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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O POETINHA E OS ORIXÁS

Escola Nacional de Música da UFRJ
No dia 5 de setembro de 2019 o jornal O Globo trouxe matéria estarrecedora, que comentei neste espaço. Na UFRJ, conceituada universidade brasileira, estudantes de música adeptos de certa Igreja se recusaram a cantar “Toadas de Xangô”, do ilustre compositor petropolitano Guerra-Peixe (1914-1993) - aliás, de formação católica, autor do “Hino do Colégio Nossa Senhora de Fátima”. Xangô é o orixá da justiça e do poderoso trovão, nos cultos afro-brasileiros, e Guerra pensou no tema como material brasileiro por excelência. Era a fase nacionalista, sob a influência do movimento liderado por Mário de Andrade.
Eleazar de Carvalho e suas "índias", na estreia de sua ópera
O Descobrimento do Brasil, em 1939
Também na música de concerto, Villa-Lobos, o “Índio de Casaca”, compôs sobre ritos indígenas, crenças de origem africana e... um “Magnificat”, de 1958. Francisco Mignone, autor de “Festa das Igrejas”, criou “Babaloxá”, de Babalorixá, que é o sacerdote nas religiões afro-brasileiras. Contemporâneo, meu amigo Ernani Aguiar, nascido na Petrópolis do Guerra e na época ateu, compôs “Cantos Sacros para Orixás” - e três “Missa Brevis”. O paraibano José Siqueira e o cearense Eleazar de Carvalho eram diretores da Ordem dos Músicos do Brasil, fundada em 1960, organização que sofreu intervenção da ditadura em 1964. A diretoria foi defenestrada, Siqueira acusado de comunista, mas Eleazar era notório conservador. O golpe sobre a OMB foi mordaça em sindicatos e organizações de classe (o interventor lá ficou por 40 anos!) Siqueira compôs o “Oratório Candomblé” e “Macumba de Pai Zusé”, com poema de Manuel Bandeira, deísta - acreditava em Deus e ponto.
Dorival Caymmi
Na MPB, Caymmi (“Oração de Mãe Menininha”) e Caetano (“Xangô manda chamar Obatalá Guia”), devotos da Umbanda. Sérgio Ricardo e Ruy Guerra (“Saravá, Ogum, mandinga da gente continua / cadê o despacho pra acabar”), Edu Lobo, de formação católico-jesuíta, é autor de “Arrastão”, com o Poetinha (“ê meu irmão me traz Iemanjá pra mim”). Margareth Menezes gravou de “Faraó, Divindade do Egito” ao álbum “Pontos de Umbanda”.
Vinicius de Moraes, o "Poetinha", e Baden-Powell: a dupla
Vale lembrar o “Poetinha”, neste atual surto de retrocesso cultural que vivemos, fenômeno de que foi reflexo o incidente no coral da UFRJ. Vinicius de Moraes (1913-1980) foi diplomata, homem culto e erudito. Mas a paixão dele, além da poesia – preciosista na difícil arte dos sonetos! -, era a música popular, contando para isso com parceiros do naipe de Jobim, Toquinho e Baden-Powell, este último fabuloso violonista e bom colega de copo e de samba. É da dupla o “Canto de Ossanha” (veja e ouça abaixo). Ossanha, ou Osanyin, é o orixá das ervas medicinais, representado no sincretismo por São Benedito. A gravação original teve arranjo do maestro Guerra-Peixe, por coincidência ou não admirador da cultura afro-brasileira. A obra foi concluída pela dupla na frente de Elis Regina, que a gravou e fez estourar nas paradas: “O homem que diz dou, não dá / porque quem dá mesmo não diz”. Do Poetinha e Baden são também “Lamento de Exu” e “Canto de Iemanjá”. Exu é o orixá da disciplina e da adivinhação, intermediário entre homens e deuses, enquanto Iemanjá é o orixá das águas e filha de Olokun, senhor dos mares.



O Poetinha com Mãe Menininha de Gantois
A dupla Poetinha/Baden-Powell também nos deu “Canto do Caboclo Pedra-Preta” (“Pandeiro quando toca faz Pedra-Preta chegar / viola quando toca faz Pedra-Preta chegar”). “Canto de Xangô” celebra a entidade que vive nas pedreiras: “Sou filho de rei / muito lutei pra ser o que sou / eu sou negro de cor / mas tudo é só amor em mim / Xangô Agodô”. Uma curiosidade: foi o carioca Poetinha, já iniciado, quem levou Maria Bethânia, de Santo Amaro, ao terreiro da Mãe Menininha de Gantois, em Salvador. A cantora ingressou no Candomblé em 1971 e descobriu-se filha de Iansã, uma das três mulheres de Xangô, e de Ogum, o guerreiro, e também de Oxóssi (Oxoce), orixá da caça. Profundamente enraizados na cultura baiana, os cultos afro-brasileiros fazem parte do dia a dia de incontáveis cidadãos brasileiros, e, como não poderia deixar de ser, fornecem rica matéria-prima para muitos artistas.
Grupo Olodum (YouTube)
Em Gil, Caetano, Caymmi e compositores baianos, em geral, a cultura afro-brasileira corre livre nas veias. A própria “Axé music”, popularizada por Daniela Mercury e o grupo Olodum (de Olodumarê, orixá do destino), leva esse nome porque axé, força sagrada dos orixás, é uma espécie de bênção no Candomblé. A dupla Poetinha-Baden passou a afinar com esse mundo. Parecem de real convicção os laços de Vinicius com o Candomblé, ele que era conhecido como “o carioca mais baiano do mundo” e autoproclamado “o branco mais negro do mundo”, e é tanto quanto verossímil que tenha se convertido de fato e de fé. Em “Samba da Bênção”, o Poetinha pede, nome a nome, para que seja abençoado por uma longa série de pessoas conhecidas, para ao final pedir saravá! (salve!), palavra de origem banta.
Maestro Guerra-Peixe: Xangô

Já os chamados “eruditos” da música de concerto sempre viram nas culturas indígena e afro-brasileira matéria-prima fértil para suas obras. Se comungavam ou não de uma ou outra crença, isso não vem lá ao caso, que aqui é o fruir artístico. Interessa, sim, aos estudiosos, visando ao aprofundamento de suas indagações históricas e estéticas.  Mas universidade é lugar de aprendizado via pesquisa, produção, criação, questionamento. O que não se pode é deixar o ambiente acadêmico ser contaminado pelo obscurantismo ou fundamentalismo de qualquer espécie ou origem, seja religioso ou ideológico, e tornar-se uma pedra inamovível no caminho da cultura e do conhecimento. 
Axé, Poetinha!

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

UM OUTRO PAPAI NOEL

Estácio de Sá (foto Museu da República)

“Nasci no Estácio / fui educado na roda de bamba / fui diplomado na escola de samba / sou independente, conforme se vê” (“O ‘X’ do problema”). Em 1910, no Estácio de Sá, um menino nascia a fórceps, parto delicado, com uma hipoplasia para complicar. Franzino, o queixo atrofiado moldou-lhe o perfil, a marca registrada. Na pia, foi batizado Noel. Aos 21, por pressão da família, ingressou na Faculdade de Medicina (hoje da UFRJ), mas sua educação e diploma vieram mesmo das rodas da boemia e do samba. Abandonado o curso, a música era carreira e ambiente: o Estácio foi o berço da Deixa Falar, primeira escola de samba, e Noel era apaixonado pelo ritmo.
Noel e Vadico
O Rio dos anos 1920, até a morte de Noel por tuberculose, em 1937, foi o cenário em que o sambista ergueu sua vasta obra: em pouco mais de dez anos de atividade compôs perto de 300 músicas. Fugia dos parnasianismos do passado, e seu bordado de frases, palavras e rimas são de uma simplicidade que só os gênios conseguem elaborar com tanta beleza. Era amoroso por natureza, mas combativo quando queria. Parceiros e letristas, quando não ele mesmo o poeta, afinavam com suas concepções: Vadico, principalmente, e João de Barro, o Braguinha.
Noel (Pinterest)
(Conta o folclore que Noel, já tuberculoso, estava em um bar da Lapa, após os funerais de sua mãe. Vestia uma camisa florida, até que alguém passou e o reprendeu, deveria estar de luto! Rapidamente o compositor, bom no taco que era, saiu-se com essa: “Luto preto é vaidade / neste turbilhão de dor / o meu luto é a saudade / e saudade não tem cor”. Noel também foi visto bebericando conhaque e tomando cerveja, e alguém o alertou que, tuberculoso, não deveria beber. Noel respondeu que seu médico realmente o havia proibido, e o advertiu: se não conseguisse resistir, que fosse pouco, e muito bem alimentado. “Gosto de conhaque. E como dizem que cerveja alimenta...”)
Operários, por Tarsila do Amaral
O pai do novo samba fazia a crônica do Rio, como na singela “Três Apitos”, imortalizada mais tarde por Gal Costa: “Quando o apito da fábrica de tecidos / vem ferir os meus ouvidos / eu me lembro de você”. Segue-se uma pitada - para a época – de crítica social, retrato da nova revolução industrial brasileira, como fez a artista plástica Tarsila do Amaral em sua obra “Operários”: “Você que atende ao apito / de uma chaminé de barro / por que não atende ao grito tão aflito / da buzina do meu carro”.
Noel, com o garçom: imortalizado em Vila Isabel
Bom cronista, Noel retratava o cotidiano do Rio de Janeiro fosse na Vila Isabel, no Estácio ou na Lapa boêmia. Da primeira, fez o quinhão carioca na sua ótica da divisão produtiva nacional em “Feitiço da Vila”: “...São Paulo dá café / Minas dá leite / e a Vila Isabel dá samba”. Descrevia o cotidiano com perfeição, a exemplo de “Conversa de botequim”, parceria com Vadico: “Seu garçom, faça o favor / de me trazer depressa / uma boa média / que não seja requentada / um pão bem quente / com manteiga à beça / um guardanapo / e um copo d’água bem gelado”.
As harmonias de Noel eram simples, sem encadeamentos complexos ou dissonâncias, e ele as trabalhava com invulgar preciosismo. Bom exemplo é a alternância de tonalidades maiores e menores, contrastes entre sentimentos alegres ou tristes, como em “Último desejo”, em tom menor: “Nosso amor, que eu não esqueço / e que teve seu começo numa festa de São João / morre hoje sem foguete / sem retrato, sem bilhete / sem luar, sem violão”. Já em tom maior, a falsa alegria que logo cede à tristeza, à realidade que o autor buscou fantasiar: “Se alguma pessoa amiga / pedir que você lhe diga / se você me quer ou não” – mas a melancolia foi mais forte, e se impôs em tonalidade menor: “Diga que você me adora / que você lamenta e chora / a nossa separação”.  
Com Nana Caymmi

Compositor genial, ninguém pode negar, talvez nosso sambista maior. Queixo quase ausente, chapéu, cigarro no canto da boca mesmo quando cantava. Suas gravações originais, dada a precariedade dos equipamentos da época e provavelmente a anomalia maxilar, registraram aquela voz anasalada, nada suave. Todo artista brasileiro que se preza gravou Noel, de Jobim a Duardo Dusek, de Nélson Gonçalves a Luís Melodia, de Aracy de Almeida a Gal Costa. Mas era João Nogueira quem cantava Noel com maior admiração, de quem dizia ser o maior sambista de todos os tempos.
A turma da bossa nova
Pelo intimismo e a influência que exerceu por décadas, mesmo após falecido, Noel poderia ser visto como um pai da bossa nova. À frente algumas décadas, faltavam apenas a influência do jazz e do impressionismo francês, como Jobim, e a batida do João Gilberto. Deu régua e compasso a Chico Buarque, especialmente nas canções do início, e até surge, lembrança importante, em “Rita”: “...levou seu retrato, seu trapo, seu prato, / que papel! / Uma imagem de São Francisco / e um bom disco de Noel”.
César Ladeira
César Ladeira, radialista famoso que recebeu o epíteto “a voz da revolução constitucionalista”, autor de cognomes como “a pequena notável” e “o rei da voz”, para Carmen Miranda e Francisco Alves, deu a Noel Rosa o título de “filósofo do samba”. Noel sabia ser bom de disputa, mas sem perder a sutileza e a sabedoria de um “filósofo”. Exemplo foi a riquíssima contenda musical com Wilson Baptista, quando lhe deu essa de troco: “Quem é você que não sabe o que diz / meu Deus do céu, que palpite infeliz / (...) pra que ligar a quem não sabe / aonde põe o seu nariz / quem é você, que não sabe o que diz”.
Pai da MPB, filósofo do samba, esteio e arrimo da bossa nova, salve Papai Noel Rosa!

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

OS 94 ANOS DO VELHO AUTRAN

band.uol.com.br

Difícil mesmo é escrever sobre o pai da gente. O apelo emocional exige cuidado, para que a escrita não se dobre à paixão - mesmo que seja falando da literatura de um escritor acima de qualquer suspeita, sobre quem tantos já falaram. Recordar é preciso, especialmente para os que tiveram felicidade de com ele aprender no dia a dia, no almoço, no jantar, ter o privilégio da companhia nos finais de semana, quando disponíveis.
A Monte Santo antiga
Em um 18 de janeiro como este nasceu em 1926 um menino, capiau de Patos de Minas, batizado Waldomiro (não usava, preferia só Autran Dourado, já complicado o suficiente). Muito cedo, foi levado por seu pai, Telêmaco, juiz de direito, com a mãe Alice e irmãos, para Monte Santo, perto da divisa de onde à noite se vislumbra a suave tenda das luzinhas da paulista Mococa. Ali, foi criado moleque da terra, “menino curió”, dizia, e como a cidade era muito pequena, já andando com pernas próprias deu de dividir seu tempo com São Sebastião do Paraíso, quase três vezes maior. (Ainda pequeno, uma senhora analfabeta pedia-lhe que lesse trechos de um livro ilustrado sobre a I Guerra. Não tinha “sabência” para ler aquilo, então criava sobre o que entendia. Aí talvez o começo de tudo).
Como se as duas cidades ainda não lhe bastassem, aos dezessete foi para a capital mineira descobrir um novo mundo, cidade grande que o acolheu com seu belo horizonte, nome com que fora batizada. Aprendeu taquigrafia – a espanhola, mais rápida, explicava -, que iria acompanhá-lo a vida inteira (em cartõezinhos, resumia nos curtos sinais as ideias de um novo livro).
UFMG
Em BH, estudou Direito na UFMG, para a qual já idoso viria a dedicar em testamento todo seu acervo de mais de cinco mil livros - era o que cabia em casa, rodeando as paredes de seu escritório, corredores, sala e quartos dos filhos, até na parte de cima dos armários embutidos. 
Tudo agora recompõe na universidade o ambiente caseiro de que mais gostava, aquele onde sua obra alcançara plena maturidade. Uma espécie de versão mineira de seu cantinho de escritor, no Rio, para onde havia se mudado em 1954. Com a posse de Juscelino Kubitschek, que tinha apreço especial por ele, foi trabalhar no Palácio do Catete, na capital da República. Em 1958, foi nomeado Secretário de Imprensa da Presidência, o pioneiro no cargo hoje chamado Porta-Voz.
Com JK, na entrada do Palácio do Catete

Godofredo Rangel
Na literatura começou cedo, publicando já aos dezenove anos; foi aconselhado por um escritor mineiro, Godofredo Rangel, que o dissuadiu do mito do artista precoce. O pai concordou que melhor seria trilhar o caminho da formiguinha, a labuta diária, construir uma literatura coesa e única em personagens e cenários, quase todos da cidade mítica de Duas Pontes, que criara à imagem e semelhança de sua vivência interiorana.
Seguiram-se muitos livros, diversos deles traduzidos para o inglês, alemão, francês, espanhol e outros idiomas. Com Teia, a segunda publicação, aos 21 anos, foi agraciado com o Prêmio do Jornal das Letras. Seguiram-se diversos outros, como o Jabuti, o Machado de Assis, o Prêmio Camões, o Goethe de Literatura, e viu a inclusão de seu trabalho nas Obras Representativas da Unesco. Quis o destino que a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Cultural Brasileiro fosse entregue simbolicamente à família meses após sua partida, em 2012.
Machado de Assis
Com suas tramas, riscos, bordados e carpintarias, consolidou um estilo único, inconfundível, livre de academicismos, arquitetura que desenvolvera tanto na própria labuta quanto nas leituras e releituras incansáveis de mestres como Machado de Assis, Faulkner e Flaubert. Difícil é escolher o melhor livro: parece-me que será sempre o último que reler, mas o que mais me seduz é Ópera dos Mortos (talvez por isso, foi o último!), do qual peço a ele licença para reproduzir um trecho:
O relógio de pêndulo que foi de meus pais
“Não adiantava parar os relógios. Ainda bem que eles deixaram a pêndula na copa. De duas bolas, em formato de 8; tem pêndula mais bonita, de capelinha. Relógio de 8 é muito comum, até enjoa. Relógio de capelinha é que é mais bonito. Mas igual o relógio-armário (quando ele desceu, veio e parou, olhou parando na cara de cada um, foi assim mesmo que ele fez ou foi Rosalina? no dia do enterro, veio e parou o relógio-armário), igual o relógio da sala não tinha igual, nem nunca viu um assim tão rico, antigo de velho. O relógio da copa, quando chegar a vez, ela é que ia parar. Gostava de ouvir as batidinhas, o tique-taque gostoso no vaivém da pêndula. (...) As pancadas das horas, a musguinha vindo. (...) Minueto, Rosalina diz que é minueto”.
O coro dos relógios, nessa Ópera dos Mortos, a ourivesaria de cada momento, cada único momento e cada um após o outro, diversos relógios cujo oscilar dos pêndulos seria interrompido, cada um a sua vez, com a morte de cada pessoa do casarão. Tensões elaboradas, um crochê intricado e denso. (Musicalmente me lembraria Brahms, os momentos se sucedendo em ondas de pensamentos e angústias onde navegar o leitor: um desenvolvimento pleno de encadeamentos, cadências e dinâmicas, temas e contratemas recorrentes, como em uma sinfonia do alemão).

Melhor assim, saudar o velho Autran por seu trabalho, nada de remoer no dia do nascimento os tempos difíceis que precederam sua partida. É dia de agradecê-lo por ter vindo a este mundo nos deixar tudo o que produziu com humildade, sempre avesso a badalações. Uma obra para a posteridade, sem nunca pensar em enriquecer, bons livros não dão dinheiro, falava. “Também sei escrever um best-seller: leitura bem fácil, suspense, traição e uma pitadinha de sacanagem”. Só que nunca o fez.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

PARA EMPREENDER A GUERRA


Le giorno se n’andava e l’aere bruno / toglieva gli animai che sono in terra / (...) ed io soy uno / m’apparecchiava para sostener la guerra.
O Inferno, por Gustave Doré (1832-1883)
Assim Dante começa La Divina Commedia (Il Inferno, Canto I)*, poemas escritos entre 1308 e 1320. O sol nem raiara, o céu acinzentado cobria os animais sobre a terra (...) e eu me preparava para empreender a guerra. Escrito na primeira pessoa em três partes (Inferno, Purgatório e Paraíso), La Commedia está nos primórdios da literatura italiana e ajudou a consolidar a língua toscana e os padrões do idioma do país. Dante é o personagem que se prepara para a guerra.
O cavalo de Troia, por Giovanni Domenico Tiepolo (c. 1760)
Da Grécia, são famosas as guerras de Troia (1250-1240 a.C.), as Médicas (de Medas, entre gregos e persas, de 499 a 479 a.C.), a do Poloponeso, entre Esparta e Atenas (431-404 a.C.), e as de Alexandre, O Grande (334-323): o cerco a Tiro e as batalhas de Gaugamela, Górdia, Granico, Hispades e Isso, onde o macedônio venceu Dario III, rei dos persas. Entre as guerras romanas, as Samnitas (264-290 a.C.), as três Púnicas (264-146 a.C.), as Macedônicas (215-168 a.C.), a dos Três Reinos da China (220-265 a.C.), a dos oito Príncipes (291-306), a de Gália (58-50 a.C.) e a invasão das Ilhas Britânicas (43 a.C.).
A queda de Acre, derrota final das Cruzadas 
A Era Cristã viveu inúmeras guerras e invasões, como a tomada da Península Ibérica pelos Muçulmanos (711), a da Normanda (1066), a longeva série de Cruzadas (1096-1231), um sem-número de enfrentamentos cujo bordão era o poder: conquista e domínio de riquezas, religiões e raças. Sobre esse poder debruçou-se um dos primeiros teóricos, Niccolò Machiavelli (1469-1527), em “O Príncipe” e “A Arte da Guerra”, sabedoria mais tarde compartilhada por Napoleão Bonaparte (1769-1821) em escritos sobre o florentino e em seu “Manual do Líder”. Mas se prosseguirmos com as guerras napoleônicas (1792-1814) não haverá espaço para o assunto principal. Saltemos ao expansionismo russo via União Soviética e as duas guerras de proporções mundiais, uma de 1914-1918 e a segunda, entre 1939 e 1945, que envolveu quase o mundo inteiro ante o nazifascismo de Hitler e o fascismo corporativista de Mussolini.
Outubro de 1999. Eu lançava, na ADUSP (Associação dos Docentes da USP), um livro sobre a história da música contada de um jeito irreverente, enfastiado que estava com o árido trabalho de doutorado. Ao meu lado, contrastando, o seríssimo argentino Osvaldo Coggiola, professor titular de História, lançava o livro “Imperialismo e Guerra na Iugoslávia - Radiografia do Conflito nos Bálcãs” (SP: Ed. Xamã, 1999), assunto da época. Coggiola buscou fatos que fincam raízes no passado e que nos levam a melhor compreender mesmo outros mais recentes. Ele ponderou muito bem que os conflitos na Península Balcânica, que envolveram 13 países, assemelhavam-se aos tempos que antecederam tanto a primeira quanto a segunda guerras mundiais, sendo os protagonistas decisivos do século EUA, Europa e Rússia. Um elemento precioso: o cenário foram os países mais poderosos na luta pelo domínio do combustível fóssil, o ouro negro: petróleo. Depois da exposição de Coggiola inverti o pensamento: naquela cena, o protagonista era, sim, o óleo - aos EUA, Europa e Rússia cabiam papeis de comprimários naquela ópera do Inferno.
Foto: The Atlantic
Na virada para 2020, Donald Trump mata, entre quatro outros, por pontaria certeira ou por acaso, o general Qassem Suleimani, líder da Força Quds, o segundo homem mais poderoso do Irã, um radical amado pelo seu povo. A morte de Suleimani despertou a ira do Aiatolá supremo, Ali Khamenei, e expôs o mundo a um grande perigo: haverá revide. Diz o estudioso Chales Lister que só não se sabe quando, como e aonde (a exemplo do bombardeio da  embaixada dos EUA em Bagdá e a inédita ordem de remoção das tropas americanas no Iraque). Outro estudioso, Bruce Riedel, ex-agente da CIA especializado em Oriente Médio, é mais pessimista: a guerra que os EUA estão iniciando "será uma guerra maior do que nunca”. Segundo David Sanger, do The New York Times, em 2015 Trump abandonou o acordo nuclear, o que, na calada, deixara o Irã à vontade para retornar ao enriquecimento de urânio e à produção de armas letais de médio e longo alcance.
Tropas americanas no Iraque
No momento em que escrevo, 3.700 soldados norte-americanos estão no olho do furacão, de um total de 70 mil no Oriente Médio. Não se sabe a modalidade da guerra que já assusta, há apenas a bandeira da morte de um radical adorado pelos xiitas cujo cadáver, ainda fresco, desperta manifestações e gritos de “morte aos Estados Unidos”. Mas esse ódio será restrito a uma guerra que afete o país, o Iraque, o Kuwait ou veremos algo de proporções desconhecidas? (Gilberto Gil teve seu pesadelo, em 1967, em Lunik 9: “Guerra diferente das tradicionais / guerra de astronautas nos espaços siderais”).
Senado dos EUA (NY Times)
Observo três vetores no ataque a Bagdá e no inchaço dos contingentes americanos no Oriente Médio: primeiro, o petróleo; segundo, o impeachment de Trump em pauta no Senado - não provável, mas colocar o processo em segundo plano e surgir como herói da causa são parte das intenções do presidente. Alimentado pelo ufanismo e engordado após um século de guerras sangrentas, grande parte do povo deverá estufar o peito em defesa de Trump, lançando areia sobre os olhos de muitos. Last but not least (por fim, mas não por último), o terceiro vetor: este é o ano em que Trump buscará a reeleição. É nesses meses de corrida que ataques costumam vitaminar fortemente a popularidade presidencial. Porém, o que costuma se seguir, ao fim, é uma queda acentuada – e o risco de uma derrota nas urnas. Um salto sem paraquedas espetaculoso no escuro, levando o mundo inteiro.
*ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. Ostiglia: Ed. Mondatori, 1963. Breves explicações sobre trechos da Commedia me foram resumidas, informalmente, pelo então colega da FFLCH Lorenzo Mami: a simbologia da escrita, o que descreveu Dante, e a arte do florentino. 

sábado, 4 de janeiro de 2020

UM NOVO ANO NOVO


Perder peso, repete-se sempre. Mas se aquele “a mais” já estava lá no ano anterior ao passado, não o há que daquele lá atrás se perder neste, se nada no de ontem se ganhou (embora o “extra” a dever valha ser queimado). Aos que, ao revés, quilos lhes faltam - esquálidos, desvalidos, esfomeados, modelos anoréxicas e bulímicas, viciados nas pedras do caminho -, ganhar peso é de bom voto. Cortar os cabelos - ou, diz melhor o inglês, “ter os cabelos cortados” -, é volta-face que se transubstanciaria em bom espírito e humor, e, quem sabe, a ansiada conquista amorosa? Ensejarão as novas madeixas ou desenhos nos cabelos novos olhares ou rememoranças de antigas paixões? “Não sei se você ainda é a mesma / ou se cortou os cabelos / rasgou o que é meu”¹.
(GGN)
Roupa nova faz falta, até a do Rei o rato roeu! Uns panos novos para nova fase, um elã arremedado para sentir-se rejuvenescer (apesar do ano a mais vivido); aos que amargam até a falta de um velho paletó ou rotos farrapos, que sejam guarnecidos do que lhes proteja do rigor da chuva, do frio ou do “serenô da madrugada”, que “não deixou meu bem dormir²”.
Um carrão zero, para os mais abastados, um iate para os milionários! “O barco, o automóvel brilhante³”, só porque entre ricaços “navegar é preciso³” no mar das aparências. Mais justo seria tê-los a menor, com menos luxos e narcisismos; aos outros, algo simples e útil, um saveiro para pescar, uma bicicleta para fazer entregas, um caderno para anotar as contas? “Mais que isto, só Jesus Cristo, que não sabia nada de finanças nem consta que tivesse biblioteca”³). Venha a esperada justiça social, trabalho de corações e mentes que se preocupam com ela: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão saciados”4. Aos que foram perseguidos, ergam-se, eleitos, “por fazerem a vontade de Deus, pois deles é o Reino dos Céus”4.
Às mulheres caberá acolher o ano novo, nos conformes de seu uso e costume, depilando as pernas para poderem levantar as saias e saltar quando chegam as  ondas; às humildes, pernas pra que te quero, basta colocar os pezinhos na água fresca do mar que traz, espumando em vaivém, o novo dia, a plena madrugada; às adeptas de cultos que reverenciam o mar e sua rainha, apenas pés calejados da labuta do ano e saúde, que agradecem em suas danças e oferendas; recolhem flores murchas da água enquanto o arrastão despeja sua colheita viva na areia da praia, ao sol raiar: “ê, puxa bem devagar / ê, ê, ê, já vem vindo o arrastão”5. É a rede descarregando em abundância como fosse o milagre dos peixes, rito de cada dia desde sabe-se lá quando: “Eles não falam do mar e dos peixes / nem deixam ver a moça, pura canção / nem ver nascer a flor, nem ver nascer o sol”6.

"Beggars Banquet" (Banquete dos Mendigos), LP dos Stones
Ah, o bendito pão de cada dia! Uma bela cantina para os afogados na ressaca dos copos virados nas festas de Baco e Dionísio; os Severinos, “fazendo “dos dedos isca pra pescar camarão”7; aos que buscam nas latas dos becos o pão do dia e às vezes apenas o único sustento: que recebam dele seu mais recôndito milagre, e por ele louvarão, crédulos, ao Senhor.
A Última Ceia (Da Vinci)

(Vuelo Pharma)
Que vingue o novo e traga a beleza dos dias melhores! “É belo porque o novo / todo o velho contagia. / Belo porque corrompe / com sangue novo a anemia”7. Abram portas e janelas, deixem o sol penetrar, recebendo-o de  braços abertos qual aquele, gigante, que os ergue sobre a Guanabara. Novo é a visita que se espera há um ano, carece recebê-la, assuntar, servi-la, agradá-la. Venha desatar nossos nós, estancar nossas dores, pruridos, as feridas e mesmo as gangrenas, as angústias dos feridos, o sofrimento de tantos (impossível apagar chagas velhas, pois que cicatrizes). “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”4.

Guignard: Natureza Morta
Passar o pano no ódio, no racismo, na xenofobia, na misoginia, na homofobia, nos preconceitos e no desrespeito a culturas, crenças e livre expressão. Apagar a lousa em que foram arquitetados os pensamentos e atos mais nefastos e cruéis ao homem e à mãe-natureza - que a natureza-morta sejam apenas as pinceladas de lindos vasos de flores e frutas, tintos pelo óleo de habilidosos pintores.
Bom ano para islamitas, judeus – incluindo os sefardi, antepassados de boa parte de nós -, budistas, cristãos de todas as igrejas, xintoístas, taoístas, umbandistas, kardecistas, os temerosos ao Tupã-trovão, e (ave, Francisco!) abençoados sejam também os ateus, agnósticos e os que têm dúvida de fé, porque todos são filhos de Deus. Que as religiões não se submetam como massa de manobra aos poderosos, e que estes não se sirvam dos que creem para arrimo das muralhas de seu poder. Que o novo entrelace as mãos de nossos negros, mulatos, mamelucos, brancos, caucasianos, japoneses, chineses, coreanos, latinos imigrantes ou refugiados, indígenas de todos os matizes (aqui desde muito antes de nossos antepassados): guaranis, caiovás, mbys e ñandevas; ticunas, os caingangues kamé e kaiurukré; os macuxis, os terenas, os guajajaras; os ianomâmis, os xavantes, pataxós, potiguaras. Todos, apesar de “humilhados e ofendidos”8, suas terras arrasadas por grileiros e desmatadores sob a vista grossa, proteção ou mãos dos poderosos; com frequência cruelmente assassinados, ainda se multiplicam em ritmo dobrado: 3,5% para 1,6% do resto do país9. Um novo ano novo!
[1: Chico Buarque. 2: Folclore brasileiro. 3: Fernando Pessoa. 4: Mateus, 5: 3-12 (JFA).                    5: Vinicius/Edu Lobo. 6: Milton/F. Brant. 7: João Cabral de Melo Neto. 8: Romance de                      F. Dostoiévski. 9: IBGE]