Há três anos, escrevi sobre o húngaro
Gèza Kiszely, meu saudoso professor de História da Música na Fefierj, Rio,
início dos anos 1970, e depois da Escola Municipal de Música de São Paulo, de
que fui diretor a partir de 1989. George, seu nome brasileiro, morou no Recife,
e relatou-me uma cena dantesca em apresentação do lendário virtuose Jascha
Heifetz em 1931, no belíssimo Teatro Santa Isabel, de 1850, que segue os
padrões do Opéra de Paris. Sem ar condicionado, calor medonho, algumas
aberturas na parte superior deixavam o vento refrescar um pouco a sala.
Jascha Heifetz |
Heifetz começou o recital e logo um
dos ilustres visitantes contumazes do teatro, um morcego, entrou por uma das
aberturas e tirou um voo rasante do gênio do violino - que parou e gritou, it’s
me or the bat (“ou eu ou o morcego”),
retirando-se não sem antes exigir que os ingressos fossem devolvidos. Evacuaram
o público mas pediram que todos aguardassem, prometeram expulsar o invasor. Algum
tempo, Heifetz e plateia mais calmos, o virtuose terminou o recital. Frio,
mas profissionalmente.
O luxuoso Santa Isabel, do Recife |
Anos depois, um certo violinista (e
importante catedrático da Escola Nacional de Música do Rio cujo nome omito em
respeito) foi tocar no mesmo teatro e lá veio um morcego camicase tirar casquinha de seu violino. Aproveitando-se da lenda Heifetz, parou e gritou: “ou eu ou o
morcego”! O público, em coro, bradou “morcego, morcego!” (Há coisas que só raros
podem fazer – como disse meu pai, tudo depende de quem assina o cheque. Se ele próprio fosse sacar US$ 1 milhão na boca do caixa no Chase Manhattan, em NY, em minutos
seria preso. Mas um telefonema do Rockefeller bastaria para ter carros-fortes, seguranças,
e o CEO levando-lhe fortunas. Como agrado, garrafas caríssimas de Châteaux
Montrôse de safra).
O Morcego, montagem da BBC |
O Morcego (Die Fledermaus) é uma
divertida opereta do austríaco Johann Strauss II (1825/1899), autor de singelas
quadrilhas, valsas e balés, baseada em uma farsa do escritor alemão Julius
Benedix. (Strauss II era filho de Johann Strauss I, nada a ver com o Richard Strauss, de
Assim Falou Zaratustra). Na cena, Falke, tido como amigo de Eisenstein (ambos
barítonos), vai em nome dele convidar Rosalinde (soprano), para um baile. Daí o
divertido dueto Kommt mit mir zum Souper (do francês souper ): Venha ao Jantar Comigo. Em festa no ano anterior, Falke, fantasiado de morcego, havia
sido largado por Eisenstein na sarjeta, totalmente bêbado, alvo das chacotas da
vizinhança. Seguem-se os tropeços e desencontros típicos de comédias, vingança e
ciúmes, falsas amizades, chefatura de polícia e muita confusão.
O atual Parque Lage |
A grande soprano italiana Gabriella
Besanzoni apaixonou-se por um miliardário industrial carioca, o engenheiro Henrique
Lage, e veio com ele, que não se chamava Onassis, mas tinha Gabriella como sua Callas, morar no Rio de Janeiro. Como presente de núpcias, uma
mansão de área monumental ao pé do Corcovado repleta de enormes salas e banheiros,
cavernas com estalactites e tudo o que o dinheiro poderia comprar. Eu morava
com meus pais em um pequeno prédio do outro lado da rua Jardim Botânico, bem em
frente ao poste da parada onde em 2.000 aconteceria o trágico sequestro do ônibus 174. Tudo
abandonado (hoje é o belo Parque Lage), tinha seus grandes atrativos: eu, adolescente,
saltava-lhe o muro com amigos para fazer traquinagens, atravessar jacas com setas
de uma besta e, claro, entrar nas cavernas para explorá-las. Os morcegos não
nos incomodavam, éramos destemidos desbravadores. Só não sabia o que me
esperava.
Algum tempo depois caí doente. Minha
mãe levou-me a vários médicos e nada de diagnóstico. Fomos para BH, onde meu
tio Marcelo Campos Christo, que se tornou cirurgião cardiovascular de grande renome,
debruçou-se sobre tratados e compêndios até achar fundamentos para sua tese:
histoplasmose, doença transmitida por fungo de morcegos que, alojada nos pulmões,
infectava e poderia matar. Teste e medicação vieram dos EUA, e em breve eu
felizmente estava curado, a doença não conseguiu levar adiante sua terrível
missão. Sumiu o fungo do sangue e da vida, mas muitos anos depois, na imigração americana para
obtenção de meu visto permanente, fizeram uma chapa especial, já que suspeitaram
de algum ínfimo detalhe no raio x. Felizmente, deu ‘nódulo linfático
calcificado, sem doença ativa’. O morcego é o Capeta em pessoa, suas fezes se
espalham e infectam, por vezes letalmente.
Há alguns meses, no apartamento onde nossa
família morou, fechado e escuro após o falecimento de meus pais, entrou um
desses quirópteros. Espatifou uma lâmpada com um rasante, ferindo-se,
espalhando vidro e gotículas de sangue. A preocupação era com objetos e móveis, claro, e não o morcego. Deve-se fechar tudo, deixar escurecer com
apenas uma saída livre esperar. Nada mais a fazer.
Béla Lugosi em ação |
Matar com ‘chumbinho’, coquetel de sangue
de boi com veneno, nunca! Os dorminhocos alados são protegidos pelas leis
5.197/67 e 9.605/98, que penalizam quem fizer uso de ‘condutas lesivas ao meio
ambiente’ e amparam os voadores noctívagos. Mesmo que, além da minha então rara
histoplasmose, ainda transmitam raiva e, em alguns países, até ebola. Sem falar nos hematófagos,
morcegos-vampiros como os da Transilvânia, que sugam em uma só dentada, como
nos filmes de Béla Lugosi ou Christopher Lee, ou ainda o histórico ‘M, O
Vampiro de Düsseldorf’, do Fritz Lang (1931). (Linda fita é A Dança dos Vampiros,
de Polanski, com a estonteante Sharon Tate).
Morcego bom é morcego morto, diriam
certos políticos. Fora o da opereta, bom mesmo só o Batman, o super-herói de
quadrinhos criados por Bob Kane e Bill Finger em 1939. Bruce Wayne, playboy milionário,
quando chamado servia à sua Gotham City fazendo justiça trajado de máscara com
pequenas orelhas na cabeça e uma capa inspirada nas asas de morcego, quadrinhos tornados filmes
estrelados por Michael Keaton.
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