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sábado, 21 de dezembro de 2013

A DIFÍCIL ARTE DE FAZÊ-LA SIMPLES

Dali: A Persistência da Memória (1931)
Como manifestação humana, a expressão artística às vezes tende a ser sofisticada: o artista quer cada vez mais desenvolver sua técnica, sobrepondo-a à sua imaginação. Vai às mais profundas contradições, confusões mentais e até demência, mas se não o faz de forma figurativa, como Salvador Dali (1904-1989), ele se distancia do público. A arte pode ser complexa, como a de Qorpo Santo (1829-1883) - José Joaquim de Campos Leão -, nosso poeta, escritor e dramaturgo gaúcho que chegou mesmo a passar uma curta temporada no manicômio.

Qorpo Santo
Louco que era, foi tido como uma espécie de precursor “tupiniquim” do surrealismo e do Teatro do Absurdo de Arrabal e Ionesco. Nada. Parece que o surrealismo sempre foi um estado de espírito ‘anormal’ (daí surreal), desde as telas de Hyeronimus Bosch (1450-1516), 4 séculos antes do brasileiro. É onde se transfigura a teratologia do pintor: maus espíritos e demônios, anomalias com tantos detalhes que exigem um bom tempo de apreciação, por parte do público, para compreender a obra. Pois Qorpo Santo foi personagem de suas personalidades múltiplas, de seus espíritos enlouquecidos.

David
O simples tem que ser belo, e em suas poucas informações tecer um quadro, uma escultura, uma poesia ou uma música. E o que faz o belo – vejo assim – é a feminilidade da obra, mesmo que ela represente um homem. Uma das obras-primas de Michelangelo (1475-1564) é seu Davi, uma escultura de seu desejo, envolta nos mistérios das afeições particulares do autor. A despeito do torso levemente robusto, a figura do jovem Davi tem traços sinuosos, graciosos, femininos até. Na música, clássicos como Mozart e Haydn usaram frases de contornos e terminações melódicas a que chamamos femininas.

Fuga de Bach: a complexidade dominada e organizada
Pois se no classicismo assim o foi, o que aconteceu no período barroco, que o precedeu, e no romantismo, que o seguiu, ambos de extrema complexidade na costura musical? O Barroco tinha suas regras, e se essas não fossem seguidas, a profusão de notas e acordes em tantas vozes simultâneas em contraponto resultaria em grande confusão.

E a poesia, que ora nos vem parnasiana, complexa, ora com o requinte da simplicidade? É uma frase solta, às vezes, em tom coloquial, até, mas que traz em si algum ‘achado’, algum truque a seduzir o leitor. Fernando Pessoa (1888-1935) é um mestre português dessas minúcias: “E mais que isso, só Jesus Cristo. Que não entendia nada de economia nem consta que tivesse uma biblioteca”. Uma troca de palavras simbólicas – Cristo x economia e biblioteca (símbolos do saber) -, seriam para o poeta desnecessidades para quem está acima de todo o conhecimento.

Antes disso, Pessoa já havia desmistificado o saber: “Livros são papeis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta. A distinção entre nada e coisa nenhuma”. A intelectualidade e o vigor criativo de Pessoa o credenciam para sentenciar que livros não são mais do que meras “folhas de papel pintadas com tinta” -  e o estudo, “coisa indistinta”, o que não se distingue. E negando tudo: a distinção entre “nada e coisa nenhuma”.

Há brasileiros mestres nessa arte da simplicidade, como Drummond (1902-1987), o poeta maior. Veja em Confidência de Itabirano: “Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói”. Palavras simples que levam o leitor a refletir sobre o ouro, gado e fazendas (riqueza), em contraponto à situação do poeta, funcionário público, símbolo da vida simples e regrada que ele próprio levou, vivendo dos pequenos cargos que lhe permitiram o ofício de escrever. E a fotografia de Itabira na parede, o que lhe faz sofrer, é esse pedaço do passado indelével que o acompanha, imóvel. O rasgo de inspiração vem na última frase: “mas como dói” (poderia ter dito “saudade”, mas o ‘achado’ lhe apareceu no caminho, como a pedra no de José: solução poética, pincelada de gênio).

Vinicius (marcado, ao centro): prole e amigos
A simplicidade sempre foi marca de Vinicius de Morais: em “Filhos”, ele exerce o benefício da dúvida. Bom pai, amante nada parcimonioso, o poeta deixa no ar a dúvida: “Filhos... Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos / como sabê-lo?” “Tê-los” e “sabê-lo” são as duas pontas do dilema de se ter ou não os filhos. Expressões nascidas de verbos, em movimento, do jeito que se fala: “E então começa a aporrinhação: cocô está branco / cocô está preto / bebe amoníaco / comeu botão”. Palavras simples, do dia a dia, cruéis, até (“bebe amoníaco”), fazem o pai horrorizado achar melhor não “tê-lo”. Mas – e aí reside o conflito do belo poema -, se não for assim, sem conhecer “ser pai”, como sabê-lo (o ter filhos)?

Chico Buarque é um poeta versátil. Vai da complexidade do operário em “Construção” (“beijou sua mulher como se fosse a última”), à simplicidade interiorana e singela, com sua “Banda”: “Eu estava à toa na vida / o meu amor me chamou / pra ver a banda passar / cantando coisas de amor”. E esbanjando maior singeleza, em Gente Humilde: “São casas simples com cadeiras na calçada / e na fachada escrito em cima que é um lar / pela varanda flores tristes e baldias /como a alegria que não tem onde encostar”. Paisagem bela porque simples.


Eleazar: um corte no silêncio
O maestro Eleazar de Carvalho tinha uma genial para definir uma pausa, um silêncio: “a pausa é como uma faca” (gritando a última palavra)! “Sem lâmina / nem cabo!” (com os devidos acentos fortíssimos sobre as primeiras sílabas de lâmina e cabo). O discurso simples e belo ou o silêncio podem ser mortais como uma faca. Mesmo que sem lâmina. E nem cabo. 

sábado, 14 de dezembro de 2013

CANÇÃO PARA MANDELA

Entrada da prisão Victor Vester
Eu queria compor uma canção para Mandela. Mas como escrever para um poeta, artista de tantas vidas, logo o bardo das multidões de humilhados e ofendidos? Só um poeta encara com um sorriso a transferência para a prisão Victor Vester, aos 70 anos de idade. Naquela altura, a África do Sul já vivia uma situação-limite, aproximava-se o romper da bolha que daria início ao fim do preconceito, do famigerado ‘apartheid’, da segregação desumana e total entre irmãos. O Ministro da Educação Willem de Klerk, naquela época, já prenunciava ser impossível manter por mais tempo a situação, insustentável que estava.

Mandela e Winnie: liberdade
Qual a canção teria a medida de Mandela? O ex-ministro De Klerk assume a presidência e já anuncia a libertação do líder para o princípio de 1990. Cada minuto de espera deve ter pesado como um fardo sobre as costas amarguradas. O CNA (Congresso Nacional Africano, partido da maioria negra) e outros, são declarados oficiais, e é assinado um pacto que declara fim à violência e à exclusão, festa que levou Mandela às ruas em meio a multidões de centenas de milhares de pessoas.

Mandela e De Klerk: Prêmio Nobel da Paz
Esse garoto negro, após 27 anos de prisão degradante e aos 76 anos de idade – preso político de verdade ! – conquista a Presidência da República em 1994, nas primeiras eleições livres em solo sul-africano. Sua posse foi prestigiada por um grande número de autoridades mundiais, de braços com a imprensa, que incensava a festa: uma das maiores conquistas dos negros na história da humanidade. 

Em seus discursos, Mandela e De Klerk trocaram elogios, ambos Prêmio Nobel da Paz no ano anterior. O primeiro presidente negro da África do Sul não canta o domínio de sua raça sobre outra, e sim “uma nação arco-íris, em paz consigo mesma e com o mundo, uma sociedade onde todos possam andar de cabeça erguida e sem receios”.

Os lindos jacarandás de Pretória: o arco-íris de Mandela
Como compor uma canção para o homem dessas palavras, com sua presença, sua pura poesia? “De um dramático desastre humano que durou tempo demais deverá nascer uma sociedade que será o orgulho de toda a civilização”, disse, e exeltou em quase versos as raízes de seus compatriotas: “tal qual as mimosas e o lindo jacarandá de Pretória. Somos levados pela alegria e entusiasmo quando a relva fica mais verde e as flores se abrem”. Quem ousaria, depois da emoção daquele discurso, compor para Mandela?

Apartheid: o regime do ódio
Ouça o canto das palavras pacificadoras do maior líder negro desde sempre: “Chegou o tempo de curar as feridas, chegou o tempo de preencher as lacunas que nos separam uns dos outros, chegou o tempo de construir”. “Conseguimos galgar as últimas etapas do caminho para a liberdade em condições de paz”. Essas sábias palavras ungiram corpos e mentes sofridos, povos dominados e divididos por seus opressores, segregados até por diversos idiomas e crenças religiosas, desde a primeira bandeira holandesa fincada em seu solo, e depois pelos flamencos, franceses, alemães e britânicos.

Apartheid: triste memória
O que deve cantar a poesia para quem soprou aos ventos que chegara a hora da vitória, já acalentada pela visão de outro grande líder negro, Martin Luther King, Jr., o homem que teve um sonho. O que cantar para quem proclamou em tom poético “que a justiça seja a mesma para todos, que a paz exista para todos, que haja trabalho, pão, água e sal para todos” (N. do A.: o índice de desemprego no país ainda é de 25%). “Que nunca, nunca mais este país magnífico reviva a experiência da opressão de uns sobre outros, nem sofra a indignidade de ser o pária do mundo. Que o sol jamais se ponha sobre uma realização humana tão brilhante. Que Deus abençoe a África!”

Ainda é muito pouco. Houve muito sangue, suor e lágrimas, mas ainda é muito pouco. O canto de Luther King ainda ecoava, com sua voz entoada de pastor luterano, quando a maior nação do mundo elegeu um outro negro presidente, Barak Obama. Ainda é pouco. Cuba ainda é um país de negros e miscigenados, condenados primeiro pela exploração norte-americana e a ditadura de Fulgêncio Batista (1901-1973), mas Cuba ainda não permite a aproximação de negros ao poder, o que é natural dos regimes de exceção: o privilégio das castas que controlam e não largam o poder no país. O Brasil tem uma população negra monumental, 97 milhões, segundo o IPEA, 6,5% acima dos brancos. Como diria Rousseau (1712-1778), nascidos livres, sim, mas por toda parte acorrentados.

Cotas e bolsas ajudam, mas são curativos, não aplacam a doença, lucra mais quem as concede do que o futuro em que chegará “o tempo de curar as feridas, (...) o tempo de preencher as lacunas que nos separam uns dos outros, (...) o tempo de construir”, como disse Mandela. Nossas democracias de fachada, de soluções aparentes, precisam de mártires como ele, cujos sofrimentos nos mostrem o caminho. E se democracia passa por igualdade racial, ela clama por justiça, por isso deve se aproximar a hora de o Brasil também ser presidido por um negro, como foi na África do Sul e é hoje nos EUA. Um negro eleito por todos, irmãos de cor, brancos e mestiços, para que “a justiça seja a mesma para todos, que a paz exista para todos, que haja trabalho, pão, água e sal para todos”.

Forte emoção em uma só raça, em diferentes cores
Mesmo tendo conhecido apenas pela imprensa o líder que homenageamos nesses dias, é muito difícil escrever qualquer canto para um poeta apaixonado. Pois então descanse em paz, Mandela, e divida conosco o precioso silêncio da tua esperança, e que seja o mais melodioso e sonhador silêncio que inspire a luta pela verdadeira justiça social.

[As citações entre aspas foram extraídas do histórico discurso de posse de Mandela na Presidência da África do Sul, em Pretória, em 10 de maio de 1994. Veja e ouça um trecho abaixo, com legendas]



sábado, 7 de dezembro de 2013

SAUDADES, BELEZAS E GENTILEZAS

Do latim ‘solítas’, saudade é uma daquelas palavras que expressam sentimento, por isso meras lembranças: como dor e angústia, ela somente é sentida em sua plenitude no momento em que está acontecendo. Saudade é assunto teimoso em músicas de diversos gêneros, e como todo tema simples, oferece ao artista um vasto mundo, abre a moldura de um quadro infinito. E é um sentimento tão forte que abre a porta sem mesmo sem bater: a pessoa querida que se despede levando seus pertences na bagagem e deixando-nos outra, de imagens e lembranças:  “a tua lembrança me dói tanto / eu canto pra ver / se espanto esse mal... / mas eu só sei dizer / um verso banal...” (Chico, em “Desencontro” - abaixo).


Há alguns mitos, no Brasil, e saudade é um deles. Termo cunhado a partir do latim, é claro que a palavra existe também em outros idiomas latinos como o espanhol (‘soledad’), francês (‘manque’) e italiano (‘rimpianto’), por exemplo. Em português, é palavra genérica, podendo referir-se a uma pessoa (‘saudade de você’) ou um local (“Ai, mas que saudade eu tenho da Bahia / ai, se eu escutasse o que mamãe dizia...”, do saudoso Caymmi). Em inglês, temos ‘homesickness’ (saudade de casa), ou ‘longing’, ‘yearning’, quando nos referimos a uma pessoa; em alemão, diz-se ‘Sehnsucht’. O mito de que o português é a única língua em que existe a palavra ‘saudade’ é invenção sabe-se lá de quem, e já é transmitido geneticamente. Pois seria então o inglês o único idioma em que existiria o verbo “saudadar” (‘to miss’), ausente de nosso vernáculo?

Novaiorquinas
Existe um forte sentimento por nossa pátria, povo ufano, mas é preciso colocar os pingos nos ‘ii’ para que nossas emoções não sufoquem a razão. “Mulher brasileira em primeiro lugar”, cantou Benito de Paula – coisa compreensível, resquício das gloriosas copas do mundo das ditaduras, daquele ‘ame-o ou deixe-o’. É verdade que uma das maiores concentrações de mulheres bonitas no Brasil se encontra em uma faixa da zona sul carioca que vai do Leblon e Ipanema a Copacabana, e a beleza ali já é herança genética. Mas não nos esqueçamos das lindas praias da Califórnia. Manhattan parece um desfile da Vogue, mas... falando em desfile, e as russas? Uma enquete internacional sobre os países do mundo levantou onde se encontram as mulheres mais lindas do mundo. Entre elas e as brasileiras, claro, sorriem as eslovenas, venezuelanas, colombianas, ucranianas, libianas, angolanas e norte-americanas.

Entre as megalópoles, no item hospitalidade e cordialidade, segundo pesquisa entre viajantes internacionais frequentes sai na ‘pole’ a “Big Apple”, Nova Iorque. Entre Rio, São Paulo e outras cidades, inclusive americanas, tenho de concordar. NY é uma grande metrópole que se torna pequena, interiorana, e isso constatei muitas vezes. Entrar no elevador do hotel pela manhã e ser recebido com um “o senhor teve uma boa noite?”, “tenha um muito bom dia”, e ao voltar, “tenha uma boa noite de sono”: são coisas cotidianas.

Os apertos de mão são efusivos, em uma reunião você é uma pessoa importante para todos, e isso é mútuo. Caronas, pedidos de companhia para um almoço ou jantar, convites seguem qualquer compromisso. “Nós ficamos muito honrados com sua participação” (e tome souvenirs), é o mínimo que dizem na saída de uma conferência. Nas lojas, nos restaurantes, o atendimento é impecável. E no Natal, ah, nem se fala: deseja-se “Merry Christmas” até para poste, como se diz. É o espírito de Natal, deixam escapar sorrindo cristãos brancos e negros, judeus ou muçulmanos.

(Abaixo, uma mensagem de Natal de um novaiorquino por adoção, John Lennon, comemorando o fim das guerras, cheio de esperança)


Vinicius de Morais
Meia volta e de volta à saudade, alimento de poetas como Vinicius de Morais: “O meu amor sozinho / é assim como um jardim sem flor / (...) / como é triste se sentir / saudade / (...) Estrela, eu lhe diria / desce à terra, o amor existe / e a poesia só espera ver / nascer a primavera / para não morrer”. Mas Chico, outro mestre do pincel dos versos, tinge a saudade na ponta de faca cortante: “oh, pedaço de mim / oh, metade afastada de mim / leva o teu olhar / que a saudade é o pior tormento / é pior do que o esquecimento / é pior do que se entrevar / (...) Oh, pedaço de mim / oh metade exilada de mim / leva os teus sinais / que a saudade dói como um barco / que aos poucos descreve um arco / e evita atracar no cais” (em “Pedaço de mim”, sem comentários - veja e ouça abaixo).


João de Barros
Se Chico é cruel, sofredor é o grande João de Barro: “a sôdade é dor pungente, morena / a sôdade mata a gente”: é alguma coisa do mal, tanto que é preciso “matá-la”, antes que ela mate a gente. O carnavalesco Zé Keti matou a saudade de uma breve noite um carnaval passado: “a mesma máscara negra / que esconde teu rosto / eu quero matar a saudade / vou beijar-te agora, não me leve a mal / hoje é carnaval...”

Noel Rosa
Saudade, beleza e gentileza, tudo são coisas tão pessoais que se torna impossível medi-las: haveríamos de ter um parâmetro, um modelo que nos guiasse o julgamento. Mas não há. Julgamos pelos nossos próprios umbigos e, às vezes, intestinos, no sentido de algo profundamente interior e pessoal. Sentimos falta de tudo e todos que nos faltam, morem longe ou já partidos, e isso é saudade. 



Cartola e dona Zica
Noel Rosa, repreendido por usar uma camisa estampada em um boteco após o funeral de sua mãe, sentenciou: “luxo preto é vaidade, neste turbilhão de dor. O meu luto é a saudade, e saudade não tem cor”. A beleza maior da mulher pode ser a da companheira de vida inteira. De resto, a beleza de que o povo fala é apenas estética, curvada a certos padrões culturais determinantes e hoje, especialmente, às imposições da mídia. E gentileza deveria ser obrigação. 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

VELHO SIM, OBSOLETO, NUNCA!



Não sei quem é o autor da frase, mas procurei saber (sem alusão aos velhos de hoje que tentam guardar para si as biografias de suas juventudes). Mas o que vem a ser obsoleto? Segundo o Houaiss, a palavra vem do latim ‘obsolĕtus’, ‘deteriorado’, ‘estragado com o tempo’. Durante o ano em que estudei desenho industrial, antes de me mudar de vez para a música, aprendi uma expressão que me causou certo estupor, típica de uma sociedade que produz para vasto consumo, enriquecendo muito poucos: a ‘obsolescência calculada’. Trocando em miúdos, você fabrica um produto, e pode fazê-lo durar por muito tempo - mas por que é que eu vou vender uma lâmpada que pode durar 10 anos, se posso criar outra, que não dura 2?  


Agora, o que tem isso a ver com a velhice? No Estadão de segunda-feira, 25/11 (pág. B1), um sorridente Ueze Zhran, poderoso dono da Copagaz, decreta, do alto de seus 89 anos: “Eu não tenho tempo para morrer agora”. A artista plástica japonesa naturalizada brasileira Tomie Ohtake acaba de completar 100 anos de idade, e é uma figura simpática de grande notoriedade. Oscar Niemeyer (1907-2012), morreu aos 105 anos, sempre trabalhando, submetendo-se à sua própria visão da arquitetura, do universo e da ciência, poetando: “Não é o ângulo reto o que me atrai, nem a linha reta (...) criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso de seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito o universo”. 


Chaplin e Ghandi
Charlie Chaplin (1889-1977), ícone do cinema universal, faleceu aos 88, ainda sob os aplausos de público e crítica, que o considerava o maior cineasta de todos os tempos. Deixou para trás a perseguição ao povo judeu e ainda foi tido como comunista durante o macarthismo americano - apesar de o artista ter sido apenas um esquerdista crítico do capitalismo americano, e longe de fazer mal a quem quer que seja. Sofreu, foi homem de vários casamentos e relacionamentos (geralmente com mulheres bem mais jovens) e teve onze filhos, base de sua resistência.  Suas ideias foram sempre inovadoras, e à frente de seu tempo. Tornar-se obsoleto o teria feito sucumbir à morte mais cedo. 


Dave Brubeck
O grande Dave Brubeck (1920-2012), um dos maiores pianistas de jazz americanos, completou seus 90 anos tocando por longa hora e meia no Blue Note, um espaço sagrado entre os músicos americanos. Criou o superhit ‘Take Five’ em compasso “quebrado” de cinco tempos, entre outras obras-primas. Charles Aznavour (nome artístico), francês de origem armênia, compôs mais de 850 canções e participou de 60 filmes. Seu vozeirão ‘de peito’ arrancava suspiros das mulheres e tornava qualquer jantar a dois nas melhores casas de shows de Paris um grande acontecimento. Deixou marcada sua “Que C’est Triste Venice” (Como é Triste Veneza) por gerações de apaixonados. 


Pierre Boulez, em plena forma
Pierre Boulez (1925), vanguardista francês, ainda atua em diversas áreas, na bagagem uma extensa lista de composições de técnicas moderníssimas e passagem como regente titular de orquestras como a Filarmônica de Nova Iorque e a BBC de Londres. Também fundou um grupo chamado ‘Ensemble Intercontemporaine’ - que tive a honra de receber em São Paulo, – tão irreverente quanto a música que fazia. Sir Georg Solti (1912, Hungria, 1997, Inglaterra) era um cidadão do mundo. Fugiu de Budapeste (1939) depois da anexação da Hungria pela Áustria, e foi regente da Orquestra de Paris e da Filarmônica de Londres, além de uma brilhante estada na Sinfônica de Chicago, cujo som moldou a seu gosto: volume de sopros inimitável e as cordas brilhantes, criando a identidade do grupo entre os mais importantes do mundo. A milésima performance de Solti à frente da CSO foi programada para seus 85 anos. Morreu de infarto fulminante, talvez da forma que queria, sem nunca se aposentar. Tanto confiava em sua longevidade que, ao ser chamado para renovar contrato com sinfônica, aos 80, negou-se a fazê-lo por apenas 10 anos, exigindo o prazo de 20 anos. (Abaixo, veja e ouça uma aula e ensaio de Sir Georg Solti sobre “Quadros em uma Exposição”, de Mussorgsky, um depoimento brilhante aos 80 anos, em extrema lucidez e energia). 





Magda Tagliaferro



A grande diva do piano brasileiro Magdalena Tagliaferro (1893-1986), que aos treze anos de idade apenas encantou Debussy e o Conservatório de Paris logo em sua chegada à França, recebeu, aos 80 anos, um apartamento do governo francês, para que morasse em comodato por 20 anos. Chorou copiosamente: “como é que eu vou fazer depois, meu Deus”? 







Juventude Nazista
Ficar velho desfrutando da sabedoria é um dom que esses grandes nomes souberam e sabem aproveitar. O pior é andar na contramão, involuindo, ao invés de evoluir. Existem os que tentam reescrever a história da juventude nazista, como os skinheads, e os proto-niilistas-anarquistas, que inflam de vazios as cabeças dos blackblocs - exemplos perfeitos de involução histórica.
 
Bastidores: o que não se vê
Os mecanismos de controle da sociedade têm que avançar junto com o aperfeiçoamento da organização do estado. Os vícios públicos brasileiros levaram há dias uma autoridade com sólida formação intelectual a declarar que “o culpado pela corrupção é o sistema eleitoral” (sic). ‘Culpa do sistema eleitoral’ é anedota, mas talvez seja ele que abre as portas para os desvios de dinheiros públicos, juntamente com o sistema tributário, o sistema financeiro, a burocracia estatal... É esse o tipo de homem obsoleto que se curva ao ‘sistema’ também obsoleto que ele culpa mas venera, pois que é a cortina que obstrui do país a visão da cena e dos atores, é o pano de boca que separa palco e plateia, burocracia infernal por trás de cujos bastidores os obsoletos se dão as mãos em uma bacanal particular, por trás de belas cortinas fechadas. 
Cortinas fechadas: o que se vê

sábado, 23 de novembro de 2013

"POR FORA, BELA VIOLA...



... por dentro, pão bolorento”. Assim como outros tantos ditos de origem portuguesa, com passaporte de entrada carimbado em um dos recantos onde esses provérbios populares mais proliferam, as Minas Gerais, existem também variações como “por fora, bela viola, por dentro, molambo só”, ou “por fora, bela farofa, por dentro não tem miolo”, ou ainda “por fora, renda de bilro, por dentro, molambo só”, entre muitas, muitas outras. O que importa é que o provérbio enaltece a beleza da viola, tão característica do Brasil nas suas mais diversas manifestações de raiz, como o cururu, o desafio, o repente, a seresta e a moda de viola, entre outras. Mas o que vem mesmo a ser uma viola? Um tipo de violão?


Rebab
Há vários tipos de viola, e por isso mesmo é interessante conhecê-los, para não misturá-las. Há a viola que vem desde antes do período barroco, da família ‘viola da braccio’ (viola de braço, de onde o violino e a viola sinfônica), ‘viola da gamba’ (ou viola de perna, apoiada entre elas, como no violoncelo), o ‘basso de viola’, ou ‘violone’ (que deu origem ao contrabaixo), e uma variedade enorme delas, todas tocadas com arco. Essas violas, descendentes do ‘rebab’ ou ‘rabeb’ árabe, que hoje encontra um parente direto entre nós, a rabeca, é um instrumento mais primitivo, levado para a Espanha durante o Renascimento pelos mouros do Norte de África após a ocupação da Península Ibérica (711 até a queda de Constantinopla, em 1453). 


Criança tocando alaúde
Mas há outro tipo bem diferente de viola, tocada com os dedos ou uma palheta, nascida de outro instrumento árabe, o ‘al’oud’, de onde veio o alaúde, pai das violas dedilhadas e do violão moderno – mais precisamente, a nossa viola de arame é afilhada de um instrumento da mesma família, a fíbula. 


Roseta e cordas em ordens duplas
No Brasil, dizemos genericamente viola de arame, mas aqui por nossas plagas ela é mais conhecida como viola caipira, havendo ainda outras designações, como viola brasileira, viola buriti, viola de cabaça, viola de cordas, de feira, de Queluz e diversos outros apelidos. A viola brasileira tem dez, às vezes doze cordas, ou melhor, cinco ou seis ordens duplas de cordas, com o mesmíssimo som para cada par. A sequência da afinação, entretanto, não é a do violão. Existe um número grande de sistemas para afiná-la, como cebolão, cebolinha, natural, rio-abaixo, guitarra, boiadeira, maxabomba e outras. Já no Nordeste, entre os repentistas, é comum a afinação Paraguaçu, que parece ter descido rios até o Vale do Paraíba. Pois a viola, com sua beleza e seu som, já chegou à erudição, entre pesquisadores e estudiosos como Fernando Claro e Roberto Corrêa, entre outros! Ela se assume portuguesa, destacando-se como viola braguesa, de onde certamente surgiu nossa viola de arame, ou caipira. 


Dedeira de violeiro
Os violeiros mais versados usam uma palheta (chamada dedeira) que se prende ao redor do polegar da mão direita, a qual ora arpeja as cordas, ora faz alguma linha de baixo, deixando os demais dedos para os bordados e floreios – o que obriga o artista ao uso de unhas compridas para tirar os sons cristalinos das finas cordas de aço. O que se ouve é inconfundível: às vezes ela faz de harpa, às vezes é mais rasgada, outras ainda mais suave e aveludada, criando um ambiente intimista. O falecido virtuose Renato de Andrade, a quem há muitos anos recebi em casa no Rio, foi um famoso titã da viola: tirava sons de harpa, harpa paraguaia, cítara e - segundo ele mesmo, brincando - até de viola! (Veja e ouça abaixo o virtuose Renato Andrade)






Violeiro tocando: Almeida Júnior
Os que são realmente exímios, como foi Andrade, são capazes de tocar sem acompanhamento, fazendo epopeias e malabarismos com seus pinhos, como fossem solistas de um instrumento só. Pois “botar a viola no saco” é sinônimo de ir embora, mas sempre levando o bem mais precioso que o artista carrega consigo: “... tange, ferra, engorda e mata / mas com gente é diferente / Se você não concordar / não posso me desculpar / não canto pra enganar / vou pegar minha viola / vou deixar você de lado / vou cantar noutro lugar” – cravou Geraldo Vandré, em sua linda “Disparada”. 


A viola pode chegar ao mais fino acabamento e construção: peças de ébano, marfim ou osso, pinho canadense, abeto, e ainda algumas da cepa nacional, como o jacarandá da Bahia (de primeiríssima linha), cedro, mogno, chegando a ser adornada com arabescos (que não negam a origem islâmica!), detalhes escavados, desenhos decorativos, roseta ou mosaico, na boca do instrumento, filetes artísticos (madeira mais escura ou mais fina incrustada em finas tiras simples ou duplas – ver imagem) e até banho de ouro nas cravelhas (ou tarraxas), que são mecanismos que servem para afinar o instrumento. O tamanho da viola é o de um pequeno violão, sendo que os ombros superiores (as curvas de cima) são menores do que os inferiores. 
Viola filetada nas bordas: brazdaviola.com.br


Moçoila da fazenda
Por isso o ditado: a viola é sempre linda, sempre bela, e especialmente quando tocada. Exerce fascínio não só sobre quem a ouve, mas também sobre quem a vê, tamanha obra de arte em si que ela é. O corpo mais feminino do que o do violão é sinuoso como o da jovem moçoila da fazenda. Mas voltando ao ditado “por dentro, pão bolorento”, emigrado da cultura portuguesa para Minas Gerais, quer dizer que por trás de muita beleza pode haver algo de bastante podre: uma linda mulher de passado vadio, um político de terno vincado que fala bonito mas tem história que passarinho não bica, um cantor empavonado e de bota lustrada sem voz nem afinação, enfim, tudo o que parece lindo como uma bela viola, mas que não toa nem afina como seu som nem seduz com sua beleza, virtudes reservadas aos ouvidos e olhos sensíveis ao que o homem sabe criar de mais belo.