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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

IVAN LINS, O MENESTREL UNIVERSAL


Ivan Guimarães Lins (1945), filho de militar, foi um jovem estudante como qualquer outro, e como muitos interessou-se pela música. Começou os estudos de piano tarde, aos 18, quando já tinha um caminho traçado para a vida, o curso universitário de química, sua futura área de concentração acadêmica. Mas fez tal qual Noel Rosa, que largou a medicina, e Chico Buarque, a arquitetura, entre muitos outros exemplos.  Foi no núcleo universitário que se entregou à música até o ponto de ter de se decidir entre a ciência e a arte, e resolveu-se pela paixão. Como eram tempos da ditadura elevada ao seu mais alto grau (pós-1968, ano do AI-5), era inevitável que o apelo político alguma hora se tornasse mais forte em suas criações. Em 1970, no Maracanãzinho, Ivan ficou em segundo lugar no histórico Festival de MPB, sempre ao piano, tocado de seu jeito muito pessoal e percutido, acordes fechados e simples, às vezes secos, influências da soul music.
Com Elis Regina
Enquanto sua música premiada na competição - “O amor é meu país” - fazia sucesso, houve quem a achasse ufanista. “Madalena” (1970), estourou nas paradas pela voz de Elis Regina com uma poesia de Ronaldo Monteiro de Souza que é um grito de dor de cotovelo – “Ê Madalena /o meu peito percebeu / que o mar é uma gota / comparado ao pranto meu” -, enquanto a música laureada, “O amor é o meu país”, era o brado de um louco apaixonado e errante: “Eu queria, eu queria, eu queria/ um segundo lá no fundo de você / eu queria me perder, ah, me perdoa / porque eu ando à toa sem chegar”.
Eram tempos do programa cult de TV da Globo “Som Livre Exportação” que mostrava o que acontecia na MPB. Participei como instrumentista de um grupo de uma dessas gravações, dirigida pelo produtor Walter Lacet, em um programa no qual já estrelavam Os Mutantes, Ivan Lins, Baby e Os Novos Baianos e outros tantos. Ivan ainda navegava no sucesso de “Madalena”, talvez passando ao largo da vanguarda pop de Os Mutantes e da politização de alguns. Antes de iniciar uma tomada de vídeo de uma canção romântica com Ivan, o diretor Lacet pediu a algumas garotas presentes que pusessem a mão no queixo, repousando sobre ele as cabeças como se estivessem apaixonadas, em um ângulo filmado entre o vão da tampa aberta do piano e o corpo do instrumento – truque de marketing que lembra Franz Liszt (1811-1886), inovador do passado que pagou do bolso mocinhas para chorarem durante suas apresentações.
Eram dias de Vandré, Chico Buarque, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, todos engajados, e das universidades vigiadas, dos protestos contra o regime e a censura, um crescente movimento popular que fez Ivan engatar seu romantismo em marcha mais lenta, até conhecer o poeta Vítor Martins, e aos poucos se familiarizava com as aflições de sua geração.
Ivan Lins, com Vítor Martins em primeiro plano
Da parceria de Ivan Lins com Vítor Martins, iniciada em 1974, surgiu um belo LP cuja música principal dava nome ao título do álbum: “Somos todos iguais esta noite”, subtítulo “É circo de novo” (1977), uma alegoria sobre os tempos em que vivíamos. O circo era uma menção poética ao cerco político exercido sobre toda uma geração: “Nós vivemos debaixo do pano / pelo truque mal feito dos magos / pelo chicote dos domadores / e o rufar dos tambores”. A incursão no trato de assuntos além daquelas paixões e dores de cotovelo do início foi gradativa e mostrou um outro Ivan Lins, bem evoluído musicalmente, com a poesia mais elaborada e cheia das figuras de linguagem de seus parceiros. Mas foi outro letrista, porém, que trouxe Ivan Lins a um engajamento mais aguerrido: Maurício Tapajós. É dele a letra de “Aparecida”, uma alusão aos presos políticos desaparecidos, que passou rente ao fio da navalha da censura: “Diz, Aparecida / sumir desse jeito não tem cabimento / me conta quem foi, por que foi / e tudo o que você passou / preciso saber seu tormento / preciso saber da aflição”. E veio a magnífica "Cartomante": "Nos dias de hoje é bom que se proteja / ofereça a face  pra quem quer que seja", para encerrar com essa metáfora sobre o baralho e o momento político, um vaticínio, quase: "Cai o rei de espadas / cai o rei de ouros / cai o rei de paus / cai, não fica nada".
Gravação de "We are the world"
Enquanto se preocupava com seu país, novas portas se abriam. Ivan chegou a ser reconhecido nos EUA: suas músicas haviam sido gravadas por estrelas como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, George Benson e Quincy Jones. Foi convidado a participar da histórica gravação feita por uma constelação de astros mundiais do movimento USA for Africa, músicos se alternando na canção We are the world (1985). Importante: antes de se internacionalizar, Ivan havia passado por uma fase nacionalista, mais raiz, de que é exemplo um baião moderno, com seção rítmica sofisticada, “O velho sermão”: “Um velho de barba bem comprida / numa praça bem perto da estação / com Jesus numa cruz bem encardida / contava histórias do sertão” (letra de Ronaldo Monteiro de Souza). Na mesma linha ‘pé no chão’, abraçou o sertanejo de raiz, com “Ituverava”, homenagem ao município paulista onde nasceu o parceiro, cantada em terças paralelas como fazem os caipiras, uma lindíssima moda de viola com letra de Vítor Martins gravada em 1977. Houve ainda a incursão do músico no folclore, com “Bandeira do divino”, registrada pela dupla caipira Pena Branca e Xavantinho.
Com o Grammy Latino (HTFORUM)
Em sua longa estrada, Ivan Lins foi um universitário romântico e sonhador, foi vanguarda de uma tintura bem pessoal, foi artista militante como tantos de seu tempo e foi internacional. Sempre com ótimas parcerias, gravou e foi gravado no exterior, recebeu um Grammy Award (1997) e foi nove vezes laureado com o Grammy Latino, mas nunca se esqueceu de suas raízes, como vimos em “Ituverava”, “O velho sermão”, sua versão da “Bandeira do divino” e a marcha-rancho moderna “Dona Palmeira”. 
Um brasileiro cosmopolita!





sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

CHOVE, CHUVA...


Grande sucesso de Jorge Ben em 1963, a música foi gravada e regravada inúmeras vezes e até nos EUA, com direito a sotaque: “...chove sem parar / pois eu vou fazer uma prece / pra Deus, Nosso Senhor / pra chuva parar / de molhar meu divino amor”.  (O verbo chover é impessoal, mas eu, criança, pensava que se o céu falasse diria, poderoso, “eu chovo”; eu ria muito com isso).
A chuva evoca às vezes sentimentos líricos, outras de liberdade, aventura, o deixar-se molhar, como em “Cantando na chuva” (1952), filme estrelado por Gene Kelly, aquele tipo de ator em extinção: atuava, cantava, sapateava e dançava. A música era uma ode à chuva e ao amor, tanto que em Portugal título do tema e do filme foram traduzidos como “Serenata na chuva”. Caetano entregou-se à orgia com mistura de chuva, suor e cerveja: “Não se perca de mim / não se esqueça de mim / não desapareça / a chuva tá caindo e quando a chuva começa / eu acabo perdendo a cabeça”. O poeta lusitano Fernando Pessoa fez uma complexa digressão sobre a chuva: “Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva não faz ruído senão com sossego”. Mário Quintana retratou seu hábito musical: “Eu ouço música / como quem apanha chuva: / resignado / e triste / de saber que existe um mundo / do Outro Mundo”.
O grupo The Hollies viu na chuva a deixa para abordagem de uma garota, em “Bus stop” (1966): “Ponto de ônibus / ela está lá gelando / querendo meu guarda-chuva”. Romântico dos velhos tempos, o cantor flertou com ela muitos dias de chuva no verão, demorando a criar coragem para oferecê-la o amparo de seu guarda-chuva. E seu coração.
Tanto no filme “Cantando na chuva” quanto em “Bus stop”, o guarda-chuva é símbolo de proteção, bem explorado por um certo banco do passado em seus comerciais. Cobrir, proteger, aproximar, desculpa para chegar mais perto de alguém; aceitar “carona” em um guarda-chuva era sinal de consentimento para um início de conversa, digamos, bem “cosi”. No memorável filme “Os guarda-chuvas do amor” (“Les parapluies de Cherbourg”), de Jacques Demy (1964), com Catherine Deneuve no papel de Geneviève e música do notável Michel Legrand, uma jovem de 16 anos, filha da dona de uma butique de guarda-chuvas, vê seu amor Guy partir para a guerra na Argélia. Na orquestra Boston Pops, com Arthur Fiedler, ao final da música-tema os contrabaixistas giravam guarda-chuvas coloridos. Sucesso.
Mas nem tudo é amor e alegria no mundo da chuva. O Antigo Testamento conta que Deus salvou Noé e pares de animais, dando ao patriarca até detalhes da madeira (bordo) e as dimensões corretas para construção de uma arca. Um dilúvio acabaria com as gentes da terra e a missão seria repovoá-la, longe do mal que a atingia.
Economia.uol
Tempestades, maremotos e tsunamis são a natureza em revolta, desafiam a capacidade do homem de se prevenir e causam tragédias de dimensões imensuráveis. Em São Paulo, na madrugada e manhã do dia 10 de fevereiro, caiu 96% da precipitação esperada para o mês inteiro, a maior desde 1983. O rio Pinheiros, da marginal, uma das principais artérias da cidade, viu o maior volume de água desde 1967. O Corpo de Bombeiros, dos valorosos soldados que arriscam suas vidas, recebeu 1.400 chamadas de emergência para mais de mil alagamentos, com saldo de quatro mortos e um desaparecido - em 24 horas. Em uma metrópole como São Paulo, números em catástrofes são geralmente assustadores. O secretário de Infraestrutura e Meio Ambiente da cidade, Marcos Penido, resumiu o drama paulistano: a chuva é uma resposta da natureza pelos maus-tratos. (Apesar de os ambientalistas terem ouvido ironia recente de extremo mau gosto, a ameaça de confiná-los na Amazônia).
Malha fluvial de SP (PMSP/SMVA/SEMPLA)
O problema é um tiro no pé dos governantes. No dia seguinte à tempestade, 11 de fevereiro, matéria de O Estado informava que, de 2015 a 2019, a Prefeitura paulistana havia projetado gastos de R$ 3,8 bilhões para intervenções nos rios, riachos e córregos da cidade, mas apenas R$ 1,1 bilhões conheceram seu destino. Ou seja, a conta desses investimentos sofreu perda de R$ 2,7 bilhões, apenas 28,95% do que fora planejado terminaram aplicados, e segundo o DAAE na calha do rio Tietê meros 50% dos recursos para desassoreamento. O solo impermeabilizado na capital aumentou 11% em 33 anos, um convite à calamidade: concreto, concreto, concreto.
A LIMPEZA DO TÂMISA
50 anos após ser declarado morto biologicamente, o Tâmisa tem sido
saudado como uma história de sucesso ambiental.
Investimentos em infraestrutura como piscinões, intervenções nas imensas malhas fluvial e pluvial de São Paulo, nada disso tem visibilidade eleitoral – para colocar o assunto em pratos bem limpos. Vale mais nas urnas um lindo viaduto mal feito e mal acabado (que volta e meia redunda em tragédia) do que 100 intervenções em rios e córregos, criação, manutenção de piscinões e obras de drenagem. Não se faz um planejamento independentemente de governos, como a transposição subterrânea das vias expressas de Boston, EUA, que perpassou vários governos em 20 anos, ou a despoluição e desassoreamento do Rio Tâmisa, em Londres (o The Telegraph registrou que o rio foi declarado biologicamente morto em 1957, mas 50 anos depois estava povoado de pássaros e peixes). Não temos cultura de continuidade, o país parece ser projetado para cada quatro anos – “os meus quatro” -, e nada mais. O mal aflige também várias cidades do interior de São Paulo (com a “contribuição” da capital via Tietê), e, claro, outras metrópoles. Não dá para celebrar como Bob Dylan no Festival de Woodstock, em 1969: “It’s a hard rain a-gonna fall” (“Uma tempestade vai cair”). Nada de paz, amor e guarda-chuvas, só lágrimas e prejuízos.


sábado, 15 de fevereiro de 2020

QUANDO INICIAR UMA CRIANÇA NA MÚSICA?

Câmara à prova de sons externos
Em princípio, até mesmo antes de ela nascer. Mas como, alguém perguntaria. Experimentos mostram que, ao ser colocado em uma câmara com máxima vedação acústica, o indivíduo escuta dois tipos de sons: um é bem agudo, de seu próprio sistema nervoso (o “tinnitus”, som interno agudíssimo, quase sempre acompanha pessoas com perda auditiva). Os outros sons são graves: respiração, batimentos cardíacos e fluxo sanguíneo, uma espécie de sinfonia aleatória. Quando o feto estiver plenamente consolidado, são esses os sons que o futuro bebê passará a ouvir no saco amniótico. Bem antes de enxergar (quando vier “à luz”), ele já ouve e sente vibrações sonoras. Um ambiente musical, a proximidade entre o ventre materno e uma fonte sonora, tudo será vital para essa iniciação. Isso, sem falar que a música é um perfeito ansiolítico natural para a futura mamãe. (Diz Daniel J. Levitin, em seu This is your brian on music": o feto escuta música, como foi descoberto por Alexandra LaMont, da Universidade de Keele, Reino Unido.  Ela descobriu que crianças reconhecem e preferem as músicas a que elas foram expostas  na gestação um ano depois de nascerem".  London,  Penguin Books, 2019)

Gestante iniciando seu bebê na música
É claro que essa introdução deve ser começar com músicas suaves, talvez renascentistas, ou um cravo barroco - e não, claro, um heavy metal ou uma orquestra com impactos fortes de volume. Mas quando, exatamente, o feto pode começar a ouvir música? Segundo estudo supervisionado pela Dra. Debra Sullivan (PHD, Kansas Medical Center) publicado na revista americana Healthline, um feto começa a perceber sons na 18ª semana, e entre a 25ª e 26ª, por volta de sete meses de vida, ele passa a reagir a sons e ruídos. Provavelmente este é o momento ideal para a introdução da música na vida do bebê. Minha filha mais velha passou pela experiência por volta desse ponto da gestação, inclusive com headphones tocando músicas na barriga da mãe. Vem o nascimento, e o bebê já no quarto reage a um pequeno aparelho de som tocando Mozart e Bach muito suavemente, a música já não lhe era novidade. A luz, com certeza, sim.
Um parto Leboyer
Baseando-se na ideia dos sons internos da barriga da mãe e seus efeitos no feto e ao nascer, e partindo das pesquisas do obstetra francês Leboyer, autor de Pour une naissance sans violence  (traduzido aqui como “Nascer sorrindo”), cientistas aperfeiçoaram um método ideal, segundo eles. Além do nascimento dentro de uma banheira com água quente, quase na penumbra, conforme preconizado pelo francês, foi incluído um acolhedor som grave que lembraria ao bebê os misteriosos sons que ele ouvia na placenta, suavizando o choque da passagem para o mundo exterior.
Pesquisa realizada em berçário neonatal do Canadá separou os bebês em três grupos: um ouvia música rudimentar, bem simples, o segundo melodias mais elaboradas, como Mozart, e o terceiro era um grupo placebo, não ouvia música. Ao levarem os três grupos para um berçário sonoro, o de músicas básicas ficava meio apático, talvez menos com o repertório mais simples. A “turma placebo” era indiferente, mas a que ouviu Mozart reagia bastante ao compositor, preterindo o repertório básico ou o silêncio.
Pouco tempo depois a criança já fica deitada no chão com aqueles sininhos e chocalhos pendurados, tudo o que pode torná-la feliz, produzindo os próprios sons. O estímulo é sempre fundamental: música de fundo, a voz de mamãe e papai, um violão ou outro instrumento, se eles souberem tocar.  Cantando sempre no mesmo tom, os pais vão se surpreender com a criança começando a repetir um ou dois sons da música, depois uma linha inteira, uma estrofe. E vão pasmar ao ver que ela é capaz de fixar a tonalidade de cada música, uma espécie de ouvido absoluto espontâneo. Coisas como a “Lullaby” de Brahms (ouça abaixo), “Brilha, brilha”, ao som de Mozart, “Terezinha de Jesus”, sempre nas tonalidades corretas. Detalhe: tudo isso antes de o bebê balbuciar palavras.

Tommy e seu bongô
Quando ele conseguir ficar sentado, percussão é bom atrativo. Objetos de casa tornam-se mirlitons, instrumentos fáceis, como colher de pau, latinhas, tudo o que possa produzir sons. Com um ou dois anos, o bebê pode se interessar por instrumentos. Concertos de orquestra, choro, boa música, enfim, em bons ambientes. Do meu lado um tanto behaviorista, ligo o comportamento ao meio em que se cresceu.  Se a criança for levada a ouvir o pior, o mais barulhento, é nesse meio que sua mente será desenvolvida, e ela sofrerá reflexos de uma convivência nem tão boa quanto se desejaria. A melhor música no melhor ambiente conforta, faz uma criança saudável (nada de auditórios caros, há muitas possibilidades baratas e gratuitas). Isso é educá-la para crescer feliz desenvolvendo o potencial da mente.
Hora do contato com os primeiros instrumentos. Importante que ela mesma experimente um daqueles xilofonezinhos, uma flauta doce, brinquedos que alguma hora podem ser trocados por instrumentos com alguma qualidade. E depois um pequeno violão, quem sabe um violino?
Caruso e Helen Kellerf
Entra em campo o professor de música. As aulas de início podem ser em grupo, um poderoso meio de socialização e percepção do indivíduo no coletivo, com regras próprias e participação comum. E nunca esquecer o canto! Os que infelizmente nasceram mudos podem tocar, e os cegos desenvolvem a audição em níveis bem acima da média. Surdos podem “ouvir” pela vibração (o fenômeno Helen Keller - cega, surda e muda - gostava de “ouvir” música com os dedos. Um dia levaram-na ao grande tenor Caruso, mito da ópera, e Keller, ao colocar o indicador nos lábios dele abriu um sorriso especial, soava-lhe tão bem! Aos que têm deficiências físicas, nada impede tocar ou cantar. Assim criaremos não necessariamente musicistas, mas com certeza adultos inteligentes e sensíveis.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

UM GÊNIO CHAMADO CARTOLA, SEM CASACA E GRAVATINHA

Cartola: mangueirense até na hora do café

Fundador da Estação Primeira da Mangueira, Cartola, aliás, Angenor de Oliveira (1908-1980), fez do verde-rosa de sua agremiação bandeira de vida, de seus sambas, paixões (“verde que te quero rosa / rosa que te quero verde”, cantou, parafraseando ‘de ouvido’ García Lorca). Cartola nasceu no Catete, zona central do Rio, e foi criado um tanto nas Laranjeiras, onde aprendeu os primeiros acordes do pinho, que seu pai lhe ensinava. Mas a vida ali não lhe sorria. Cartola passou por dificuldades e resolveu adotar o Morro da Mangueira para viver. Dos terreiros de candomblé às rodas de samba, e de lá ecoando para o Rio inteiro e depois o Brasil, era com as mesmas mãos calejadas de pedreiro que compunha. Mas não se dobrava às facilidades que seu talento poderia lhe proporcionar, se fizesse sambinhas bobos para vender. 
Cartola foi gravado por boa parte dos bons cantores do país, mas direito autoral na música só existia para os que pagavam jabaculês – um “por fora” para os disk-jockeys – a fim de multiplicar execuções nas rádios e as vendas. Abriu com sua esposa o restaurante Zicartola, no Centro, em 1963, e resistiu ao golpe de 1964, até o ano seguinte. O lugar aos poucos havia se tornado, além de ponto de encontro de artistas e estudantes, reduto da intelligentsia carioca, a boemia intelectualizada, e lançou nomes como o portelense Paulinho da Viola, hoje consagrado.
Foi apenas aos 66 anos, em 1974, que Cartola gravou seu primeiro LP, cujo apelido lhe emprestava o título, e que trouxe uma das joias mais preciosas que temos, “As rosas não falam”: “Bate outra vez / com esperanças o meu coração / pois já vai terminando o verão / enfim...” Suas letras refinadas traziam palavras simples, bom gosto a toda prova, ele que era ótimo cantor e um bamba no violão de “cordas de aço”, aliás título de outra de suas músicas. Cantor de primeira, compositor de belas harmonias e melodias riquíssimas, como poeta revelou-se mestre na bordadura de letras e no casamento da fina poesia com a música: “Queixo-me às rosas / mas que bobagem / simplesmente as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti, ai...” Versos de rara beleza que qualquer poeta gostaria de ter escrito, e que toda mulher se deleitaria ao ouvir.
Há também expressões de alegria, como “a sorrir, eu pretendo levar a vida / pois chorando eu vi a mocidade perdida” (“O sol nascerá”, com Elton Medeiros). Essa alegria da comunidade mangueirense também surge em “Alvorada”, tendo como parceiros Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho: “Alvorada lá no morro /que beleza / ninguém chora / não há tristeza /(...) o sol colorindo é tão lindo / é tão lindo / e a natureza sorrindo / tingindo, tingindo”. (Que contraste com o “Pranto de Poeta”, em que ele pensa no morro que vai chorar após sua morte, em um samba que é o Cartola falando, e só ele, tristeza serena mencionada no final deste artigo.)
Nos meus tempos de EUA, às vezes recebia alguns discos de meus pais, talvez temerosos de um possível afastamento meu das raízes brasileiras, o que nunca aconteceu. Ouvia, além do Cartola, Luiz Gonzaga, Elizeth, e claro, tudo o que me encantava. E também aproveitava os LPs, indicador esquerdo manobrando a agulha do toca-discos e o direito no lápis, fazendo das músicas ditados melódicos em uma partitura. Transcrevia uma a uma como treinamento auditivo, começando pela mais fácil, “Ensaboa, Mulata”, gravada por Cartola com sua filha Creuza, de voz bem rústica, quase um canto de trabalho. Ele: “Ensaboa, mulata, ensaboa / ensaboa” (ela emenda no ato:) “tô ensaboando / estou lavando a minha roupa / lá em casa já estão me chamando, Dondon”.
Van Gogh
Letra e música que transcendem adjetivos como sublime estão na obra-prima “O mundo é um moinho”, em que o poeta não esconde a tristeza por a mulher amada tê-lo abandonado: “Ainda é cedo, amor / mal começaste a conhecer a vida / já anuncias a hora de partida / sem saber mesmo o rumo que irás tomar”. Termina com uma feliz comparação da vida com um moinho de vento, uma roda-gigante de poucos momentos altos e muitos baixos, de erros e sofrimentos, revelando seu rancor por ter sido largado: “Preste atenção, querida / de cada amor tu herdarás só o cinismo / quando notares estarás à beira de um abismo / abismo que cavaste com teus pés” (link abaixo). Letra e melodia, de igualmente incomparável beleza, seduziram grandes nomes de nossa música, que não hesitaram em registrar o lamento de Cartola: de Beth Carvalho a Ney Matogrosso, de Cazuza a Badi Assad, com seu violão mágico.

Morro da Mangueira
Cartola não se preocupava com a morte, apesar de apegado à Da. Zica e aos amigos, ao violão, à Mangueira e ao samba. Em “Pranto de poeta”,  diz que morrer não é tão ruim quando há um morro inteiro e uma escola de samba para se lembrarem dele: “Em Mangueira / quando morre / um poeta / todos choram / vivo tranquilo em Mangueira porque / sei que alguém há de chorar quando eu morrer”. (Ao final da gravação, Cartola agradece a palinha do amigo Nelson Cavaquinho, já meio bêbado: “Obrigado, Nelson”. E ele: “Ovligado, Gardola”. A gravação dessas falas teve de ser refeita para que ficasse mais compreensível).
Nelson Sargento, a caráter
Tanto era apaixonada a reverência dos amigos e admiradores do poeta que em seu velório o sambista Nelson Sargento, em homenagem, deu a palavra e o ponto final do sofrimento dos presentes: “Cartola nunca existiu. Foi apenas um sonho que a gente sonhou”.