Panorama de uma Arquitetura Musical e
Política (fim)
Após a
Constituição de 1988, os admitidos (Leis 9160 e 9168/80) foram estabilizados na
função, desde que tivessem ingressado no serviço público até cinco anos antes
da promulgação (Art. 19 das Disposições Transitórias). O TM procurava outro
meio de contratar novos músicos, enquanto o mundo se voltava para um triste
acidente: naquele ano, a OSM foi notícia internacional (eu estava nos EUA e
pude assistir na TV). Um palco improvisado na cidade paulista de Americana para
festejar a reinauguração do teatro da cidade, aos primeiros compassos do Hino
Nacional ruiu com o maestro Tullio Colacioppo, orquestra, cantores, montadores
e instrumentos. O prefeito Jânio Quadros mandou publicar um de seus
bilhetinhos: a partir daquela data a OSM só sairia da capital com autorização
expressa do executivo.
Pavarotti (Deutsche Grammophon} |
Ao saber que o
ícone do canto lírico, o tenor Luciano Pavarotti, havia pedido a bagatela de
US$ 300 mil para cantar – mais de US$ 636 mil atualizados, hoje coisa de R$ 2,4 mi -, mandou cancelar as tratativas:
“por 300 mil canto eu”. Como o tenor devia ao fisco italiano US$ 3 milhões, não
se sabe como ele pretendia receber o cachê, talvez algum meio escuso. (Apareceu
em comercial para um carro de luxo, e exigiu que o pagamento fosse efetuado de
maneira nada canônica, e que constasse nos créditos que o valor havia sido
destinado a instituições beneficentes, para fugir do fisco italiano e da
ex-esposa).
Tribunal de Contas (PC Concursos Uol) |
Os novos
dispositivos da CF de 1988 inviabilizaram o provimento de funções públicas da
forma como vinha sendo realizado, já que as funções dos admitidos estáveis
foram destinadas à extinção na vacância. Com isso, foi perenizada a contratação
dos artistas via outro expediente, a ‘locação de natureza artística’, prestação
de serviços em blocos de 90 ou 180 dias, sem férias, pagamentos sempre
atrasados e sem direitos trabalhistas. Por ao menos duas vezes a prática,
incomum aos procedimentos regulares, esteve na alça de mira do Tribunal de
Contas do Município.
Simon Blech cumprimenta seu spalla na Argentina |
Em 1931, uma
crise já havia abalado a então Orquestra da Cidade de São Paulo. O governo de
Montevidéu criou uma sinfônica pagando salários bem mais altos, o que motivou a
evasão de muitos de nossos artistas para o país vizinho. Sadia competição também
foi estabelecida com a chegada da OSUSP de Camargo Guarnieri e da nova Filarmônica
de São Paulo, mantida pela iniciativa privada e criada por Artur Kauffman e
José Ermírio de Morais Filho, à frente o maestro polonês Simon Blech. Em 1997,
também provocou abalos na OSM a abertura de vagas para a OSESP, com John
Neschling. Mas o cenário foi profícuo para a música de concerto nesses anos
todos e salutar para o nível dos grupos, mas apesar do aumento de ofertas no mercado a Sinfônica Municipal já estava bem consolidada de há muito.
Em 31 de maio de
1988, antes da promulgação da ‘Constituição Cidadã’, Jânio havia sancionado a
lei nº 10.544, que passou a reger as contratações de obras, serviços e afins. O
inciso IV do Art. 4º tratou de incluir “no vácuo” as novas contratações
temporárias da OSM, justo no último item da lista: “serviço: atividade
destinada a obter determinada utilidade concreta de interesse para a
administração, tais como demolição (...) conservação, reparação, manutenção,
transporte ou trabalhos técnicos profissionais”. (Contratações dispensadas de
licitação devido à sua natureza artística, respeitados o Art. 37 do inciso XXI
da Constituição e, partir de 1994, a Lei 8.666 (ilustração), alcunhada pelos servidores “Lei
do Cão”, em virtude dos três últimos algarismos, remetendo a trechos da Bíblia Sagrada).
CERT, da Reitoria (Jornal do Campus) |
Por delimitação
técnica deste artigo, conforme já dito no primeiro da série, resumi aqui simplificadamente um projeto de pesquisa que apresentei à USP em 1998, mas não há como ir
adiante agora. Falta o acesso às fontes que tive à disposição em 1998, mesmo que tenha participado
de inúmeras reuniões com vistas à elaboração do projeto para a Fundação Theatro
Municipal – que eu preferia de direito privado, como a OSESP, com fiscalização
do poder público mas autonomia contra as ingerências políticas de algum alcaide
aventureiro. A administração, no entanto, decidiu-se pela norma do direito
público.
TM (Veja SP, em matéria sobre o infeliz caso de corrupção) |
A FTM foi criada
pela Lei 15.380 em 27/05/2011. Aparentemente, optou-se por não contratar os
artistas via cargos vinculados diretamente à instituição. Mas havia outro
recurso, um contrato com uma Organização Social, o Instituto Brasileiro de
Gestão Cultural (IBGC), que passou a exercer a direção das atividades burocráticas
e artísticas e registrando os artistas via CLT. A organização gestora ficou
conhecida mais pela ampla divulgação na Imprensa, em 2016, de notícias que
circulavam entre as páginas de cultura e policiais, do que por sua gerência.
Para evitar maiores traumas e não prejudicar o TM, em 2017 o executivo decidiu romper
com o IBGC e celebrar novo contrato de gestão com a OS Odeon.
As artes no
Brasil sempre oscilaram quando à brisa das virtudes e caprichos do Poder
Público, conforme vim comentando desde primeiro artigo desta curta série - do
histórico anterior à fundação do Theatro, anos 1890, aos dias de hoje. As interferências
políticas sempre existiram e assim continuarão, seja em maior ou menor grau.
Prova dessas vicissitudes brasileiras é que o projeto de pesquisa que
encaminhei à USP tinha perfil histórico (recomendo sempre, entre outros, a
História Social da Música, de Henry Raynor, e Introdução à Sociologia da Música,
por T. Adorno). E por isso mesmo foi vetado por um daqueles acadêmicos que
acumulavam cargos e posições-chave na Universidade (tinha lá suas posições e
interesses). Chegou a mim que a proposta seria vetada pelo parecerista, como o foi, e que ele
também tinha assento em comissão da Reitoria. Se eu recorresse ele pediria
vistas, para ao final negá-lo monocraticamente. A OSM e o Municipal seguem firmes
seu caminho, e com novas luzes que surgem agora, eu livro minha consciência do peso de
levar comigo este breve registro sobre um pedaço da música de concerto no
Brasil.
[Para ler a primeira parte: http://blogdohenriqueautran.blogspot.com/2019/07/theatro-municipal-de-sao-paulo-i.html ]
[Para ler a segunda parte: http://blogdohenriqueautran.blogspot.com/2019/07/theatro-municipal-de-sao-paulo-ii.html ]
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