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terça-feira, 26 de setembro de 2017

AUTRAN DOURADO, ROMANCISTA. Pai, herói e amigo - Parte I


Casa onde nasceu
(Trinta de setembro. Cinco anos que partiu!) O velho Autran não era muito de conversar sério, mas com seu jeito zombeteiro conseguia entremear conselhos sábios, tiradas filosóficas e usar a aguda visão política de um rapazola que fora inscrito no Partidão, de onde saiu por perceber que a ‘patrulha’ queria interferir em sua literatura. Viveu com os pés no barro de quem foi muito Brasil, desde as Minas Gerais de sua Monte Santo, que inspirou a mítica cidadezinha de Duas Pontes, recorrente em seus livros. Aos 19 já publicara um livro, porém a mim ensinou a não tentar ser precoce na vida, repetindo a lição que lhe havia sido dada pelo escritor Godofredo Rangel, que seguiu à risca desde o início. Não seja precoce, seja perseverante, obstinado, dizia – uma formiguinha, analisou um crítico há alguns anos, conforme veremos adiante.
Com Hélio Pellegrino e Maria Urbana, sentados no sofá
As conversas com os amigos, especialmente os que frequentavam nosso apartamento em um predinho de três andares sem elevador, se eram entre risadas com o Otto Lara Resende ou o Hélio Pellegrino, pareciam ser mais sérias nas domingueiras com Clarice Lispector, quando o assunto passeava por Schopenhauer, Goethe e Kafka. Mais tarde eu iria me iniciar nas leituras dos grandes pensadores da esquerda ‘real’, levado, como o pai no passado, pelo canto da Lorelei que, à beira do rio Reno alemão, com seu corpo deslumbrante e voz virtuosa atraía barqueiros pela sua formosura. Inebriados pelo uivo, digo, canto do vento em uma reentrância das margens do rio, os barqueiros eram lançados para dentro de um grande vão nos rochedos, e suas embarcações espatifavam-se contra as pedras, fazendo-os vítimas de suas próprias ilusões. A minha Lorelei, no caso, era o fim das torturas, a liberdade intelectual e artística e a justiça social.
Momento solene: JK, Israel Pinheiro (de pé), e Autran Dourado (óculos, à direita)
Nomeação de Pinheiro para a presidência da NOVACAP, empresa que construiu Brasília

Pois minha atração pela vigiada esquerda estudantil daqueles tempos não via a risca tênue a separá-la do ingresso em uma revolução visionária. Era tudo a que se resumia na época a vida dos jovens sonhadores, tal qual acontecera com meu pai. Um dia, em Petrópolis, ele me convidou para um chopinho no tradicional D’Angelo. Lá, falou sério sobre sua vivência, primeiro taquigrafando falas do Luís Carlos Prestes na Assembleia de Minas. Mostrou também a sabedoria acumulada nos tempos de JK, de quem foi Secretário de Imprensa. Contou sobre sua longa ‘sala’ para – sim, ele mesmo, meu então ídolo - Che Guevara.
Não foi carrancudo em um pedestal, nem foi com intenção de me desmontar, do alto de sua experiência, apenas usou a tática correta, quem sabe remanescente de seus estudos dialéticos. Falou-me da expressão “democracia y libertad”, que ouviu incontáveis vezes de um verborrágico Guevara durante horas a fio, prática dos sermões em forma de discursos do comandante Fidel.
Em um duplo movimento, ‘roque de xadrez’, o pai se aproximava do filho ombro a ombro, mostrando como aquele canto da sereia atraía os jovens para o enfrentamento da ditadura. Lembro-me especialmente de ter ouvido a expressão “bucha de canhão”: enquanto a juventude era presa, torturada e às vezes morta, os “velhos” – alguns bastante conhecidos – ficavam encastelados no controle como em um videogame, preservando-se com a desculpa de serem a ‘inteligência’ da luta armada, que haveria de prosseguir e vencer. Começou a cair ali, na chopada, meu sonho irrealizável. (Alguns dos seduzidos pela cantilena da luta: jovens como Dilma, Dirceu e Gabeira). 
Viaduto Paulo de Frontin
Fora essas raras lições, falava dos livros, da necessidade de ler, uma enfermidade sadia que contaminou seus quatro filhos. Ontem mesmo, na rua, pensando em Dom Casmurro, do Machado, lembrei-me de mais uma frase lapidar que meu pai proferiu. Eram tempos pós-tragédia da Paulo de Frontin, no Rio (“Caía a tarde feito um viaduto”, pensei nos versos do Aldir Blanc), e afirmou que se todo mundo lesse Machado de Assis menos viadutos cairiam, menos pessoas morreriam na mesa de cirurgia. Hoje arrisco, com o beneplácito dele de lá de seu merecido descanso, que menos corrupção haveria!
Machado de Assis, nosso escritor maior, como o chamava, era seu porto seguro. Entre outros, alternava o carioca com Flaubert, Joyce e Faulkner. E passava horas lendo, e em algum momento e lugar inesperados a “ideia súbita” (não acreditava em inspiração) lhe surgia. Primeiro, ia anotando tudo em taquigrafia ­– a espanhola, mais rápida, dizia, com uma ponta de orgulho -, aprendida nos tempos da Assembleia de Minas.
Era taquigrafando que anotava detalhes em cartõezinhos que levava nos bolsos, peças do quebra-cabeça com que arquitetaria um futuro livro. Uma vez traçados os contornos principais da nova obra, punha-se a escrever desesperadamente, como se estivesse ficando – ou evitando ficar, sei lá – louco. E tudo isso com uma rotina metódica, um trabalho de carpintaria, dizia ele. Sua confidente era minha mãe, Lucia, que lia seus originais, e ele não mais costumava comentar sobre o que estava fazendo. Apenas uma vez perguntou-me se havia uma sonata em Fá de fulano (não me lembro a quem ele se referiu), e eu disse que sim. Achou bonitas as palavras, pois embora gostasse de música não era nada chegado à teoria, títulos e afins. Apenas ouvia. E usou a tal sonata em um texto, soava bem, pareceu-lhe.

Depois que terminava de escrever uma obra, a ressaca. Um dia ouvi uma frase do Jorge Luis Borges, o livro só acaba quando está impresso. Pura verdade que eu só vim a confirmar mais tarde, em minhas teses e livros técnicos, que só dei por terminados depois de vê-los impressos, seguros nas mãos. Coisa de formiguinha, pai! (Continua na próxima semana)

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

AOS MÚSICOS E AMANTES DA MÚSICA - PARTE II

(Continuação da Parte I, disponível no link à direita)Ideias se desenvolvendo, fui tomado de uma outra intenção, um depoimento sobre a condição do músico: dificuldade de estudar, insegurança profissional, precária organização das instituições e o descaso geral, sem esquecer a visão preconceituosa. Chega a surpreender que até hoje ainda existam música popular de qualidade e orquestras sinfônicas no país, fora a enorme produção de mau gosto imposta goela abaixo pelas mecas televisivas.
Um pouco de brincadeira, curiosidade, reflexão e algo de autobiografia, se além de diversão introduzir elementos musicais e ajudar o leitor a ter um quadro mais claro sobre a profissão do músico, estarei satisfeito. Preocupei-me com a reação de pessoas ou seus familiares, mas o estigma do exótico está tão incorporado à trajetória do músico que em geral o artista se diverte com o folclore criado sobre si mesmo. Qual filho não riu das maluquices do pai músico? E as estranhezas de seu vizinho compositor? Que artista pode autoproclamar-se absolutamente sério? (Em inglês, francês e alemão tocar é to play, jouer e spiel, respectivamente, que também significam brincar).
Professor de música, era natural que eu começasse a esboçar certa preocupação didática. Se for possível distrair o leitor que possui algum conhecimento musical, por que não aproveitar para enriquecê-lo com algumas pitadas de expressões técnicas ou fatos relevantes? Entre a história e a estória, concluí que a própria bibliografia já nos havia legado um ótimo repertório de curiosidades, até mesmo nos livros e compêndios ditos “sérios” sobre História da Música, onde o anedótico se veste com o charme do pitoresco. Procurei ser didático citando nomes, sempre com a preocupação de informar sobre datas, locais, obras, expressões técnicas e mesmo certo tipo de gíria profissional.
Revisitei livros e anotações em busca de informações já incorporadas ao folclore do músico, despertando minha memória oculta. Estórias que havia lido, vivido ou ouvido começaram a pipocar em minha cabeça. Usava um minigravador durante as longas horas que passava diariamente no trânsito congestionado de São Paulo.

Adoniran e o Trem das Onze
Artigos da imprensa, bate-papos, páginas de livros e anedotas, tudo se transformou em fonte. Por isso, longe deste texto o chamado rigor científico, são meras reflexões! (O apresentador de Rádio e TV Flávio Cavalcanti deliciava-se em encontrar erros nas letras das músicas. Quebrou o disco do Adoniran Barbosa (1910-1982) porque foi checar aquele famoso "se eu perder esse trem que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã" e, ao vivo, ligou e descobriu que havia mais duas viagens, a próxima às onze e meia. O desastrado rigor científico de Cavalcanti quebrou-lhe o disco ao vivo e se esqueceu de que o trem das onze poderia ser uma mentirinha do filho mimado para despedir-se da amada e voltar para casa).
Mesmo em vista da informalidade do texto, convém lembrar fontes como as cartas pessoais de grandes compositores, reproduzidas em livros como Appassionata, de Kurt Pahlen. No Conselho Municipal de Cultura de São Paulo conheci o operófilo Edson Lima, que me emprestou um livro raro, Risos e Lágrimas no Mundo da Música, de Gumercindo Saraiva, algo como as Curiosidades publicadas nos anos 1950 por Letícia Pagano. Mais lágrimas do que risos, com jeito de almanaque, Saraiva trouxe algumas estórias que pude confirmar, inspirando o bom humor do texto.
O amigo Aylton Escobar tinha um curso de pós de História da Regência, na USP,essencial para o texto sobre maestros. Músico instigante, de cultura e inteligência fora do comum, Escobar foi peça decisiva para a compreensão do regente e tudo o que é preciso para ser um deles. Fora, é claro, saber reger.
Mário de Andrade
Gostaria de ter usado a linguagem irreverente do Mário de Andrade. Infelizmente, faltou-me o talento do mestre, mas espero, inspirado nele, ter criado uma leitura agradável. Mário não freava aqueles pensamentos que às vezes nos assaltam quando lemos sobre a história chamada ‘séria’. Deixei escapar expressões como "coisa de maluco". (O filósofo e musicólogo alemão Theodor Adorno escreve "ridículo" e "o som eunucóide da jazz band com naturalidade).
Sid Vicious
Minhas desculpas aos eruditos encasacados, cujos cabelos poderão ficar arrepiados diante da simples menção a nomes como Sid Vicious, do Sex Pistols, ou Kurt Kobain, do Nirvana, entre outros. Vicious, como músico, foi muito fraco, mas é personagem muito importante para se compreender o comportamento de um artista no chamado fundo do poço.  

As referências desde já serão abandonadas definitivamente, A matéria-prima sobre a qual se fundamenta este texto reside basicamente em minha memória, na vida de músico e professor. Informações foram colhidas nas mais diversas fontes. Fatos do passado podem mesclar-se a outros recentes, e tome situações, causos e anedotas ouvidos em bate-papos ao longo de muitos anos nessa divertida estrada - como os personagens circenses do filme La Strada, de Felini - de músico. O mundo está em crise e o país à deriva, mas a música tem o condão de fazer mais suaves nossos pesadelos - assim como fez Wallace Hartley, do Titanic, que não parou a valsa enquanto o navio afundava.
Homenageio os colegas músicos, que se divertem mas amargam o dito “orquestra é como sítio, só tem duas alegrias: quando a gente entra e quando sai”. No fundo, a lida musical diverte, mas faz sofrer. Cantam em uníssono samba e fado: a gente vai levando, navegar é preciso.

[Terminada a segunda parte da introdução, em breve passarei ao texto propriamente dito - a parte mais divertida das estórias]

sábado, 16 de setembro de 2017

PARA MÚSICOS E AMANTES DA MÚSICA – PARTE I

O Aurélio acha que tudo deve ser história com agá, mas prefiro reforçar o caráter do texto com estória mesmo. Já o Houaiss identifica estória como “narrativa de cunho popular e tradicional.” (Os ingleses, corretamente, não abriram mão de story, que é bem diferente de history). Posso justificar essa escolha. A ideia de escrever este texto vinha sendo acalentada há tempos, e quase que partiu do título. Desde o início da minha carreira, seja nos conjuntos de Música Popular e orquestras, e mesmo durante os muitos anos de estudo, pude somar experiências, estórias e situações inusitadas, tão particulares do músico. Com o passar dos anos, passei a temer que essas informações pudessem se perder, pois amontoaram-se em minha memória e, por falta de espaço, muita coisa já estava sendo deletada (ah, esses neologismos de hoje).

Músicos senegaleses em bate-papo 
Conversar fiado sempre foi uma das atividades favoritas dos músicos, quando longe de seus instrumentos. O bate-papo nos bastidores, camarins ou esquinas, além de divertir servia também para saber de algum disco recente, o estilo de alguma estrela do jazz ou da regência, a performance de algum colega ou mesmo técnicas para execução de uma ou outra passagem musical. Esses assuntos, apesar de informais, com o passar do tempo acabam por se fundir, com naturalidade, no panelão da História (com agá) da Música, com seus aspectos mais insólitos e pitorescos.

Aproveitando essa interação entre formalidade e informalidade, aviso aos navegantes que grafo Música e Cultura com a inicial maiúscula ao invés de minúscula. Conforme o caso, prefiro música e cultura, assim mesmo, e por igual razão escrevo maestro ou Maestro, a depender do regente (essa última, por sua vez, é uma palavra que para mim implica em mero gerúndio, aquele que está regendo. Um Maestro é um Mestre).
PDQ Bach (fictício)
Para melhor esclarecer essas peculiaridades do texto, deve-se lembrar do inesgotável repertório de anedotas sobre a classe. Mesmo sabendo que boa parte foi extraída de casos reais, mas acabou inserida nesse verdadeiro folclore pelas mãos mágicas do tempo. Por isso neste texto qualquer semelhança entre a história e fatos ou pessoas verdadeiras na maioria das vezes não é mera coincidência.

O anedotárío sobre músicos é parte integrante do dia a dia dos profissionais, e cada orquestra tem seu piadista de plantão - como o violinista Rastelli, da Sinfônica de Campinas. Era no mínimo uma nova por dia (impossível conhecer tantas, devia inventar). Certo dia, durante um intervalo entre ensaios, no City Bar – então bar de média categoria e hoje point  e must em frente ao Centro de Convivência -, Rastelli, cercado por colegas junto ao balcão, disse: "Hoje vou contar uma de português". Do outro lado o antigo dono do bar, exclamou, irritado: "Pois não estás a ver que sou português?' Rapidamente, Rastelli retrucou: "Não tem problema, se não entenderes eu conto de novo".

O irreverente grande maestro e piadista Hans Von Büllow
Deixando de lado por enquanto o anedotárío, o conhecimento de fatos pitorescos da vida de instrumentistas, regentes e compositores é parte da vida do músico, costume que não vem de pouco tempo: talvez finque raízes em épocas tão remotas quanto as das manifestações artísticas mais primitivas (o grande Maestro Hans von Büllow costumava dizer: “No princípio era o ritmo").

Inicialmente, para este texto, passei a registrar as estórias de forma mais ou menos aleatória, do jeito que emergiam à lembrança, esperando que alguma hora eu pudesse concatená-las sem o risco de privá-las da naturalidade com que foram surgindo. Quando esses fatos, causos e anedotas começaram a se encadear, esboçaram-se tamanhas semelhanças entre eles que o texto passou a tomar corpo de forma natural, agrupando-os em frases, parágrafos e capítulos, como em uma composição musical: entretela de temas, variações, desenvolvimentos, recapitulações, seções e finalmente movimentos. As ideias foram se sucedendo, em improviso, tecendo aqui e ali verdadeiras cadências musicais.

Muito embora minhas reflexões tentem respeitar certa cronologia, torna-se necessário com frequência preterir o tempo em favor do sentido universal que empresto ao texto. Colaboram para quebrar a sequência histórica a interferência de fatos recentes nas descrições de acontecimentos do passado longínquo e vice-versa. Posso dizer que o verdadeiro Leitmotiv do livro é a personalidade ímpar dos músicos, nem tanto sua história ou sua obra.
Gossips - Rockwell 1944
Outra característica importante a ressaltar é o aspecto da transmissão oral (gosto de dizer: aural, de aura) de boa parte dessas informações. Muitos fatos e situações narrados - seja por simples lembrança ou complementados por pesquisa - surgiram do registro de relatos ouvidos e vividos, de uma forma ou de outra também passados adiante em corrente e gravados na memória de uma verdadeira teia de interlocutores.

Consciente de que interpretava fatos que pertencem tanto a vivências pessoais quanto ao patrimônio tombado da música universal, uma vez que o trabalho tomou corpo surgiu uma natural preocupação com os personagens que surgiam em cena. Situações passam a tomar um colorido especial, dando lugar à imaginação de quem as descreve - pois isso não é interpretar? Preocupava-me, entretanto, o fato de que as estórias narradas - sujeitas, é claro, a versões - traziam frequentemente nomes de pessoas vivas e situações reais. Explico: a natureza dos causos chega, às vezes, ao absurdo, e não raro desnuda situações francamente vexatórias, surrealistas ou até mesmo pornográficas. Essas últimas, por vício corporativista e preservando certo decoro da classe, tratarei de mascarar e deixarei de pormenorizar.

[Continua na próxima edição]

sábado, 9 de setembro de 2017

SAUDADE, SAUDADAR

Reza a lenda que saudade é palavra que só existe em português, e, nas águas do nosso ufanismo hoje meio em baixa, só cá no Brasil. Mas ela também existe em outras línguas latinas, como o espanhol, añoranza, nostalgia, morriña; com o mesmo sentido, rimpianto, em italiano, ou regret, em francês. O curioso é que em romeno, língua neolatina, saudade é “dor”, o que vem de encontro ao que vamos ver, no uso em português. Mesmo não sendo língua latina, na Alemanha, que tem palavra para tudo, e se não há, criam – “terra em que se juntando tudo dá”, lembraria Vaz de Caminha –, saudade está lá, em Sehnsucht. Mas, que pena, não temos o verbo ‘saudadar’ em nosso idioma, nisso perdemos para o inglês, to miss, e o alemão, vermissen (sentir falta de), que tem ambos, verbo e substantivo!
O meu amigo e linguista Deonísio da Silva, lido por estudiosos e escritores, traz algumas observações valiosas sobre a saudade (De Onde Vêm as Palavras. RJ: Lexicon, 2014. 17ª ed.):  “do latim solitate, solidão. No português arcaico, deu origem a ‘soedade’ ‘soidade’, ‘suidade’”, embora, ressalta ele, não haja unanimidade entre os etimologistas (estudiosos da origem das palavras). Silva mostra outra pérola: “Em árabe, as palavras suad, saudá, e suaidá têm significado dramático, algo como “sangue pisado e preto no coração”. Ai, a saudade dói!
Casimiro de Abreu
Tão repleta de significados, a saudade da Pátria, da terra natal, da infância, tem sentido todo especial – tanto em são Paulo, onde é frequente dizer tenho ‘saudades’ ou ‘ciúmes’, e no Rio, Minas e Bahia, elas costumam aparecer no singular. O poeta carioca Casimiro de Abreu (1839-1860) escreveu um poema que todos conhecem, “A Saudade da Pátria e da Infância”, inspirado em Gonçalves Dias: “Oh! Que saudades eu tenho / da aurora da minha vida / da minha infância querida / que os anos não trazem mais! / Naquelas tardes fagueiras / à sombra das bananeiras / debaixo dos laranjais”. O irreverente modernista Oswald de Andrade (1890-1954) parodiou Abreu com fina picardia, em Meus Oito Anos: “Oh que saudades que eu tenho / da aurora da minha vida / (...) debaixo da bananeira / sem nenhum laranjais / (...) Eu tinha doces visões / da cocaína de infância...” Saudade de sua terra tinha Caimmy: “Ah, mas que saudade eu tenho da Bahia / ah, se eu escutasse o que mamãe dizia”, cantou ele. Que, como todo baiano, amava seu torrão apaixonadamente.
Um bom livro do meu pai
Há saudade de boas lembranças, dos grandes amores, dos bons momentos com os entes queridos que já não nos ladeiam. Do amor há a letra do imbatível Vinicius, com Carlos Lyra, em Primavera: “O meu amor sozinho / é assim como um jardim sem flor / só queria poder / ir dizer a ela / como é triste se sentir / saudade”. ‘Um jardim sem flor’, um coração vazio (em inglês, broken heart: quebrado, partido). A tristeza de não ver florir a paisagem, entregue à solidão e uma derradeira tristeza. Solidão Solitude é um livro de meu pai, Autran Dourado, publicado em 1972, que conta histórias tristes escritas mais de 20 anos antes. Várias refletem momentos da vida dele, alguns bem ruins, e outras remetem a personagens fictícios. A solidão é o irmão mais velho da saudade. 

Trata-se da mesma melancolia expressa pelo “Poetinha”, com Jobim, em Chega de Saudade (1958), talvez a pedra fundamental da bossa-nova: “Chega de saudade / a realidade / é que sem ela não há paz, não há beleza / é só tristeza / que não sai de mim, não sai”. Está tudo lá: quando o Poetinha fala de saudade, a tonalidade da canção é menor, que é geralmente preferida para expressar sentimentos como tristeza. E modula (passa) para tom maior, na segunda parte, que ajuda a expressar alegria, um rasgo de esperança a reavivar o coração: “Mas, se ela voltar / se ela voltar, que coisa linda / que coisa louca”. Melodia e harmonia falam com a letra. E todas juntas, em coro, cantam a saudade.

João de Barro
Em 1948, João de Barro - coautor, com Pixinguinha, do imortal choro Carinhoso - compôs, com Antonio Almeida, a singela toada A Saudade Mata a Gente, com gosto das coisas do campo: “...e na rede, nas noites de frio / meu bem me abraçava pra me agasalhar / (...) A saudade é dor pungente, morena / a saudade mata a gente, morena” (lembra a suad árabe, “sangue pisado e preto no coração”).

Dolorida também é a saudade pintada por Chico Buarque em Pedaço de Mim, décadas depois de João de Barro: “Oh, pedaço de mim / Oh, metade afastada de mim”, para ilustrar assim seu sofrimento: “...que a saudade dói como um barco / que aos poucos descreve um arco / e evita atracar no cais”. O desenho de um arco no mar é raro achado, coisa da erudição do compositor e de sua habilidade de escrever.


Falamos, há dias, de fé, e agora de saudade. Como é difícil tentar expressar alguma coisa a respeito de fé, credo, algo que se tem ou não, e, caso não, pode-se sempre vir a ter em um átimo. Tudo o que se puder escrever sobre ela não é mais do que uma gota no oceano que a palavra encerra. Tanto é que ainda não se concluiu nada, nem haverá de ser, à altura de sua natureza divina. E a saudade é um sentimento terreno, mas como avança sobre caminhos do coração torna-se igualmente difícil descrever, pensar com objetividade, o que só podemos tratar nos assuntos materiais. E cada um vê a saudade da cor que quer: Noel Rosa, após o funeral de sua mãe, foi para casa e vestiu-se, chapéu e camisa florida, direto para o boteco, para curtir sua fossa no velho conhaque. Alguém passou, viu, e lascou uma severa reprimenda: “Noel, cruzes, sua mãe acaba de ser enterrada e você aí no boteco, e com camisa colorida! Você deveria estar de luto!” Noel pegou sua caixinha de fósforos e improvisou: “luxo preto é vaidade / nesse turbilhão de dor / o meu luto é a saudade / e saudade não tem cor”. Percepção do gênio.

sábado, 2 de setembro de 2017

Palavra difícil, e infinita. Do latim fides, de onde fidelidade, confidência, fidedigno, é confiança em uma verdade sem necessidade de prova, uma vez que convicção de natureza pessoal. A "fidelidade amorosa”, para o linguista Deonísio da Silva, “é insistentemente requerida entre os amantes”. Trata-se, portanto, de palavra dissociada de ciência, tanto que assim está dela distinta no binômio fides et scientia. (Mas correm paralelas: “Ciência sem religião é imperfeita, religião sem ciência é cega”, disse Albert Einstein).

Segundo o Houaiss, consiste em uma das três primeiras virtudes teológicas, “pela qual o homem aceita as verdades reveladas por Deus”. No uso laico, é “confiança absoluta em alguém ou algo”, e, para a filosofia, “crença religiosa sem fundamento em argumentos racionais, embora eventualmente alcançando verdades compatíveis com aquelas obtidas por meio da razão”.

Francis John Wade
Na liturgia latina, o ‘credo’ (de credum in unum deum patrem, ‘creio em um Deus Pai’) é a terceira parte do Ordinário da missa, geralmente entoada entre o Evangelho e o Ofertório. Adeste Fideles (Vinde, Fieis), canção de Natal surrupiada pelo rei D. João IV, que a proclamou de sua autoria, chegou a ser Hino de Portugal, mas foi composta por John Wade no século 18: “Vinde, fieis, alegres e triunfantes / vinde, vinde para Belém / vejam o nascido Rei dos anjos / (...) Vinde, adoremos ao Senhor”. Esta canção só podia ser executada em locais autorizados, uma vez que o compositor era católico e a Inglaterra Anglicana. Em Portugal, deu lugar a ‘A Portuguesa’, de Lopes de Mendonça e Alfredo Keil, oficializada como Hino Pátrio em 1911: “Heróis do mar, nobre povo / nação valente, imortal / (...) Entre as brumas da memória / Ó Pátria, sente-se a voz”.

Do ponto de vista legal, fé significa “credibilidade que deve ser dada ao documento no qual se funda”. O tabelião anota: “o referido é verdade e dou fé” (presunção de autenticidade), uma vez que a pessoa investida do cargo tem “fé pública”. Entre os judeus, fé é emunah, acima de dogmas, e tem um sentido profundo na longa tradição hebraica. Está arraigada no sangue e nunca abandonada na tortuosa história de perseguições e peregrinações de seu povo desde a mais remota origem, pela própria natureza.

Na música popular, a fé está presente sob diversas formas, porém mais comumente no sentido religioso, como em Andar com Fé, de Gilberto Gil: “Andá com fé eu vou / que a fé não costuma faiá / que a fé tá na mulher / a fé tá na cobra coral / Oh, Oh, num pedaço de pão”. Para Milton Nascimento e Beto Guedes, a fé é a bússola, que guia todos em seus caminhos: “Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada / (...) vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada/ o brilho cego de paixão e fé, faca amolada”. A paixão e a fé brilham como uma lâmina! A letra faz mais referências bíblicas: “Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia / beber o vinho e renascer na luz de todo dia”, levando-nos com clareza ao pão e o vinho, símbolos do corpo e do sangue de Cristo, por Ele repartidos na última ceia (“tomai e comei”, “tomai e bebei”).

Na poesia, a fé aparece nos escritos pagãos, fora dos círculos religiosos, especialmente quando se fala de relações amorosas. Ora, existe declaração mais feliz do que o Soneto de Fidelidade, do Vinicius? “Que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”. Ou, quase que prosa, também do ‘Poetinha’, como o chamava Jobim, em Da Fidelidade: “Há alguma coisa maior que nós mesmos, que é a fidelidade a nós mesmos. Flor espantosa que vive das águas cáusticas e das terras apodrecidas da prodigiosa extensão humana”.

Fidelio: frontispício
Fidelis, de fiel, sincero, na Igreja Católica dá nome a um santo: Fidélis de Sigmaringa (Sigmaringen), adversário do calvinismo, da Ordem dos Capuchinhos e jurista, que é celebrado em 24 de abril. De Fidelis também veio Fidelio, que inspirou Beethoven na linda música homônima para a ópera com texto de Sonnleithner e Georg Treitsche, baseado em Léonore ou l’Amour Conjugal, sobre drama de Bouilly. Léonore, disfarçada de homem, conseguiu entrar em uma prisão de Tours, durante a Revolução Francesa, com o intento de libertar seu amado.

Fidel e o superior da Igreja Ortodoxa
Após o fracasso da estreia (1805), em Viena, Beethoven fez inúmeras modificações e trocou o título. Chegou a ter três versões: Leonore I, II e III – esta última tem a abertura considerada a mais bela, e com certeza a melhor de todas, e, confesso, particularmente a mais prazerosa de se tocar. Renomeada Fidelio, a ópera finalmente obteve grande sucesso na estreia de 1814, anos depois da primeira versão. De Fidelio, também, vem Fidel, como o próprio Castro cubano, de família católica, que estudou em colégios Jesuítas de Havana, sempre expulso por mau comportamento.


Esta aparente contradição do longevo ditador cubano é muito bem espelhada em Frei Betto, que teve nada menos do que 2 milhões de exemplares de seu “Fidel e a Religião” vendidos em Cuba, país com menos de 12 milhões de habitantes – edição seguramente subsidiada pelo regime. Entre questões de fé, não há contradições: ela tanto pode surgir como dúvida na vida de padres, pastores ou outros, quanto, até, significar uma ‘recaída’ entre ateus, caso de alguns que conheci, fato que geralmente acontece em idade mais avançada. E há muitos casos de conversão de materialistas históricos. Talvez porque, não conseguindo explicar o sentido de toda uma vida trilhada, desistem de fazê-lo via scientia, terminam por acatar os desígnios impenetráveis da fides.