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sexta-feira, 20 de maio de 2022

CRITICAR O CRÍTICO, CENSURAR O CENSOR

 




The Critic
 é uma revista britânica lançada em 2019 cujo título veio de uma publicação homônima da época vitoriana (1843-1863). Seu contexto é político-cultural, algo a ver com O Espectador, que se propõe a “criticar os críticos”. O criticismo é a análise opinativa de textos jornalísticos, peças de teatro e músicas de todos os tipos. Grande exemplo foi Bernard Shaw (1856-1950), erudito na música, na dramaturgia e dono de uma verve humorística especial: “Parece proibido compor óperas fora da sombra do Vesúvio” (vulcão italiano) – insinuando que naquela época só se poderia compor óperas na Itália, que dominava a cena. Outra: “Quem se atrever a executar qualquer obra no mesmo programa da 9ª Sinfonia de Beethoven deve ser preso, sem direito a fiança” – exaltando o patrimônio universal que é a obra-prima do compositor alemão.

Caricatura de Oscar Guanabarino

Disse Millôr Fernandes
, jornalista de O Pasquim e grande frasista: “Livre pensar é só pensar”, e por analogia “livre criticar é só criticar”. Entretanto, para exercer a profissão com seriedade é necessário certo conhecimento, deve-se buscar correição e coerência: um crítico sério não é um diletante. O problema é quando quem critica cede à pessoalidade, eivado de segundas intenções com o fim de atacar o criticado. Exemplo foi um obcecado detrator de Villa-Lobos, o pianista e crítico Oscar Guanabarino. O maestro nunca levou desaforo para casa e os devolvia com merecidas chapoletadas.


Onde vive um homem
há ideologia, e é impossível fazer uma opinião desparecer como germe na assepsia hospitalar. Terríveis tempos do positivismo de Auguste Comte, sob a bandeira da filosofia da ciência! Durante a ditadura, no primeiro ano na universidade, apendi o “distanciamento epistemológico” – ah, palavra! -, inserido na teoria do conhecimento. Mas tal suposto distanciamento não existe, a pessoalidade dá um jeito de se imiscuir sorrateiramente no assunto.

Stalin e Zhdanov

A censura
é assunto à parte, embora em algum ponto passe por uma análise como a da crítica. Censores são indivíduos que, em tempos de regimes totalitários de todos os matizes, são investidos do poder de modificar, mutilar e cortar discursos, obras de arte, jornais, letras de música ou o que for. Stalin, o implacável ditador da União Soviética, tinha como ministro da propaganda de confiança Andrei Zhdanov, mestre na tesoura, censor-mor que ambicionava suceder o chefe. Contraditoriamente, o teórico marxista italiano Antonio Gramsci publicou, entre 1916 e 1918, artigos com ataques contundentes à ideia fascista de “purificar” a literatura e o pensamento italianos, isso já ao vento das ideias que gestariam Mussolini.


A figura do censor
já existia na Roma antiga para ‘manter a moralidade’, esteve no Index Librorum Prohibitorum (1559), mas volta e meia ela ressuscita: bom exemplo é 1964, já com Castelo Branco, quando foram criados meios de controle do Judiciário e Legislativo para garantir o regime, sob o epíteto da ”soberania nacional” (CORRÊA, Michelle Godinho. “Censura na Ditadura Militar”. BH: UFMG, 2012).

Certificado com a assinatura da Da. Solange

Sobressaía-se a poderosa
Solange Hernandes - Dona Solange -, que de 1981 a 1985 passara a comandar toda a censura no país (Veja, 7/10/19). Foi autora da proibição da novela de TV Roque Santeiro, de Dias Gomes, Aguinaldo Silva e outros, a peça Calabar, de Chico Buarque, músicas como MiIagre dos Peixes, do Milton, e Zero, livro de Ignácio de Loyola Brandão, entre inúmeras obras. Ainda adolescente, tive uma canção mutilada – suprimiram a frase “um grito vivo de verdade” – às vésperas de um festival entre colegiais do Rio; corte sem nexo algum, mas doloroso para um entusiasmado iniciante de 17 anos. 

Filinto Müller

O Brasil já tinha vivido
a experiência da ditadura getulista, que em 1939 instituiu o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), cujas atribuições tornaram-se gradualmente mais amplas - até, por exemplo, formar jovens estudantes segundo os princípios da ideologia oficial. Tinha como comandante o implacável Filinto Müller, chefe da polícia política afinado com Goebbels, o homem forte da propaganda e censura de Hitler.


Mais recente
é a matéria do UOL/Folha intitulada “STF: Maioria decide ser ilegal dossiê contra antifascistas” (27/04/22), artifício que teria como objetivo exatamente controlar as ideias dos servidores públicos, suas opções políticas e mesmo vidas particulares.

"License to kill", com 007

Talvez o censor seja
uma espécie de crítico com “licença para matar”, que age com sadismo a mando de um regime – ou, veladamente, dentro de organizações civis. Ele não acrescenta, apenas mutila e veta. Já o crítico é um cidadão civil geralmente incumbido de fazer uma resenha opinativa sobre peça de teatro, concerto ou filme. (Às vezes sujeitos a escorregadelas: lembro-me de um conhecido crítico do Rio que escreveu sobre falhas em passagens de certo recital, como “as tercinas excessivamente preguiçosas no segundo movimento da sonata para piano” – só que a peça fora cancelada, de onde se conclui que o articulista sequer havia ido ao recital.

Bernard Shaw (1856-1950)

Da atividade do crítico
espera-se conhecimento e boa-fé, e ela deve ser aplaudida, quando bem feita. Mas a outra tarefa, a de censurar – do latim caesura, corte –, é por princípio maligna: uma ação a serviço do poder autoritário, por vezes aliada à frustração de não ter sido ele, o censor, quem criou a obra que destruiu com inveja.

Loas ao espírito crítico sério, fora a censura, seja oficial ou amarguradamente enrustida. Em uma de suas epístolas, Paulo manifestou-se: “Não extingais o espírito, (...) examinai tudo, retendo o que é bom” (I Tess 5, 19-21). Assim seja.



 

sexta-feira, 13 de maio de 2022

"CANCELAR" A ARTE RUSSA?

 

Países da antiga União Soviética

Assistimos à “operação militar especial” (sic) comandada pelo presidente Vladimir Putin na Ucrânia - país que, como tantos outros, fez parte da imensa União Soviética (1922 a 1991). Dois fatos fizeram da Ucrânia uma presa fácil para o expansionismo de Putin: primeiro, a revolução bolchevique iniciou-se na Rússia em 1917 e se alastrou sobre outros países; segundo, a mais recente independência e aliança de muitos países do bloco e ingresso na OTAN deixaram a Ucrânia hoje isolada. Mas não é da guerra, em si, que quero falar, o que foi publicado e dito na imprensa e nas TVs já basta, há muitas análises por grandes especialistas.

NYT

É natural a vitimização da Ucrânia, assim como a solidariedade de boa parte do mundo. Mas há um certo ódio, algumas vezes mais incisivo, outras latente, ao ‘povo invasor’, quando na verdade quem invade são Putin e suas armadas. Essa súbita rejeição a um povo na maior parte adverso ao massacre no país eslavo - 49%, segundo o censurado Novaya Gazeta - tem atingido às vezes com crueldade o que de mais precioso a Rússia deu para o mundo: sua arte, do teatro ao cinema e balé, da música à literatura. Quando se “cancela” uma obra, um autor, perde também quem for privado de parte do melhor da criação universal.

David Oistrach

É importante lembrar o que a Rússia nos deu de tão importante, sua monumental produção artística. Por cumplicidade, penso logo nos instrumentistas, como o gênio do violino David Oistrach (1908-1974), que nasceu em Odessa, hoje parte da Ucrânia e então do Império Russo (1721 a 1917). Ou mesmo Nathan Milstein (1904-1992), que tive o grato prazer de ouvir em recital (Sonatas e Partitas solo de Bach) em Boston, no final dos anos 1970. Milstein nasceu na mesma Odessa de Oistrach, enquanto o virtuose Jasha Heifetz (1901-1987) veio ao mundo em Vilnius, capital da Lituânia, também parte do Império Russo. O mestre Piotr Stolyarsky (1871-1944) nasceu em Lypovetz, do governo de Kyiv, hoje capital ucraniana. O mais recente Mstislav Rostropovich (1927-2007), violoncelista, nasceu em Baku, capital do Azerbaijão, república da União Soviética. O lendário pianista Vladimir Horowitz (1903-1989), sedutor de multidões cujo retorno ao Carnegie Hall teve imensas filas para ingresso - levando o povo a pensar que se tratava de um show dos Beatles -, é também natural de Kyiv, capital da Ucrânia. E a lista é interminável!

Rachmaninoff

Já os compositores russos são parte do que há de melhor na música de concerto mundial de dois séculos: Pyotr Tchaikovsky (1840-1893) nasceu na pequena Votkinsk, em Vyatka, Udmurtia, perto de Moscou, capital da Rússia. É autor, entre sinfonias e dois belos concertos para violino e piano, este último um dos mais populares, e hoje dá nome a uma das maiores competições para instrumentistas.  Modest Mussorgsky (1839-1881), autor da famosa Quadros em uma Exposição, que foi executada até em versão rock pelo grupo Emerson, Lake & Palmer, nasceu em Karevo, 400 km ao sul de São Petersburgo. Dmitri Shostakovich (1906-1975), talvez um dos maiores compositores do século 20, é peterburguês, logo russo. Sergei Rachmaninof (1873-1943), autor de algumas das mais difíceis peças para piano e repertório de dez entre dez virtuoses do instrumento, nasceu na Moldávia, hoje república que faz fronteira com a Ucrânia e a Romênia.

Dmitri Shostakovich

É o suficiente para vermos que boa parte dos grandes virtuoses ditos russos do violino, piano ou violoncelo não são nascidos na Rússia – curiosamente, são originários da hoje Ucrânia, enquanto os maiores compositores são nascidos na Rússia. Diz-se genericamente que todos são russos devido ao longevo Império (1721-1917) e à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1922-1991), que não é sinônimo de Rúsia. É impossível generalizar uma vastidão territorial dividida, mantida sob força por duas vezes e hoje separada e independente. Uma comparação anedótica seria dizer que o uruguaio de Tacuarembó Carlos Gardel - antes tido como argentino -, seria brasileiro, pois seu país foi Província Cisplatina do Brasil Português.

Império Russo

No teatro e na literatura, Anton Chekhov (1960-1904) é autor de Tio Vânia, O Jardim das Cerejeiras e diversas belas peças. Grande contista e dramaturgo, Chekhov veio à luz em Tagenrog, cidade portuária ao sul de Moscou, Rússia, enquanto Fyodor Dostoevsky (1821-1881), autor de Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov, era um autêntico moscovita. Lev Tolstoy (1828-1910), autor de uma obra-prima universal, Guerra e Paz, e a belíssima novela Anna Karennina, é filho da pátria Rússia. No cinema, Sergei Eisenstein (1898-1948), de Riga, capital da Letônia, é autor de filmes memoráveis, como Encouraçado Potemkim e o épico Alexander Nevsky.

Encouraçado Potemkim

No caso, esses artistas são considerados russos por terem nascido ainda no Império Russo ou na União Soviética, que congregava inúmeros países. Recentemente, com relativa frequência, surgiu um temeroso “cancelar” uma peça, um concerto, um balé russo. Nos dicionários, o mais próximo desse “cancelar”, pode ser lido como suspender, suprimir. “Cancelar” um artista é tão assustador que lembra Stalin e seu ministro da propaganda Zhdanov mandando apagar pessoas expurgadas do poder ou desaparecidas, vivas ou mortas, nas fotografias. Mariupol, cobiçada pelo exército de Putin, chegou a se chamar Zhdanov por mais de 40 anos, em homenagem ao censor-mor. Que cheguem logo ao fim esta guerra e com ela essa censura artística enrustida. Há que se defender a vitória da Ucrânia sem que sejam perpetradas injustiças contra a arte universal de mais de um século e um povo amigo e carinhoso. 



 

sexta-feira, 6 de maio de 2022

NEOLOGISMOS CLÁSSICOS E OS 'DA GALERA'

 

Flaubert

Idioma é ‘a língua própria de um povo, de uma nação, com o léxico e as formas gramaticais e fonológicas que lhe são peculiares’ (Houaiss). É com ele, e as variações regionais, dialetos e gírias, que nos comunicamos, nos reinventando. Quem faz a língua é o povo e quem a consagra é o escritor; instâncias acadêmicas, são apêndice posterior. Disse Gustave Flaubert (1821-1880): “...o escritor é livre, conforme as exigências de seu estilo, de aceitar ou rejeitar as prescrições gramaticais que regem a língua, e as únicas leis às quais é preciso se submeter são as leis da harmonia” (trad. de Lucia e Autran Dourado, meus pais).

Otto Lara Resende

Em 1991 o então ministro Antonio Rogério Magri afirmou “o salário do trabalhador é imexível”, o que bastou para um linchamento linguístico que motivou uma declaração de meu pai: sob todos os aspectos, apesar de até então a palavra não existir, ela estava absolutamente correta na etimologia. O renomado jornalista Carlos Castello Branco, do Jornal do Brasil, repercutiu a declaração e o neologismo teve um apoio rasgado do Otto Lara Resende: “A palavra era bem formada e portanto vernácula. O fato de não constar no dicionário, se de fato não figura, só depõe contra o dicionário”. Pouco depois, por uso e costume, “imexível” passou a constar nos dicionários e no VOLP – Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia de Letras.


Há um consenso de que ‘imexível’ foi gestada em fala espontânea e informal do ex-ministro, mas segundo elementos que formam nossa língua. O que não é o caso de certas extravagâncias do idioma, os neologismos importados da língua inglesa em contexto geralmente fora do original. Bom exemplo é o verbo 'trolar’ - “ele está me ‘trolando’”, que surgiu na Internet, e Deus sabe como teria vindo parar aqui. Em inglês, existe o verbo to troll que significa empurrar um carrinho ou ainda puxar um anzol com isca em um barco em marcha lenta, para desespero dos peixes. Mas existe ainda um ‘trol’ que vem de to patrol, patrulhar,  e indica que a corruptela teria surgido de I’m trolling, como diria o funcionário de uma loja que fica de olho em pilantras que vagueiam entre as gôndolas para fazer uns “ganhos” - palavra essa dicionarizada há muitos anos (bem mais antiga é ‘pilhar’, fazer pequenos roubos). Voltando a ‘trolar’, como não se vê uma ligação clara, sua origem permanecerá um mistério – apenas temos certeza de que é um anglicismo.


O caminho parece semelhante ao de bullying, ‘provocação’, de onde cyber bullying, que entre nós seria uma ‘ciberperseguição’, um neologismo a que sou obrigado por simples tradução literal. Bull é ‘touro’, e em suas variações não há nada que faça conexão com bullying, termo à parte. Mas no popular to bully existe, como 'tiranizar'. Ao importarem essa palavra, preteriram o nosso velho ‘bolinar’, talvez porque to bully tem sentido único, e bolinar, entre outras acepções (op. cit.), há ‘apalpar ou encostar-se a (outra pessoa) com fins libidinosos, ger. de modo furtivo’. Nesse sentido, ‘bolinar’ seria o mesmo que ‘sarrar’, malandragem dos ônibus, trens urbanos e metrôs: ‘estabelecer contatos voluptuosos com alguém, sobretudo em aglomeração de pessoas, em cinemas, etc.’ (op. cit.). De sarrar vem ‘tirar um sarro’, significando ‘curtir com a cara’ de alguém, ‘zombar’, do espanhol zumbar (séc. 15). O velho ‘bolinar’ soaria feio: “mãe, meu colega fica me bolinando”


Nas mídias sociais é frequente o TBT, Throwback Thursday, sendo throw ‘jogar’, e back, ‘trás’, quinta-feira revivida. Com o TBT pessoas compartilham fotos de momento ou ocasião voltando a quintas passadas, por nostalgia, um flashback, termo emprestado do cinema. Abrasileirando e sem saber o significado de TBT, alguns também usam para os outros dias da semana, simples lembrança. Até inventam um significado, como ‘Tá Bom, Tá?’. Melhor seria algo como ‘relembrando uma quinta-feira’, ‘RQF’, mas o dialeto das redes consagrou o ‘TBT’. A hashtag – de hash, ‘confusão’ + tag, ‘etiqueta’ -, símbolo ‘#’, que aparece no canto inferior direito dos teclados de telefones e que as atendentes de telefonia comercial chamam de ‘jogo da velha', tem nome em português: cerquilha! ‘#’ são um must (necessidade), em apps como o Instagram, e fazem uma espécie de chamada, a exemplo de #forafulano e #sextou. BTW (By The Way: ‘aliás’) é outro anglicismo abreviado, já que escrever o mínimo é a tendência, seguindo de perto ler cada vez menos. Para a galera, são ‘chiques’ (aliás, um galicismo que vem de chic, e no interior é seguido por um caipirismo, “no úrtimo”.)

Olavo Bilac

Gilberto Gil, há 25 anos em Pela Internet, já fazia uso musical e crítico desses maneirismos cantando “Criar meu website / fazer minha homepage / com quantos gigabytes / se faz uma jangada / e um barco que veleje” – detalhe: palavras já devidamente dicionarizadas na “última flor do Lácio” – do poema Língua Portuguesa, de Olavo Bilac. Gil prossegue com os já abrasileirados disquete, site, hacker, videopôquer. Se existe hotlink, não agregado aos dicionários tupiniquins, há também os já naturalizados auriverdes upload, download e uma infinidade de termos e expressões em inglês. Gil lançou a música pela Internet, comme il faut (como deveria ser).


Não é vício exclusivo nosso. Na França é comum ouvir-se stopper, de stop, parar, dialeto que eles chamam franglais (français + anglais). Ao que tudo indica, a China ascenderá ao pódio de país mais poderoso do mundo, mas o inglês será cada vez mais a língua-mater da comunicação.