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sábado, 28 de setembro de 2013

A CADÊNCIA DO SUPREMO

“Sei que vou morrer, não sei o dia / levarei saudades da Maria / sei que vou morrer, não sei a hora / levarei saudades da Aurora... / Quero morrer numa batucada de bamba / na cadência bonita do samba”, do lindo samba composto pelo ilustre Ataulfo Alves (e Paulo Gesta) em 1962. Bom para dançar, para cantar, é samba de terreiro, de quintal, de pagode (o de verdade, das tendas de lona – chamadas pagodes, à moda dos telhados chineses - improvisadas nos subúrbios do Rio de Janeiro). A letra menciona uma palavra muito comum no samba: a cadência. Ela aqui tem o sentido de movimento rítmico, ginga, o requebro da cabrocha, o suingue do brasileiro. A “Cadência” do Ataulfo já foi gravada pelo próprio e de Elizete Cardoso a Cássia Eller. É uma pérola do repertório do samba. (Veja e ouça abaixo com Ataulfo e uma ótima big-band)




A famosa cadência de Joachim
para o concerto para violino de Brahms
Cadência também pode ser tradução do italiano “cadenza”, da mesma raiz latina: “cadere”, cair, ceder, agora significando o trecho escrito ou improvisado sobre o qual o solista demonstra suas habilidades virtuosísticas e musicais com grande liberdade: “ad libitum” e “a piacere” (em italiano), ou “à volonté” (francês) – indicando que o instrumentista ou cantor deverá se sentir livre para flutuar no tempo e reduzir ou estender notas e andamentos da forma que lhe convier, sem as “amarras” do tempo rígido. Donizetti escreveu várias cadências para o canto lírico (o ‘bel canto’), assim como seu compatriota Rossini, ambos expoentes da partitura de ópera. Na música instrumental, Beethoven escreveu uma cadência famosa no Concerto “Imperador”, para piano e orquestra, enquanto “Sheherazade”, de Rimsky-Korsakov, impregna o texto musical com várias cadências sensuais nos solos do violino. Também era comum grandes músicos ou compositores escreverem cadências para obras de outros autores, como fez Beethoven para o Concerto nº 20 para piano de Mozart e Britten para o Concerto nº 1 para violoncelo de Haydn (dedicada ao violoncelista Rostropovich), além da famosíssima cadência para o Concerto para Violino de Brahms, composta por Joseph Joachim, um dos pais da escola russa do instrumento (acima, imagem à esquerda).


Cadência autêntica: movimento/repouso
Ainda da mesma origem latina (cadere), temos na teoria musical (harmonia) uma série de cadências possíveis. No caso, elas podem terminar frases ou mesmo um movimento ou peça inteira. Mas essas cadências não são improvisos, como nas anteriores – pelo contrário, são bastante bem definidas e independem do intérprete. A mais comum delas se chama autêntica: sai de um acorde que tem sentido de movimento (chamado dominante) para “resolver” na tônica, ou seja, no repouso da tonalidade. Os acordes construídos sobre cada grau da escala (dó-ré-mi, etc.) têm uma função clara ou dissimulada de repouso (tônica), movimento (subdominante) e tensão (dominante). Para simplificar, listarei a seguir as principais cadências, exemplificando-as.
Já falamos da cadência autêntica, que encontramos em grande parte do repertório popular e clássico, que sai do acorde de tensão (dominante) para o de repouso (tônica). A cadência dita completa vem de uma sequência mais longa, mas pode terminar como a autêntica. Já a cadência plagal (ou “clausula”, por ter sido comum na música religiosa do passado) vem do movimento (subdominante) para afinal resolver no repouso (tônica). A chamada imperfeita deixa o ouvinte em suspenso, pois termina com um acorde de tensão (dominante) no ar, sem resolvê-lo no repouso (tônica). Por fim, entre algumas outras, temos uma cadência chamada deceptiva, por frustrar o ouvinte, que aguarda o repouso, e o lança sobre um acorde inesperado, que substitui o acorde de tônica.  

O Brasil assistiu durante longos meses ao maior e mais longo julgamento de uma ação penal (AP 470) de sua história. Nunca, nunca tanto se discutiu, se falou e se comentou sobre um julgamento pleno de citações, doutrinas, jurisprudências, hermenêutica, súmulas, direito greco-romano ou anglo-saxônico, tratados como os da Costa Rica, Declaração dos Direitos Humanos e tudo o mais com que a “tropa de elite” dos melhores criminalistas do país tentam driblar os julgadores. “O que será que será / que andam suspirando pelas alcovas / que andam sussurrando em versos e trovas / que andam combinando no breu das tocas / que anda nas cabeças, anda nas bocas / que andam acendendo velas nos becos / que estão falando alto pelos botecos...”, diz a linda música de Chico Buarque.


O país, dizem, tem 200 milhões de técnicos de futebol, e hoje alguns milhões de magistrados formados na escola da vida, a maioria em tempos recentes. Expressões antes desconhecidas do grande público passaram a adentrar lares, bares e clubes: acórdãos, embargos de declaração ou infringentes, revisão penal, data vênia, domínio do fato e tudo o mais que a lei oferece ao cidadão muito bem abastado que pode pagar honorários de sete ou oito dígitos para fundamentar sua brilhante defesa nos debates que câmaras e cortes julgarem mais corretas.


Umberto Eco: Obra Aberta
Sobre o título deste artigo, proponho à reflexão o conceito musical que acabo de expor: a AP 470 termina em cadência autêntica, a mais esperada, na plagal, de movimento para o repouso, ou a deceptiva? Não tenho a resposta. Considere este texto como uma “obra aberta”, conceito delineado pelo filósofo e escritor italiano Umberto Eco (1932),  expressão-título de uma publicação que analisa certa tendência da época, na arte moderna, que consiste em não concluir a obra de arte, mas deixar a decisão para o livre arbítrio (o liberum arbitrium) do leitor ou ouvinte. Se quiser comentar neste blog, para fazermos uma pequena "enquete", também será uma contribuição. E a sinfonia continua.




sábado, 21 de setembro de 2013

AFINAL, O QUE É AFINAÇÃO?


Raul Gil
Em princípio, penso ser difícil explicar em curtas linhas, talvez apenas ajude a entender a palavra, que vem dos tempos de antanho até os dias de hoje. Vejo três aspectos na questão: histórico-culturais, físico-acústicos (que tentam organizar e justificar os primeiros), e o mais relevante: a questão do gosto pessoal por onde pretendo terminar este breve texto. Dirijo-me tanto ao estudante que pode estar lendo sobre o já sabido – mas não custa acrescentar mais alguma coisa aqui e acolá - quanto ao leigo. Quem é estranho ao meio musical costuma ser muito mal orientado pela TV, que mais uma vez presta um desserviço à classe, com seus “especialistas” de concurso de cantores e programas de auditório a dizer: “você semitonou”. (Do saudoso Flávio Cavalcanti até Raul Gil). Semitom é a metade de um tom e fica, por exemplo, entre um dó e um ré, enorme espaço entre as duas notas. Portanto, semitonar não é desafinar, é errar as notas mesmo.

Vamos à Grécia antiga do político, físico, poeta e músico Pitágoras (580/572- 500/490 a.C.) cujas experiências consolidaram os princípios da acústica, parte de nosso limitado conhecimento humano. Pitágoras usava um artefato chamado monocórdio para demonstrar suas teorias. Como o nome diz, o artefato de uma só corda podia ser “tocado” com uma espécie de palheta ou vareta enquanto algum objeto, como uma pedra, era deslocado ao longo da corda para produzir sons. Com isso, ele conseguiu estabelecer relações matemáticas entre os sons de sua primitiva escala – por exemplo, a relação de um Lá para um outro Lá, imediatamente mais agudo, é de 1:2, ou seja, o segundo Lá tem o dobro da frequência do primeiro.


Heinrich Hertz
Passaram-se séculos, e um físico alemão, Heinrich Hertz (1857-1894), definiu as relações de frequência, cuja unidade de medida leva seu nome. Quando se diz que o piano ou a orquestra afinam em 440 Hertz, refere-se às unidades de frequência classificadas pelo alemão. Aquela forquilhazinha metálica que os músicos batem e colocam no ouvido produzem um Lá 440 Hz para orientar a afinação de seu instrumento.  



O círculo (ou ciclo) de quintas
Complicado? Não, mais simples do que um jogo de damas. Acontece que, voltando a Pitágoras e Hertz, foi-se descobrindo que essas relações não se “casam”com o ouvido humano: tanto as do alemão quanto as do grego. Ou seja, por incrível que pareça, a física teima em não obedecer aos nossos ouvidos (e vice-versa): o ciclo de quintas de Pitágoras, faz a escala terminar com uma sobrazinha nada pequena: ao final, se começamos o ciclo em um Dó, onde deveríamos encontrar um Dó mais agudo, já não é nota de mesmo nome, é outra.

Manuscrito: "Cravo Bem Temperado"
Difícil entender? Vamos seguir: essa diferença final se chama “coma pitagórica” (homenagem ao ilustre grego), e para resolvê-la e adaptá-la aos instrumentos o homem tentou várias formas de afinação, ajustes que possibilitassem aos músicos tocarem e cantarem em conjunto. Inventou-se, assim, um certo “meantone”, meio forçado, que possibilitava aos músicos tocarem juntos em duas tonalidades – imagine, apenas duas dentre as 24 utilizadas, sem falar nas modais, que são outra história. No período barroco usou-se um certo "temperamento desigual”, sistema adotado por Bach (daí o “Cravo Bem Temperado”, de 1722, série de peças em que o Mestre de Capela demonstra ser possível tocar seu “Cravo” e os Prelúdios e Fugas em 24 tonalidades maiores e menores) e Pachelbel (1653-1706), que também fez suas incursões no sistema. Por fim, veio o "temperamento igual", que acabou sendo adotado em todo o mundo ocidental até os dias de hoje. Mas cuidado: na Índia e outros países do Oriente e Oriente Médio existem escalas diferentes, microtonais – como o nome diz, com partículas menores do que as de nosso sistema (mas isso é assunto para um tratado em vários volumes, não um artigo). Mais tarde, surge um novo sistema, o “temperamento igual”, que permanece até hoje.


Afinador eletrônico ("tuner")
A história não resolveu de vez o conflito entre nosso ouvido “pitagórico” e o sistema proposto pela física acústica. Hoje, qualquer celular pode baixar um aplicativozinho para afinação de instrumentos (os “tuners”). Resolvido? Não, nunca. Pode até servir para orientar o estudante ou o músico, mas abre espaço para uma verdadeira confusão. É que o maldito aparelho trabalha medindo frequências, como nas ondas de Hertz, sempre nas proporções físicas de 1:2, para a oitava de Lá a Lá ou Dó a Dó, 2:3 para Dó ao Sol logo acima deste, e daí por diante.


Pode até ser útil para o afinador de piano guiar-se no início, mas da metade do teclado em diante, para cima e para baixo, ele tem de confiar em seu ouvido de perito, fazendo ajustes sem o aparelho, para que, ao terminar, os agudos não soem horrivelmente desafinados para baixo e os graves igualmente para cima. Conclusão? A física não explica nem resolve a questão do ouvido humano, apenas explica o fenômeno físico. (Lembro-me de uma frase de efeito, se não me engano, do comentarista de economia Joelmir Betting: “a única coisa que sobe igual ao índice de inflação é o índice de inflação”).

"La Callas"

Finalizo na questão do gosto pessoal, como afirmei no início. Violinistas e cantores, entre outros, “desafinam”, especialmente em determinadas notas da escala que são “atraídas” por outras, o que agrega um “tempero” agradabilíssimo às suas interpretações. Os mitos Jasha Heifetz, Maria Callas e Pablo Casals “desafinavam” com extremo bom gosto, parte que era de suas performances memoráveis. Na música popular, ninguém desafinou tão bem como Bob Dylan, Mick Jagger, Janis Joplin, Billie Holiday... e por aqui Cazuza, Maria Bethânia - e Tom Jobim, mestre maior. O bom gosto antes de tudo.

(Desfrute abaixo do grande e inconfundível Jobim: Ana Luiza)


sábado, 14 de setembro de 2013

RECEITA PARA FAZER UM MÚSICO. E CONVIVER COM UM DELES

Quem vai a um concerto, a uma apresentação de balé, ou, ainda, uma partida de futebol, geralmente desconhece o quanto custou chegar àquela hora ou hora e meia de espetáculo. Não conhece as rotinas diárias de artistas e atletas. Um pianista, músico de orquestra ou banda passa várias horas diárias com seu instrumento, entre escalas, arpejos, métodos, estudos longos e repetitivos, e só depois passa ao estudo de uma obra, prática que se baseia na repetição de trechos, frases ou uma ou duas notas. (Uma grande violinista japonesa usa dois pequenos potes, um vazio e outro com 20 feijões. A cada repetição satisfatória de um trecho, um grão é retirado e colocado no pote vazio, até terminarem. Daí, passa à próxima frase).

A bailarina passa muitas horas por dia em exercícios na barra, fazendo movimentos repetitivos, que muitas vezes a levam a precisar de um bom massagista. O jogador de futebol, ao entrar em campo para enfrentar os 90 minutos, passou a semana, todos os dias, horas por dia, a correr levantando a perna, fazendo polichinelo, flexões, nada que aparentemente se assemelha a uma partida de futebol. Os estudos dos músicos, os exercícios corporais da bailarina e a rotina de treinos do jogador em tudo se assemelham em busca de uma boa apresentação. “A gente trabalha / o ano inteiro / por um momento de sonho / pra fazer a fantasia / de rei, ou de pirata ou jardineira / pra tudo se acabar na quarta-feira” (“A Felicidade”, de Tom e Vinicius).


Uma ótima Rainha da Noite
E a cantora, que entra em palco para apresentar uma bela ária, como a “Rainha da Noite”, de Mozart (“um inferno vingador bate em meu coração”), ou a trágica morte de Violetta, na Traviata de Verdi? (aquela em que, tísica e moribunda, ela se despede de sua paixão: “Amami, Alfredo!”). Pois todos os dias, todos os meses, todos os anos, e há muitos anos, a diva trabalhou seus vocalises exaustivamente. Mão sobre o teclado do piano, tocando uma vez um acorde fixo, para guiar a tonalidade, ela repete, arpejando: moa-moa-moa-moa-moo-oo-ah... Sobe meio tom, e repete: moa-moa-moa-moa-moo-oo-ah... Mais meio tom, e assim por diante, até a nota mais aguda que ela suportar. E recomeça tudo, da nota mais grave de seu registro (algo como o tipo de timbre de voz), desta vez mudando a sílaba: ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri... e depois com outra sílaba, até concluir o longo aquecimento. (Veja e ouça abaixo a virtuosíssima Diana Damrau como a Rainha da Noite da Flauta Mágica de Mozart, com Sir Colin Davis à frente da Royal Opera House).

Diana Damrau 



O canto final de Violetta: "Amami, Alfredo!"
Ah, sim, cantora pronta, depois de bons estudos, encarna sua Violetta - um pigarro de leve antes, para não arranhar a garganta -, para cantar sua súplica de amor para Alfredo, em “La Traviata” (...) “de alegria em alegria / escorrendo sobre a superfície / do destino da vida da maneira que eu quero. / Quando o dia nasce / ou quando o dia morre / com alegria me volto para novos deleites / que fazem meu espírito se elevar” (trad. livre).


Não, Violetta, você não está pronta! Repita frase por frase, o trecho inteiro várias vezes, corrigindo-se! Ao terminar, passe para a próxima ária, e não se esqueça de parecer tuberculosa ao implorar, moribunda: “Amami, Alfredo!!!” Não, Violetta, precisa ser mais dramática, diria repreendendo o métteur-em-scène, diretor da ópera. Você tem que estar perfeita, convincente, divina, e morrer lentamente, fazer o público derramar lágrimas! (Não posso me furtar de contar uma anedota real: estava o grande regente Sir Thomas Beecham (desenho acima) ensaiando este trecho, quando, logo após uma pausa, o tenor dirige-se a ele para reclamar que aquela Violetta demorava demais para morrer, roubando-lhe a cena. O maestro: “Sir, nenhum cantor morre tão rápido quanto eu gostaria”. Piadinha maldosa típica do maestro, autor de dezenas delas). (Veja e ouça abaixo a dramática morte de Violetta, gravada pela incrível Monserrat Caballé em 1965).

Montserrat Caballè



Quem vai se casar com uma cantora, um instrumentista, casa-se também com uma rotina de estudos diários, escalas, arpejos, vocalises, passagens repetidas – como se diz em música, “ad aeternum” (pela eternidade). Muitos músicos se casam com músicos, às vezes de uma mesma orquestra. Ou de outra área, mas mantendo a cumplicidade nos estudos. Em casa, cada um em seu canto (e quando possível em seu próprio estúdio), usa de sua introspecção para se abstrair do parceiro músico. Quando ele ou ela não é do ramo musical, fica mais difícil, mas o convívio e a abstração vêm com a experiência de fazer outra coisa, como escrever textos, conferir a contabilidade da empresa ou simplesmente distrair-se.

Como fui casado com musicista, e entre meus quatro filhos uma é violoncelista, assim como o caçula, e a penúltima é um belo talento para flauta, conheço bem essa vida. Quantas vezes não dormi ouvindo duas pessoas estudando em quartos diferentes! O barulho de uma motocicleta me incomoda, mas a música... ela me embala. (“Nós somos os cantores do rádio / levamos a vida a cantar / de noite embalamos teu sono / de manhã nós vamos te acordar”, diz a letra dessa obra-prima de Braguinha, Lamartine Babo e Alberto Ribeiro). (Veja e ouça abaixo, uma recriação divertida do sucesso de Carmen a Aurora Miranda com Chico, Nara Leão e Bethânia, em cena do filme Quando o Carnaval Chegar).




É por necessidade que o músico chega cedo no palco para aquecer dedos, braços ou embocadura, além de aclimatar seu instrumento – sob refletores, a cada 10 graus Celsius a afinação das cordas cai um terço de tom e a dos sopros sobe outro tanto. É preciso se preparar, e quando todos já estão ouvindo a si próprios, abstraindo-se do som dos colegas e em perfeita introspecção – virtude dos bons artistas e dos bem preparados para ouvir música -, é nesse exato momento que se desenvolve - para os que já se acomodaram na plateia ou estão entrando - uma música diferente, sem forma ou tonalidade, apenas sons difusos. Agora, silêncio, por favor! Vai começar o concerto! 

sábado, 7 de setembro de 2013

A MONTE SANTO DE RUTH LUZ E AUTRAN DOURADO



Monte Santo de Minas
Monte Santo de Minas é uma cidade de 20 mil habitantes situada no sul do estado, pequeno círculo de onde à noite se avista iluminada Mococa, na fronteira paulista. Como acontece com frequência no interior, especialmente em Minas, o nome da cidade se refere a uma paróquia – no caso, a Paróquia de São Francisco de Paulo do Monte Santo (paróquia era um pré-requisito rumo ao status de município). Parece um nome caudaloso, mas perde para Sabará de Minas: Paróquia da Vila Alegre e Sorridente de Nossa Senhora do Ó de Sabarabuçu. 


Ciclo do ouro em Minas: selo comemorativo
Pois Monte Santo, da bateia do ciclo do ouro, terra de bom café – a cidade toma o “b” e exporta o “a”, eu prefiro mesmo o tipo “b” -, tem um fenômeno natural: a população decresce com os anos. Enquanto os rapazes, ao terminar o “grupo” (a escola de antigamente), saíam em busca de estudo ou trabalho em cidades maiores como São Sebastião do Paraíso, São Paulo, Belo Horizonte ou Rio, as moçoilas ficavam sob as vistas de suas mamães, dedicadas às inevitáveis prendas domésticas. Desnecessário dizer que, para os rapazes que ficavam, havia moças bonitas de sobra, braços dados em grupo, costume do passado que os tempos modernos roubaram. 


Autran Dourado, escritor
Muitos nomes importantes saíram de Monte Santo de Minas. Do popular Milionário, da dupla sertaneja de raiz, par de Zé Rico; meu avô, juiz de direito que lá começou a longa carreira até desembargador (foi homenageado com seu nome encimando o Foro da cidade: “Telêmaco Autran Dourado”). Meu pai, o escritor Autran Dourado, foi celebrado cidadão montessantense com uma bela festa e recepção em toda a cidade. Disse ele que (mesmo com todas as glórias da carreira literária, observo eu), foi a mais emocionante de todas as honrarias que recebeu. Estive nos dois eventos, fiquei deliciado com a recepção.  


Em uma birosca comprei dois mimos para meus filhos, dois brinquedos que há algum tempo perderam para os celulares e games: um pião e um bilboquê de madeira para cada um. (Difícil foi ouvi-los dizer, quando entreguei os presentes, “o que é isso?”. Pois eu mesmo tive de reaprender, para ensinar). Ah, trouxe também bolas de gude, para jogar “bola ou búlica”, coisa assim. Claro, também em vão. 


Profª Maria Ruth Luz, autora do hino
Monte Santo, terra de boas famílias, daquelas tradicionais. Uma delas, bastante conhecida na cidade, é a dos Cerqueira Luz, que possui um elo curioso com Tatuí. Paulo de Cerqueira Luz, falecido em Tatuí em 1978, e Maria Ruth Luz, professora de educação artística e musicista, falecida também na cidade (2010), eram montessantenses da gema. 


O Casarão dos Guedes, em foto da época
Recentemente, Ruth foi homenageada com uma creche municipal em Tatuí que ostenta seu nome na fachada. Paulo e Ruth formavam um casal respeitado, e enquanto ela dava aulas no recém instalado Conservatório de Tatuí (1954), inicialmente no hoje combalido Casarão dos Guedes, alugado pelo governo da época para abrigar as aulas, ele trabalhava como negociante. Pois Maria Ruth Luz participou desde a primeira reunião do Conservatório, naquele ano, no dia 16 de agosto (temos a ata!). Em 1960, foi eleita para o Conselho Técnico Administrativo, junto com Yolanda Rigonelli e o maestro Spartaco Rossi, entre outros. Ruth e seu marido Paulo, também pintor e músico amador, faziam um belo par artístico: juntos, em 1961, tiveram oficializado como Hino da cidade pela Câmara Municipal a obra “Tatuí, cidade Ternura”. 


A aprazível Caconde, SP
O casal estabeleceu-se de vez e deixou sementes plantadas para o futuro: muitos músicos importantes e cidadãos de Tatuí passaram pelas mãos da professora Ruth, tida como um doce de pessoa mas uma instrutora severa. (Eu, particularmente, não vejo como formar bons músicos sem muita exigência, disciplina rígida e dedicação. Não conheço bom músico formado só no “muito bem, muito bom, parabéns”). Ela ainda se dedicou à composição com interesse especial, e entre suas obras está também o hino de Caconde, sempre em parceria com o companheiro de vida, Paulo de Cerqueira Luz. 


Antiga estação ferroviária de Monte Santo de Minas
Meu pai, criado em Monte Santo até os 17 anos (quando meu avô foi transferido para a capital), nasceu em 1926, sendo portanto apenas dois anos mais velho do que Ruth Luz. Seus irmãos, todos também realizados profissionalmente na capital mineira ou no Rio de Janeiro, e minha tia Francisca, que, pela idade, seguramente deve ter tido algum convívio com Ruth Luz seja na escola, nas festas, folguedos, passeios de mãos dadas... Infelizmente, com meu pai já em outro destino, assim como todos os irmãos dele (exceto minha tia), resta-me apenas a ilação de uma possível convivência, ou ao menos um possível conhecimento da família Luz. Foi lá, em Monte Santo, que meu pai se inspirou para criar sua cidade mítica, Duas Pontes, que perpassa toda sua longa obra literária. Foi também de Monte Santo de Minas que ele trouxe o jeitão mineiro, interiorano e circunspecto, retrato do artesão da palavra escrita que entrou para a história. 


Teatro Procópio Ferreira: Conservatório de Tatuí
Não sei se acredito em acaso, e nem interessa muito, porque não acrescentará nada ao mundo minha crença particular nisso ou naquilo, além de minha fé própria, que é do meu arbítrio. Mas acredito muito em destino, em predestinação, seja pela vontade de cada um ou por algum tipo de interferência superior – longe de mim querer compreendê-la, apenas a sei existir. Pois quis esse destino levar um filho de montessantense, pequenina cidade de Minas, a ser o diretor da mesma escola onde uma outra cidadã de Monte Santo fez sua vida e carreira. E me sinto muito bem sabendo desse laço oculto. Cumplicidade de mineiro.