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sábado, 17 de agosto de 2019

BONAPARTE. POR FORA, POR DENTRO E AO AVESSO


Seria cegueira intelectual ignorar o pensamento de um líder por seu passado ou ideologia. Reflexões, estudos e aforismas de Bonaparte são fundamentais à compreensão da nossa civilização a partir do turning point, a Revolução Francesa.  Ao leigo com formação básica convém fazer um passeio sobre tema, mas é essencial desprender-se de conceitos e pré-conceitos. As análises críticas de Bonaparte representam uma luz tanto sobre a visão do passado quanto da atualidade - e uma perspectiva do futuro. (O compositor Arnold Schönberg falou sobre investigar o que foi feito no passado, compreender o que está acontecendo no presente para antever os rumos daquilo que, presumivelmente, deverá acontecer).
Le Brumaire: ikustração
Três livros, três abordagens. O primeiro deles é O 18 Brumário de Luís Bonaparte¹ (Der 18te Brumaire des Louis Napoleon, em alemão). No calendário pós-Revolução Francesa, Brumário era o segundo mês (22/10 a 20/11) do ano VIII, e 18 o dia do golpe. O texto se debruça sobre os fatos que desembocaram na chamada Revolução de Fevereiro de 1848 - “A primavera dos povos” -, eclosão de revoltas em boa parte Europa que na França culminou com um golpe de Luís Bonaparte (Napoleão III), em 1851. Como seu tio, ele derrubou a República e fez sagrar-se imperador. (Beethoven, entusiasta republicano, em 1804 rasurou a dedicatória na partitura original feita a Napoleão I na Sinfonia nª 3, Eroica. Para ele, seu herói morrera ao se ungir imperador).
Dedicatória na partitura: rasurada por Beethoven

Lênin: outubro de 1917
‘O 18 Brumário’ é um estudo histórico e filosófico do alemão Karl Marx (1818-1883). Indispensável lembrar essa e outras contribuições do autor à história, à filosofia e à economia, de que alguns exemplos são os conceitos de Práxis, um materialismo oposto ao positivista, e a mais valia/menor valia, entre tantos outros. Todos de grande valor para o estudo dessas ciências sob qualquer ótica, incluindo a antimarxista (et pour cause: por um bom motivo!) Ressalto que este artigo não é uma abordagem à luz da teoria de  Marx, levada adiante por Lênin e os bolcheviques, movimento que culminou com a Revolução Comunista de 1917, cedo transformada em retumbante fracasso para a humanidade. E menos ainda, por óbvio, comungo das ideias bonapartistas ou maquiavelistas.
No segundo livro, Manual do Líder², encontramos pensamentos, aforismas e análises de Napoleão I, ideias compiladas por Jules Bertaut. Ali, ele se desnuda em um texto depositário de seu livre-pensar. Invoca a si próprio o talento de um Beethoven, seu antigo admirador, quando diz “Amo o poder, mas como artista. Amo-o como o músico ama seu violino para dele tirar sons, acordes e harmonias”.  Sobre as virtudes do líder, afirma que “é preciso ter a cabeça fria, (...) que nunca se exalte, não se deixe deslumbrar pelas boas ou más notícias”, e que “a força em si não é nada sem a inteligência”.
O Príncipe, edição com comentários de Bonaparte
O Príncipe, de Maquiavel³, o último desta tríade de publicações a que me refiro, traz anotações feitas por Bonaparte à margem do texto. Nele, em ‘os vários tipos de estados e sua constituição’, sobre os novos domínios a serem consolidados, diz: “assim será o meu, se Deus me conceder vida bastante”. Ao lado de uma vaga fé que brota aqui e ali não afinada com seus atos, ele prevê um árduo caminho, uma jornada que lhe custaria longa vida. Quanto à observação de Maquiavel sobre a necessária presença do soberano, “inibitória da ganância de seus lugares-tenentes”, Napoleão contesta, pois acha conveniente seus subalternos ‘enriquecerem’, justificando: “me servem incondicionalmente”. Moral à parte, o laissez voler (‘deixe roubar’), tão comum em nossas plagas, é o sustentáculo do poder de muitos.
Luís XIV
Maquiavel insiste na necessidade de o soberano estar presente no território, pois dessa forma “será muito difícil arrebatá-lo a seu domínio”. Napoleão, comandante expansionista e conquistador, acha que isso é “impossível, no que me diz respeito; o terror do meu nome equivalerá à minha presença” - espírito totalitário, impondo o medo até se ausente. Sobre ‘a liberalidade e a parcimônia’, Maquiavel pensa que, “se praticada, de modo que seja vista por todos, prejudicará o príncipe”, e o francês acha que é uma verdade fundamental, mas pergunta: “de que valeria ser liberal se não fosse por interesse ou vaidade?” Esse narcisismo mascarado de falso liberal, que lhe era caro, teria, sim, implicações e consequências negativas. Mas ele se bastava, ‘sou assim e ponto’. Poderia ter repetido Luís XIV: ‘o Estado sou eu’.
Univ. de Cambridge: biblioteca do Depto. de História
Se em ‘O 18 Brumário’ é analisada a restauração imperial do sobrinho Charles-Louis, no ‘Manual’ é Napoleão I quem expõe sua radiografia de gênio; em ‘O Príncipe’, ele faz seus os poucos pensamentos de Maquiavel que lhe agradam; outros, ele manipula a seu gosto, e aniquila todos aqueles de que, ante suas próprias obcecadas convicções, discorda. As três publicações dissecam o espírito bonapartista e seu tempo por dentro, intelectualmente e por fora. Na pior das hipóteses, foi um líder insano, mas de grande inteligência. Quantos não pensaram nos delírios de conquista de Bonaparte, Hitler e Stalin? E os pequenos, pobres miniaturas, ávidos por autocracia?  Na história, quando os personagens se repetem, as imitações são falsas.
*  *  *

¹MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Hélio Schneider. SP: Boitempo, 2011.
²BERTAUT, Jules. Manual do Líder. Trad. Julia da Rosa Simões. Pallotti: Porto Alegre, LP&M, 2011.  
³MAQUIAVEL, Nicolò. O Príncipe. Trad. Pietro Nassetti. SP: Martin Claret, 2001.


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