Panorama de uma
arquitetura musical e política
Não demorou muito
para o Theatro Municipal de São Paulo encontrar o prumo de sua veia artística.
Companhias de ópera e solistas passavam por seu palco, tradição consoante aos mais
finos costumes europeus. A partir de 1930, época de golpe de Estado e revolução,
o TM chega à maioridade em meio a turbulências e assume vocação própria, ainda que
sujeita à volátil política brasileira.
Camargo Guarnieri |
Há que se ressaltar
que, àquela altura, o Municipal não servia apenas a apresentações musicais, mas
à política em seu aspecto mais saudável, pano de fundo que é deste meu tríptico de artigos.
Além de manifestações estéticas como a de 1950 contra o modismo dodecafônico introduzido
no país por Koellreutter, tendo o nacionalista Camargo Guarnieri
(1907-1993) como bandeira, lá se exibiram bailarinos como Isadora Duncan, o lendário Nijinsky
e Margot Fontein, fora vultos do teatro como Jean-Louis Barrault, Vivian Leigh,
Cacilda Becker e Marcel Marceau, entre tantos. (Quando perguntei ao próprio
Guarnieri sobre o polêmico evento da Carta Aberta lida no Municipal em 1950 contra
a invasão do serialismo, o maestro confessou-me, com sua voz característica:
“Eu não era contra o dodecafonismo. Como é que eu poderia ser contra algo que eu nem sabia do que se tratava? Eu era contra o Koellreutter!”).
Modernistas reunidos: no alto, à esquerda, Mário de Andrade |
Outros acontecimentos da máxima importância foram a histórica Semana de Arte Moderna de
1922, que chacoalhou o mundo artístico brasileiro, o Centro de Estudos e Defesa
do Petróleo e o memorável 1º Congresso Brasileiro de Escritores, suspiro da
classe intelectual contra o Estado Novo, além de inúmeros outros eventos. Foi
também das escadarias do Theatro que o líder estudantil José Dirceu, em 1º de
abril de 1968, à frente de uma aglomeração de manifestantes, conseguiu (a
contragosto da cúpula da UNE) dispersar a concentração popular e contornar taticamente
a palavra de ordem de outras lideranças, favoráveis a um confronto com a
Polícia, um embate de resultados imprevisíveis (PONTES, J. Alfredo Vidigal. 1968,
do Sonho ao Pesadelo. SP: OESP, 1998).
Jânio Quadros, prefeito (Estadão) |
Incólume após
várias administrações e durante quase nove décadas de mudanças políticas, o
Theatro Municipal, orgulho paulistano de diversas gerações, passou por mais
duas reformas físicas, preservando-lhe a aparência e funcionalidade. A
primeira, em 1952, durou três anos, enquanto a segunda foi concluída em peno choque
de gestões, iniciando-se com Jânio Quadros (PTB, 1985-1988) para finalmente
ser entregue à cidade durante a transformadora administração de diretrizes ideológicas
diametralmente opostas, a da prefeita Luíza Erundina (PT, 1989-1992).
Sociedade de Cultura Artística,com o belo afresco de Di Cavalcanti |
Fundada em 1912,
a Sociedade de Cultura Artística, entidade privada com 650 assinantes,
apresentava solistas, orquestras e música de câmara. O Theatro Municipal passou
a ampliar os horizontes artísticos da cidade, recebendo artistas nacionais e companhias
líricas estrangeiras. O município passou, então, a fazer parte do roteiro das
turnês como extensão natural do trajeto do Rio de Janeiro ao Teatro Colón, de
Buenos Aires.
Mário de Andrade |
Devido aos custos
cada vez mais aviltantes de óperas estrangeiras completas, “prá economizar
importação de gente”, como disse Mário de Andrade¹, e dada a necessidade de se ter um
corpo estável próprio para a execução do amplo repertório operístico-sinfônico,
criou-se um conjunto, mais adiante intitulado Orquestra da Cidade de São Paulo (¹DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por Ele Mesmo. SP: Hucitec, 1985).
Na verdade, tratava-se de um grupo bastante heterogêneo, já que repleto de
músicos de formação popular basicamente pertencentes às orquestras das rádios
Gazeta e Piratininga. O conjunto passou a ter papel da maior relevância nas
temporadas líricas paulistanas, e o Municipal a abrigar seus instrumentistas,
em grande maioria de origem italiana, assim como acolher os alunos que esses
professores haveriam de formar para sucedê-los nas estantes, além de oferecer
espaço para que esses jovens músicos completassem sua formação com a necessária
experiência prática.
Maestro Souza Lima |
A Orquestra
Sinfônica Municipal foi criada oficialmente apenas em 1949, à frente os
maestros Souza Lima (1908-1982) e Armando Belardi (1898-1989), e com sua
consolidação logo assumiu papel de destaque em São Paulo e no país. Além de
Lima e Belardi, teve como regentes Edoardo Guarnieri, Simon Blech, Roberto
Schnorremberg, Tulio Colacioppo, Eleazar de Carvalho (em acúmulo com a OSESP),
David Machado, Júlio Medaglia, John Neschling, Isaac Karabtchevsky, Jamil
Maluf, J. M. Florêncio, Rodrigo de Carvalho e Roberto Minczuk.
Poucos músicos
investidos dos cargos efetivos criados para provimento via concursos públicos restavam
até 1988, quando foi promulgada a nova Constituição Federal. Os artistas vinham
sendo contratados não para cargos, mas para funções criadas pelas leis 9160 e
9168/80, ‘admitidos em função pública’, um artifício para contratar servidores
sem concursá-los, tornando o funcionalismo público vulnerável a apadrinhamentos
e interesses políticos. Para a OSM, no entanto, logrou-se manter o instituto da
seleção pública, que em tudo se assemelhava à parte prática de um concurso
público. Em 1992, Erundina sancionou a lei 11.231, criando novos cargos
efetivos para a OSM, Corais Lírico e Paulistano, Balé da Cidade e as escolas de
Música e Bailado. Dada a resiliência do poder público contra cargos efetivos para
artistas nas gestões seguintes, as vagas abertas por lei nunca foram objeto de concurso.
(Continua)
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[Se você quiser ler a primeira parte, que antecede o presente artigo, o link é: http://blogdohenriqueautran.blogspot.com/2019/07/theatro-municipal-de-sao-paulo-i.html]
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[Se você quiser ler a primeira parte, que antecede o presente artigo, o link é: http://blogdohenriqueautran.blogspot.com/2019/07/theatro-municipal-de-sao-paulo-i.html]
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