês acha que é uma verdade fundamental, mas pergunta: “de que valeria ser liberal
se não fosse por interesse ou vaidade?” Esse narcisismo mascarado de falso
liberal, que lhe era caro, teria, sim, implicações e consequências negativas. Mas
ele se bastava, ‘sou assim e ponto’. Poderia ter repetido Luís XIV: ‘o Estado
sou eu’.
Univ. de Cambridge: biblioteca do Depto. de História |
Se em ‘O 18 Brumário’ é analisada a restauração
imperial do sobrinho Charles-Louis, no ‘Manual’ é Napoleão I quem expõe sua radiografia
de gênio; em ‘O Príncipe’, ele faz seus os poucos pensamentos de Maquiavel que lhe
agradam; outros, ele manipula a seu gosto, e aniquila todos aqueles de que, ante
suas próprias obcecadas convicções, discorda. As três publicações dissecam o espírito
bonapartista e seu tempo por dentro, intelectualmente e por fora. Na pior das
hipóteses, foi um líder insano, mas de grande inteligência. Quantos não
pensaram nos delírios de conquista de Bonaparte, Hitler e Stalin? E os
pequenos, pobres miniaturas, ávidos por autocracia? Na história, quando os personagens se repetem,
as imitações são falsas.
* * *
¹MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Hélio
Schneider. SP: Boitempo, 2011.
²BERTAUT,
Jules. Manual do Líder. Trad. Julia da Rosa Simões. Pallotti: Porto
Alegre, LP&M, 2011.
³MAQUIAVEL,
Nicolò. O Príncipe. Trad. Pietro Nassetti. SP: Martin Claret,
2001.
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