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sábado, 10 de junho de 2023

ROBÔS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

 


Q
uando o escritor russo-americano de ficção científica Isaac Asimov lançou “Eu, Robô”, em 1950, sucesso por décadas, não se imaginava que o objeto de paixão da vida do autor fosse seduzi-lo tanto. Até onde essas engenhocas cheias de fios, circuitos, diodos, transístores e, na época, válvulas sem fim, poderiam ir? Conseguiriam raciocinar por si algum dia? Asimov tinha paixão especial por robôs: além do título já citado escreveu mais quatro, formando uma série. Eram máquinas dóceis submetidas ao homem. Fora a visão humanista de Asimov, aquelas foram épocas de terríveis e sombrias visões do futuro, como Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, romance distópico (utopia negativa) de George Orwell, e o mais recente Alphaville (1965), do cineasta Jean-Luc Godard. O mundo temia que essas engenhocas começassem a pensar e fazer-desfazer por si, criassem iniciativa própria e, de roldão, dominassem seu criador, o homem, e o mundo inteiro. Cruzes!


N
ossos sonhos giravam em torno de simpáticas máquinas como os robôs da série de desenhos animados Os Jetsons - dóceis, servis, mas com uma pitada de opinião para tornar os filmecos mais divertidos. Ah, perguntaríamos, quem dera tivéssemos ao menos um desses escravos, e o mundo liberto de vez de toda sorte de escravidão e exploração do homem pelo homem! (Como se sabe, máquinas não sentem. Bem... Ao menos até hoje). Aprende-se robótica nas escolas, constroem-se protótipos de robôs, uns complexos, outros apenas para jogar um futebol diferente, meio enlatado. Na universidade, meu filho juntou-se a um grupo de colegas e chegou a disputar campeonatos, um novo esporte que demandava tutano, diria minha avó, cérebro para preparar aqueles gadgets. Ora, se as máquinas são boas, por que temê-las? Podem trabalhar por nós, não é o que sonhamos? Labutarmos cada vez menos? (Meu pai dizia: “a preguiça é a mãe da invenção”. E eu, cada vez mais, acredito nisso).

O Univac

M
as o mundo foi rodando, o tempo passando e maquinarias de cada vez menor tamanho começaram a se tornar mais necessárias para o pensar eletrônico. Os computadores reais dos tempos de Isaac Asimov ocupavam uma sala inteira, décadas depois não precisariam mais do que o espaço de uma agendinha eletrônica, e hoje... Quem diria, hein? cabe tudo e do resto muito mais um tanto em nossos celulares!).


H
oje, uma coisa chamada Inteligência Artificial (Artificial Intelligence, em inglês, ou AI) lança nova sombra sobre o mundo, o terrível medo de que forças anônimas – ou quem sabe até muito bem identificadas! – venham a nos dominar executando manobras complexas em supervelocidade. De um lado, alunos sonham com a IA nos seus trabalhos escolares, os acadêmicos nas pesquisas científicas, e em toda “mão de obra cerebral” – está criado o neologismo? -, com uma rapidez nunca dantes vista. De outro, e a Receita Federal? E as guerras? O que intriga é: se alguém tem o poder de programar o funcionamento da IA, então há quem tenha o controle nas mãos, ou, indo bem longe, a rigor poderão com ela deter o poder sobre o mundo.

Foto: Casa Magalhães

D
ia desses uma amiga propôs aos seus pares da rede social que cada um desse o nome de um livro, apenas um. Propus Dom Casmurro, de Machado de Assis, e em segundos o que existia na Internet sobre ele era espremido em exíguo espaço, algumas linhas. Dentro dos parâmetros dados, a geringonça mostrou a data da primeira edição, 1899, a editora, Garnier, e uma série de informações sobre aquele momento no conjunto da obra do autor. Corri para conferir algumas coisas, mas até ali tudo estava certo. Em três segundos! Pensei: será possível catalogar um número astronômico de obras para grandes bibliotecas ou universidades em curto espaço de tempo! (Arregalei os olhos, ri e lembrei-me de um episódio divertido de uns vinte anos atrás, na casa de uma amiga produtora artística. Nós, do estúdio dela no andar de baixo, ouvimos a velha senhora chamá-la e perguntar quando ela tinha saído e retornado do supermercado, pois entregaram pacotes na porta. Ouviu não, mãe, fiz as compras pela Internet, eles só vieram entregar! Pronto. Bastou para a velha senhora passar mal e esbravejar onde estamos, será isto o demônio, aonde vamos chegar?)


A
pós pensar nas vantagens do uso dessa parafernália tecnológica, Chat GPT e afins, diverti-me vendo montagens fotográficas de celebridades onde elas nunca estiveram, obras impossíveis de Da Vinci e Picasso e até rabiscos de composições bem medíocres. Na arte e no amor, nossos escudo e broquel, não há chance para IA no final.


L
uz amarela. Em um ensaio para a revista Economist de 28 de abril, o renomado filósofo e historiador israelita Yuval Noah Harari explica o porquê da necessidade de um freio para desarmar as IA na esfera pública. Aqui e ali, vê-se um alerta para o surgimento de inicialmente pequenas calamidades. Lembremos depois as eleições de 2022, as poderosas fake News, os bots, algoritmos manipuláveis; pensemos os estelionatos cibernéticos em massa e, pior de tudo, o avanço indomável das guerras. Se brincadeira, nesta nova 4ª revolução industrial, ou cibernética, a IA já não teria mais graça alguma. Da 3ª revolução, a da robótica, informática e eletrônica, saltaremos a uma outra, a da velocidade descontrolada, cálculos exponencialíssimos com pilotos desconhecidos. Do Alpha Soissante, do velho Alphaville de Godard do início, e lembrando Fahrenheit 451, obra-prima de Ray Bradbury, devemos lutar contra esse “novo mundo”, onde não haveria lugar para amor, arte e sentimentos. E venceremos!

sexta-feira, 2 de junho de 2023

VENI, VIDI, VICI

 


D
o latim clássico, a frase teria sido proferida por Júlio César ao fim da batalha de Zela, em 47 a.C., como uma mensagem do Imperador ao Senado de Roma para festejar a vitória. Em português, “Vim, vi, venci”. A frase tornou-se famosa a ponto de ressurgir em outros momentos da história, com algumas variações - ao fim da Batalha de Viena, no século XVII, João III, rei da Polônia, teria bradado Venimus, vidimus, dio vicit: “Viemos, vimos, Deus venceu”. Do nome italiano Vinicius, dim. de vinius, vinnilus – “que tem voz agradável” - surgiu também Vinício, popular entre nós.


V
inícius José Paixão de Oliveira Júnior, nome que por necessidade de espaço foi ‘encolhido’ para Vini Jr., nasceu pobre em São Gonçalo, RJ, em 12/07/2000. É um rapaz de 23 anos incompletos que aos 16 entrou para a história, vendido pelo Flamengo carioca para o Real Madrid por 45 milhões de euros – R$ 240 mi, a segunda maior soma jamais paga por um jogador brasileiro, ficando atrás apenas de Neymar. Jovem, bamba e já dono de uma pequena fortuna, Vini só poderia esperar sucesso e desfrutar dos louros da fama. Novo, forte, artilheiro temido nos campos, Vini teve construída de repente ao seu redor outro tipo de barreira, uma muralha, digamos, de racismo, inveja, xenofobia, sentimentos que têm sido cultivados mundo afora em ciclos históricos, germinados com racismo e despeito e de mãos dadas com a inveja. Um garoto virtuoso a bordo do sucesso e da glória provocou o que há de pior, como Caim contra seu irmão Abel: o ódio, que além de envolver tudo isso pode muito mais.


E
m Valencia, Espanha, os sonhos de Vini tornaram-se agora enormes pesadelos. Há as inevitáveis comparações entre o racismo espanhol e o “estrutural” brasileiro, coisa sem sentido, já que em todos os lugares do mundo o preconceito está presente em suas diversas formas. Neste momento, muitos já culpam a vilania espanhola na questão do preconceito racial, pois estamos em um momento em que o ódio explode aos gritos de “morra, Vini!” em pleno jogo, arrancando lágrimas de muitos – e do próprio jogador em campo. Para “salvá-lo” da histeria dizem que o melhor seria ele deixar o Valencia, LaLiga, a Espanha, supostamente para proteger-se da turba ensandecida teleguiada por líderes mais radicais. Durante quase 40 anos, a ditadura espanhola de Franco, ao lado das de Mussolini, na Itália, Hitler, na Alemanha, e Salazar, em Portugal, foi radical exemplo de ódio e racismo. Talvez sobra do veneno dos monstros do Guernica, de Picasso, genial pintor espanhol.

Guernica, de Pablo Picasso


Júlio Gomes, do UOL (23/05), acha que um país que recebera Vini tão bem não teria o germe do ódio despertado assim sem mais. E muitos teriam visto um começo: setembro de 2022, em um programa de TV, “desses de baixo nível, como temos vários aqui”: “um idiota racista fala no ar que o jogador precisava respeitar os rivais, parar com as dancinhas após fazer gols e deixar de ‘fazer macaquices’”. Naquela mesma semana, torcedores do Atlético de Madri, do lado de fora do estádio, imitavam macacos; faixas com mensagens hostis engrossaram o caldo do ódio, bonecos com o uniforme do Vini foram pendurados em uma ponte, e outro surgiu qual em uma forca, simbolizando uma ação ainda mais cruel.

CAE Senado

N
o Brasil, em discurso infeliz, um senador da República, Magno Malta (PL-ES), criticou a repercussão do assunto na imprensa durante a reunião da CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) do dia 23/05: “Cadê os defensores da causa animal que não defendem o macaco?” E que tudo seria uma “revitimização” de Vini Jr. Qual o limite da imunidade parlamentar no Brasil? Um homem que se diz fundamentalista religioso, pastor evangélico e cantor? (Aliás, esta última “qualidade” não conhecia. Ele estava, sabe-se lá o porquê, em uma reunião da Frente Parlamentar pela Inclusão da Música no Ensino Escolar, de que cuja mesa de debates participei na Alesp há uns 20 anos. Por ser “cantor”? Não que eu saiba).

Javier Tebas, do LaLiga

A
pós esses episódios e suas repercussões, natural que as posições se exacerbassem. A extrema direita no mundo traz de carona a xenofobia e o racismo, e o partido de extrema direita espanhol – hoje todos temos os ‘nossos’ – chama-se VOX (do latim ‘voz’). Javier Tebas, presidente da LaLiga, notório racista e militante, ouviu de Vini “quero ações e punições, hashtag não me comove” (O Globo, 22/05, Esportes). Cabe a nós todos lutarmos juntos contra o ódio racial: os piores momentos da história o tiveram como combustível da raiva a movê-los. Segundo o IBGE, 55,8% da população brasileira é considerada negra. É verdade que a porcentagem de apresentadores de TV, jornalistas, professores universitários e economistas de pele escura e preta cresceu também, logo, sábio será lutar pela inclusão e combatermos juntos toda e qualquer discriminação.

Pelada de rua em S. Gonçalo

O
menino Vinicius, de São Gonçalo, pode jogar em qualquer país do mundo, mas isso não deveria engrossar as fileiras dos que o querem longe da Espanha, “para protegê-lo”.  Vini deve ter a mesma liberdade e autonomia de qualquer craque, já que talento lhe sobra. E o mundo tem a chance de aprender com ele, pois já há quem o eleja como um segundo marco na luta contra o racismo neste século, após George Floyd, assassinado por policiais em Minneapolis, EUA, sob sufocantes I can’t breathe (eu não posso respirar) seguidos.

Ao ouvir o nome de Vini pela primeira vez, lembrei-me daquela frase de Júlio César em 47 a.C. Hoje, não por acaso, dei título a este artigo em homenagem a ele, Vini. E que brade para todos: Vim, vi, venci.

 

sábado, 27 de maio de 2023

SAMUEL KERR, "SULL' ALI DORATE"

 


Se me perguntassem um dia o que eu mais gostaria de ver em um regente coral, a resposta seria curta e simples de ser entendida: Samuel Kerr. Mas se esmiuçasse, como se estivesse em um coro: clareza, confiança, empatia, o gestual claro, o respirar junto; a experiência, que é fundamental, pois espera-se um chão firme onde se depositar segurança; energia, aquela que se transmite ao bem-reger, fazer a música acompanhá-lo para poder acompanhá-la. Como pessoa, a simpatia, o sorriso sempre que possível, aquela liderança que trafega em rua de duas mãos, pois que é um fluxo de ida e volta (tentar ser um líder no pódio sem que seus liderados retribuam é um tiro no pé). Enfim, aquela presença viva, o carisma daquele que sabe galvanizar as atenções e, sem ser arrogante, com energia envolver um ambiente, seja uma pequena sala ou um auditório de grande porte. Carga pesada, tudo isso! Esta é a primeira questão: o regente está preparado para tanto? Caso negativo, a música não deslancha, ela apenas passa na nossa frente.

Samuel, ao centro, Naomi (d) e eu (e) 

Cruzava com Samuel Kerr no Teatro Municipal de São Paulo e na Escola Municipal de Música. Se não me engano, uma ou outra vez na orquestra, dividindo o palco com a Osesp do Eleazar de Carvalho (eram duas figuras diferentes, um de coro e outro de orquestra, temperamentos diversos trazendo a seu modo quase todas aquelas qualidades que listei no princípio). Samuel foi diretor da Escola Municipal de Música do Teatro Municipal nos anos 70, cargo que eu mesmo vim a ocupar vinte anos depois, já de volta ao Brasil e estabelecido em São Paulo. As mãos do Samuel lá estavam, no carinho com que ele tocou a EMM nos seus tempos de direção. Um ciclo que, após minha saída, veio a ser ocupado durante algum tempo por outra grande regente coral, a quem eu chamo até hoje ‘Magic Naomi’, que nos deixou no começo da pandemia, em 2020 – não coincidentemente, pessoa ligada a mim, e de forma mais estreita ao próprio Samuel. Certo dia, reencontramo-nos em Tatuí. Foi há poucos anos, fechando o círculo de cumplicidade e de sonhos comuns para a EMM e para a música.


Lembro-me de que foi no dia de meu aniversário, em maio de 2000, que Samuel tornou-se mestre pela UNESP – exigência da carreira, e não sua, frisava -, paralelamente ao cargo de professor daquela prestigiosa universidade, sua tese vindo a público com um trabalho de grande importância: “História da Atividade Musical na Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo – Uma Fisionomia Possível”, abordagem detalhista de longa data da tradição musical presbiteriana em São Paulo. Passando os olhos pela tese, achei-a de tamanha relevância para a música da Capital e a tradição presbiteriana que comentei, que deveria publicar o texto em forma de livro. Samuel ponderou e pediu-me sugestões, sendo que a primeira que me veio à cabeça foi minha editora de então, a Edicon, que ele fosse lá e conversasse com a responsável, ela estaria avisada. Fechou-se o acordo e, não tardou muito, logo estávamos com os exemplares nas mãos.

O jovem Samuel ao órgão

Um trecho do Boletim nº 1479 da Igreja Presbiteriana, de 13/11/1955, dedicava-se a um talentoso jovem músico: “Foi solenemente empossado o novo organista da Igreja, Samuel Kerr. Durante o culto recebeu a solene investidura de organista emérito o Prof. William Sunderland Cook, a quem foi entregue o respectivo diploma”.  Samuel, que começara a estudar música um pouco tarde, aos treze, ao assumir o posto tinha então vinte anos, muita garra e especial vocação. Naquela Igreja, Samuel plantou as sementes de um estudo cada vez mais dedicado e profundo, lapidando-se e crescendo não apenas como organista, mas também como maestro de coro e professor amado por todos os que com ele quisessem aprender. Levava assim adiante uma tradição musical do passado, de grandes compositores e regentes de coro, organistas e cantores que se entregavam com dedicação especial à arte de louvar a Deus. A Igreja Presbiteriana Unida, no Brasil, existe há mais de 120 anos, e contando-se os primeiros esforços já conta com um total de 158 anos, desde os primórdios, na atual Rua Líbero Badaró, e chegando à fusão como Igreja Presbiteriana Unida, no bairro de Santa Cecília, em 1900. Além de congregar seus fiéis, a IPU ajudou a produzir um sem-número de músicos para o país, e lá amadureceu nosso querido maestro.

Mário de Andrade

O nome de Samuel Kerr é indissociável do Coral Paulistano, fundado em 1936 por Mário de Andrade e voltado principalmente ao repertório coral brasileiro. Assistir ao maestro conduzindo o Paulistano era abrir o coração para a nossa música, apresentações da mais alta qualidade não apenas no sentido universal, mas, também, à preservação do que temos de melhor - do folclore, do molejo e do gingado, passando pelas nossas composições mais elaboradas e chegando à música contemporânea.


Na quarta-feira, 17 de maio de 2023, baixava as mãos al niente, ao silêncio, pela última vez, o maestro frente ao seu imenso coro, que conduziria com espírito jovem e invulgar energia. Tinha então 88 anos completados doze dias antes; aniversariava um dia depois de mim, razão de eu guardar a data. Sua partida rumo à grande pausa, não sei se repentina, foi notícia que me pegou despreparado, de supetão. Um susto. (Lembrei-me da foto dele que guardo, nós juntos à amiga regente do Coro da Osesp Naomi, em uma visita que fizeram a Tatuí). É chegada a hora de entoar para Samuel o famoso coro da ópera Nabucco, de Verdi: Va pensiero, sull’ ali dorate (“Vai pensamento, sobre asas douradas”).

sábado, 20 de maio de 2023

CAVALOS SELVAGENS E O CURURU

 


um dito inglês bastante popular: “Cavalos selvagens não poderiam me arrastar daqui” (Wild horses couldn’t drag me away), com o sentido de que nada, força alguma tiraria de onde está a pessoa que fala. Quem já viu, no prado ou no cinema, cavalos selvagens em disparada ou empinando sobre as patas traseiras aquela massa de músculos, animais lindos de se ver, sabe do que falo. A expressão deu o mote para que os Rolling Stones compusessem uma bela (embora tristíssima) música sobre o tema, Wild horses, sobre as dores de um amor e cavalos selvagens. A frase pode ser entendida como “nada me arrasta daqui”, e em sentido estrito, “tenho os pés fincados neste local”. Nesse aspecto, “aqui é o meu lugar”, referindo-se a um rincão, região ou estado. No Brasil, o apelo seria o mesmo do americano: a terra em que se nasceu, que se adotou, aquela onde se viveu, cresceu, enfim, conheceu os costumes e, deste modo, sorveu a cultura local e sua  culinária, jeito de se vestir, o sotaque, o dialeto. Em todos os lugares, fala-se de um apego muito especial: os rios da terra no sangue das veias e os pés no barro do chão.

Portinari

Curiosamente
, mesmo havendo um apelo geográfico, pode acontecer de o sujeito ser levado por “cavalos selvagens” a outro lugar, longe da região onde nasceu. Bons exemplos são Villa-Lobos e seu “Trenzinho do Caipira” cultura distante de seu Rio de Janeiro natal; o norte-americano Aaron Copland com seu “Apalachian Springs” e Antonín Dvorák, nascido na Boêmia do Império Austríaco, hoje República Tcheca, mantendo o vigor de suas raízes no coração, onde quer que trabalhasse, a exemplo das “Danças Eslavas”. Assim como muitos outros compositores, seja lá onde estivessem também estaria a cultura de suas origens, base de sua formação. Em nossa música popular, Gilberto Gil canta a Bahia por atavismo em todos os cantos, enquanto Belchior e Fagner carregam seu Ceará pelos lugares que adotaram. O mesmo aconteceu com bluesmen e cantores folk americanos, e Bob Dylan seria um ótimo exemplo. Ainda pensando nas artes, temos o paulista Candido Portinari, que pintava sofridos retirantes nordestinos, sem esquecer a também paulista Tarsila do Amaral, cujas pinceladas modernistas foram do interior à metrópole das chaminés de fábricas e seus operários, espremidos entre muros.


Parece
que quanto mais se vive, mais a gente se espalha, e o último lugar onde se vive, que é onde se está, é a outra ponta do torrão natal. Vemos ‘cavalos selvagens’ até que a vida nos cerque e nos conduza para outro lugar, enquanto nossos corações deixam um pedacinho ali, outro acolá, e levam consigo um pouco dos caminhos que trilhamos. Difícil esconder de nós mesmos o tanto que acumulamos na estrada, melhor é rasgar a cortina e mergulhar na riqueza desses lugares. Os velhos Mutantes da Pompeia paulistana cantavam com tanta graça, com a brilhante e saudosa Rita Lee à frente, um futuro intergaláctico (“Dois Mil e Um”): “Astronauta libertado / minha vida me ultrapassa / em qualquer rota que eu faça” - com voz de matuto forçada (ave Rita, salve artista cosmopolita).

A turma do Cornélio Pires

, sim, os que nem cavalos selvagens arrastariam de seus lugares a troco de nada, parecem fincados na origem e destino, são parte de seu chão, e cantam, contam, pintam sua história. Os artistas de raiz, distantes dos spotlights dos estúdios de TV são estranhos à superficialidade das telas coloridas, precisam sentir com o tato o barro, a terra e o cheiro de suas nascenças, suas andanças, suas vivenças.   

Camargo Guarnieri

Conheci
bem o cururu, que é a cantoria do Médio Tietê, desafio paulista com rima de santo e viola ponteando o improviso. Foi nas plagas do cururu que compreendi uma nova universalidade. Aprendi, às vezes surpreso com as rimas de “repente”: somos astronautas caipiras tal qual cantou Rita Lee, na velocidade da luz. Li muito Mário de Andrade, que, embora cidadão urbano por excelência, ensinava seus alunos, como o tieteense Camargo Guarnieri, que é nas raízes que se encontra o alimento da criação. Assim como a turma de Cornélio Pires, jornalista também de Tietê, que trouxe a linguagem caipira mais raiz à exposição como verdadeiro gênero musical. (Curioso, não se sabe se Cornélio (1884) e Guarnieri (1907) sequer se conheceram, há um lapso de tempo e de idade desde a ida do primeiro para São Paulo, em 1914. Salvo uma convivência que não houve, ambos beberam da mesma fonte, pisaram o mesmo barreiro).


Meia
volta ao cururu: quem me estimulou no assunto foi o grande e saudoso Osvaldo Lacerda, que chegou a me mandar cartões sobre os ensinamentos do Mário de Andrade: o uso dos elementos de raiz na música de concerto – prática levada à risca pelo mestre Guarnieri. Agora veja, esse tríptico de raiz-concerto, Andrade-Guarnieri-Lacerda, que foi o grande laço nacionalista da música do século passado, respirou a brisa do Médio Tietê, e também Villa-Lobos viu a fumaça do trem em sua excursão musical pela Estrada de Ferro Sorocabana.

Josué e Zé Pinto

É
aqui que eu amarro meus cavalos, neste ponto do texto e da vida. E se assim o faço é porque me afeiçoei pela gente da região e me apaixonei por sua música, que tem jesuítas, indígenas, tropeiros, catequistas. Conheci gente como o canturião José Pinto, poeta inspirado e de mão cheia, o Josué, jeito bonachão tocando aquela viola que chamo ‘de arrimo’. É a eles que dedico este texto, em nome de todos os cururueiros. Sejam mais fortes que cavalos selvagens, e que rimas e carreiras continuem a florescer no chão por onde passem e cantem.

 

sábado, 13 de maio de 2023

DE REPENTE,

 


...tudo na vida pareceu um quadro impressionista: paleta de muitas cores, paisagens, a beleza natural dos traços cheios de detalhes, um conjunto encimado por um céu azul como nada. Tudo isso junto, parecia que a natureza emoldurava aquele paraíso, as águas límpidas refletindo em nossos olhos, nosso pensar. (Mas por que essa poesia? Por que tão de repente? Quem viu esse quadro, esse óleo? Não seria simples ilusão, uma conspiração de sonhos, pensamentos etéreos e de boas ideias?)


N
a sexta-feira, cinco de maio, o etíope Tedros Adhanom, presidente da Organização Mundial de Saúde (ONU), com sede na Suíça, veio a público para declarar – ou decretar? - o fim do ciclo de emergência da pandemia. Desastre. Muitos tradutores apressados, ao redor do mundo, reproduziram a fala como, ao som de trompetes, a saudação ao fim da pandemia de Covid-19, como foi inicialmente compreendido pelos ouvintes mais afoitos, desavisados e repetidores de esquina. Soava-lhes como um salvo-conduto para a volta àquela vida boa de praia, aglomerações, abraços efusivos e sacudidos, beijos de simpatia ou amor, um novo paraíso construído com tijolos de fantasia e argamassa de pura ilusão, lembrando os bons tempos. As normas da própria OMS definem quando se declara o fim de uma pandemia, coisa não tão simples quanto pareceu ao grande público. A AIDS, por exemplo, ainda é uma pandemia viva, e, mesmo que em pequena escala e sob controle, ainda cabe como uma luva dentro da definição: “doença infectocontagiosa (...) caracterizada por alta morbidade e mortalidade (...) em curto espaço de tempo, por várias regiões do mundo” (Houaiss. Etim: do grego pan, todo, e demia, doença que atinge uma população). Para se ter uma ideia, o último diagnóstico da varíola (doença original, nada a ver com a recente ‘dos macacos’) aconteceu, solitário, apenas em 1977, o que levou a OMS a declarar a doença, em seu estado original, como extinta, após longos anos. Ademais, tal ‘ciclo de emergência da pandemia’ não poderia, jamais, ser lido como fim da pandemia em si, nem ao pé da letra.


T
ambém o diretor-executivo da OMS, Michael Ryan, tentou emendar o soneto, dizendo que a emergência pandêmica acabou, “mas a ameaça não. A batalha não acabou, e provavelmente não haverá um ponto em que a OMS anunciará o fim da pandemia”. O próprio Tedros disse que “foram quase sete milhões de mortes reportadas à OMS, mas sabemos que o número é muito maior, ao menos 20 milhões”. E, arrependendo-se (UOL, 5/05/23): "A pior coisa que qualquer país pode fazer agora é usar esta notícia (...) para baixar a guarda, desmantelar os sistemas que construiu ou enviar a mensagem de que a covid-19 não é mais motivo de preocupação".

Varella: El País 

N
a mesma noite da declaração de Tedros, a GN, em longa série plena de depoimentos, deixou claro que, em hora nenhuma, a pandemia teria acabado, batendo o pé com firmeza, pois ela continua viva como nunca, apenas com menor número de internações, intercorrências e mortes. No programa falou-se até em negacionismo, e o Dr. Dráuzio Varella, juntando tudo, chegou a mencionar a palavra estupidez: sobrancelhas franzidas, expressão dura, estava mais irritado com tudo aquilo do que raramente se vira antes. Varella sempre lutou pela vacina e por salvar vidas, como um todo; renomado cientista que é, nunca deixaria passar uma expressão que sequer insinuasse este mal entendido. É da vida dele, o talento especial que exibe ao falar, ao se fazer compreender. Mas para quem ouve notícias picadinhas, por alto, deve-se evitar esse tipo de sutileza, que pode sobrepassá-lo sem aviso como um trator.


E
stamos em pleno deslanche inicial da subvariante arcturus, da omicron, e vis-à-vis às portas da nova fase da campanha: a da vacina bivalente, que já lota as geladeiras das unidades de saúde do país. É difícil este começo, especialmente dada a “indolência natural do povo brasileiro”, como dizia Mário de Andrade. Faltou nesses anos cooperação de setores dos mais altos escalões; pior ainda, o recente escândalo das carteiras de vacinação, surrealistamente para não serem vacinados devido a interesses escusos ou supostas posições ideológicas exatamente aqueles que tinham poder sobre o quê, quando e onde inocular a população. Um péssimo exemplo. O modelo bivalente ora nos postos de saúde tem dois alvos, como o próprio nome diz: tanto as cepas mais antigas quanto as mais recentes. A última delas, Arcturus, surgida na Índia, país mais populoso do mundo (1,5 bi de habitantes), já toma corpo na Europa e ‘estreou’ no Brasil recentemente. Se por um lado ela mata em escala bem mais reduzida, alastra-se com maior facilidade e joga aos leitos e emergências número significativamente menor de pacientes. Mas o bicho ainda vive, Vivinho da Silva, diriam antigamente. 


F
oi tudo doce ilusão, ou tudo não passou de um mal-entendido? Talvez entre a pronúncia do Dr. Tedros Adhanom, da OMS, a redação do discurso, certo enfado e a quase sempre plana e rasa intepretação ao falar? Perdeu-se o sentido da coisa e criou-se um novo vírus, este virtual e multicelular, pioneiro em fazer confusões, campeão na arte de desinformar, material fértil para fake news de todos os gêneros. As equipes desses cirurgiões das palavras têm atuado rápido nesse tortuoso e bem sustentado caminho do equívoco; reinventam o que, pelo simples prazer ou dever de mal informar, já vinham fazendo: “Fez-se do amigo próximo o distante / fez-se da vida uma aventura errante / De repente, não mais que de repente” (Vinicius de Moraes).

 

sexta-feira, 5 de maio de 2023

COMMIRNATY BIVALENTE, RNAm E COVID

 

Foto: Prefeitura de Tatuí

S
egunda-feira, 24 de abril de 2023. Pensando em uma conversa tida com um amigo no sábado, não demorei cinco minutos para decidir: Centro Municipal de Especialidades Médicas, o CEMEM, perto do centro de Tatuí, SP. A rua é movimentada, mas achei vaga no estacionamento da calçada da clínica, desci, andei um pouco, galguei o ambiente, limpo, amplo, organizado. Ali, sentei-me um pouco e puxei assunto com uma senhora de branco, gentil enfermeira, que após conferir meus dados aplicou-me no braço esquerdo uma dose da Pfizer – Commirnaty Bivalente RNAm, a chamada sexta dose de vacina contra a Covid-19. Ela é uma sequência das anteriores anti-Covid acrescida (daí o ‘bivalente’) do Ômicron B.1.1.526. Já RNA é a sigla em inglês de ácido ribonucleico, que com o ‘m’, ‘mensageiro’, forma batalhões de microscópicos cavalos de Troia que atuarão dentro do corpo para contra-atacar o vírus.


A
proveitei para, no braço direito, ter aplicada uma dose contra gripe, a Influenza Trivalente, já que esses bichinhos vão mudando ano a ano e temos de nos atualizar. Atendimento e eficiência: saí de casa e em menos de uma hora eu estava de volta almoçando. Antes que eu me esqueça, minhas experiências com vacinas aqui em Tatuí têm sido cada vez melhores. Mas é hora de colocar na pauta alguns problemas de consciência: se eu não me vacinasse, abriria guarda para que os vírus que hospedasse fizessem vítimas terceiros que não escolheram adoecer, o que é muito grave. Uma boa notícia: apesar de esta última vacina ter sido destinada a categorias etárias ou comorbidades específicas, no mesmo dia 24 o governo liberou a bivalente para todos acima de 18 anos, desde que já tenham tomado ao menos duas de Coronavac, Astrazeneca ou Pfizer até há mais de quatro meses (G1, 24/04/23). Li que era grande a preocupação do governo com a baixa procura – cerca de 18% - pela faixa etária e comorbidade iniciais, daí a liberação para os dezoito anos.


P
arece que o apelo já não era tão grande quando do pavor inicial provocado pela doença. Penso que vários fatores contribuíram para esse, digamos, descaso na campanha da vacina anti-Covid: um pouco de cansaço nessa já longa jornada, a desatenção para certos cuidados – máscaras e álcool em gel, além dos efeitos profiláticos, tinham um componente psicológico: ambientavam a tomada de certas precauções. Esse descaso é bem grande, estimulado no viés político por autoridades do nosso país, banalizando as dimensões da virulência da praga covidiana: com certeza, mesmo que um pouco mais rarefeita, o fato é que a incidência do vírus diminui, mas continua infectando. E matando.

Vibração de diapasões por simpatia

R
esolvi escrever este artigo por motivos que fincam raízes no cenário que acabo de descrever logo acima. O gatilho, para mim, veio com a decisão solidária que me deu na tradicional selfie com a carteirinha de vacinas na mão, tirada ainda na rua, e convenientemente postada em uma rede social. Muitos fazem isso, e eu não me furtei: estimula a procura pela inoculação e a solidariedade. Outro motivo: respondendo à questão de um amigo idoso na rede social sobre se “tem” de tomar esta sexta dose, expliquei o que sabia e ele se disse convencido a ser inoculado. Mais um protegido, que seja. Por fim, lembrei-me de que, apesar de meu ralo conhecimento superficial de infectologia e afins, era meu dever de cidadão fazê-lo (no sábado, durante aquele bate-papo com o amigo vizinho, fui convencido a segui-lo sem que ele tivesse de mover um dedo: brotou em mim (em música, diríamos que foi vibração por ‘simpatia’). Reproduzi o gesto, foi solidariedade, mesmo, feliz assim como eu fiquei ao ouvir a ideia do senhor idoso que se manifestou pela decisão da vacina. Afinal, a humanidade não é uma corrente?


H
oje todos já sabemos muito mais do que sabíamos sobre o vírus Covid e suas variantes e cepas, às vezes elegantes e eruditas com o alfabeto grego a reboque. Há três anos tudo era temor contra esses vírus franco-atiradores invisíveis. Medo, muito medo. À medida que novas cepas foram surgindo e a vacinação no mundo mostrava certo progresso, vimos que é no coletivo que ela funciona: já sabemos que não vai desaparecer, veio para ficar, mas a inoculação em massa diminuiu os efeitos que levaram muita gente à internação ou à morte. E agora, estamos protegidos? Em tese, parece que será uma luta constante: manter o nível de infecção muito baixo, quase nulo, cujos efeitos seriam pouco significativos em grande escala. Porém, para tanto é preciso que a campanha não arrefeça e continue o esclarecimento público, assim como que as pessoas atendam aos apelos quando convocadas em suas vezes. Foi assim com a pólio e outras doenças. Ao contrário, o negacionismo vai muito além de “pinga mata isso”, “já tive, estou imunizado” e balelas assim: negar o potencial do vírus é abrir flancos para mais formas de ataque.

Os flagelos das vacinas em 1904

J
á houve uma “Revolta das Vacinas” contra a campanha do Dr. Oswaldo Cruz, em 1904, quando a peste bubônica, a tuberculose, a febre amarela, a cólera e a varíola tomavam conta das ruas e sua população, em grande número recém-liberta da escravidão, sem que lhe fosse oferecida moradia condigna e sequer o saneamento necessário.   Mas o Brasil, terra do Oswaldo Cruz, continua sendo um dos bastiões dessa luta. É preciso ajudar, cada um colocar o seu grãozinho de areia. As vacinas protegem e são de graça, ou, melhor dizendo: nós todos pagamos, por meio de impostos,  que nos retornam com os antivírus e nos são de direito!

Obrigado por tudo, enfermeiros!



 


sexta-feira, 28 de abril de 2023

TRANSGÊNEROS, ARQUEOLOGIA E IDIOMA

 


V
ilma Gryzinski publicou na Veja de 19/4/2023 o artigo “Os EUA também estão na ‘decadança’”? (“O declínio da superpotência tem algum fundo de verdade”). Discorre sobre tudo, citando uma ironia do intelectual conservador francês Patrick Buisson: “a sociedade ocidental se suicida dançando”. Fala de delírio coletivo e até de uma seita adepta de princípios radicais. Cito uma aberração destacada por Gryzinski, entre outros apontamentos: “...sem contar que o mundo da ciência está sendo assolado pela mesma doença ocidental da autocrítica alucinada, além de acusações de que a matemática, a física e outras áreas são racistas e sexistas. E quanto mais absurda a tese mais sucesso faz na academia: até a arqueologia entrou na dança, com a promessa de uma ala ‘anarquista’ de não mais definir o sexo das ossadas ancestrais, para não designar erradamente esqueletos – acredite se quiser - que tinham opção de gênero diferente daquela que os ossos e o DNA nos contam”.


S
im, é isso! Parece necessário respeitar a opção sexual de esqueletos da pré-história (sic), sua escolha de gênero. E daí a generalizarmos e cairmos no engodo que toda generalização traz, podemos crer que a essa altura tais “antropólogos anarquistas” já estão lá na frente a fazer a taxonomia (classificação sistemática em categorias) dos animais pré-históricos trans: dinossaures, brontossaures, pterodátiles e outros, ficando dispensados alguns como os T-rex, que já vêm com a desinência (fim, sufixo) “x” pronta: haja ‘anarquismo’. Além de desinventarem nosso vocabulário parece quererem avançar sobre outras ciências, além da arqueologia. Misture-se bem tudo isso, acrescente-se a dita “inteligência artificial”, algumas pitadas de modismo e teremos aí o homo ignorant” dos novos tempos: feito para repetir as asneiras que lhe ensinam–programam e assumir seu personagem, negando o conhecimento científico anterior. Pronto para vigiar e ser vigiado por seus pares, algo como no surreal filme “Alphaville” (1965), do francês Jean-Luc Godard (onde, numa cidade imaginária, além de obrigada a seguir os frios ditames do computador central, “Alpha-Soissante”, ‘desvios’ como falar de amor eram proibidos,). Há uma corrida científica, na área do chamado STEM (ciências da tecnologia, engenharia, matemática e natureza): a China, prestes a se tornar a maior economia do mundo, prepara quase cinco milhões de graduandos por ano, enquanto os EUA fazem menos de 500 mil, cada vez mais sujeitos a modismos e ideias malucas.


D
o lado de cá, na banda brasileira, qual seria o papel de um professor sério nesse imbróglio crescente? Afastar a grafia incorreta, pois embora aparentemente muito mais simples, a pseudomoderna de hoje só coaduna muito bem com a escrita de dois ágeis polegares digitando no teclado de “smartphones”; ensinar o que se chama “norma culta”, que vem a ser o conjunto de regras e padrões linguísticos empregados por pessoas de alta escolaridade, tal qual a língua falada e escrita por juristas, pesquisadores e cientistas. Ou seja: a turma das ossadas transexuais dos “x” ou “es” não entra.

Charles Dickens

N
ada contra a gíria bem usada e os neologismos bem escolhidos, além da transexualidade – afinal, os idiomas, como ela, são dinâmicos. Mas certa fixação adolescente em transgredir todos os idiomas até mesmo por ignorância léxica e gramatical, e, pior, a ciência mundão afora, tem de ser, por dever de ofício, alvo de toda a classe dos formadores de opinião na luta contra a proliferação de tantos vícios e desvios. [Abro aqui espaço para o uso desses dialetos na língua inglesa, segundo o escritor norte-americano Christopher Moore (1957): “Do ‘londonês’ de Dickens aos ‘fakes’ de Salinger, dos ‘beatniks’ de Kerouac às loucuras de Cheech & Chong e daí aos neologismos do Hip-hop, dialetos sempre foram usados como forma de uma geração se distinguir das outras”. Ou seja, segregar para se defender, tentando manter o isolamento de sua tribo].

Segundo Buisson, o delírio coletivo perpassa um fundo de realidade - mesmo se a defesa dos transgêneros virar uma seita obscura que exige adesão a princípios como intervenções médicas radicais em crianças! Até onde vai o fanatismo? Mas isso não seria uma ideia medieval, antes de mais nada?


O
utro perigo é a pasteurização, o estreitamento da mente e da escrita. Em 2014, uma certa Patrícia Engel Secco surgiu no Minc com um projeto de distribuição de livros simplificados, para fácil leitura. E foi-se iniciar logo com Machado de Assis, ícone da nossa língua portuguesa. Coisa para ganhar dinheiro fácil via incentivo fiscal, logo esbarrou em séria oposição. Eu havia trabalhado com a então nova ministra Marta Suplicy no Instituto Florestan Fernandes e na Prefeitura de SP, além de estado com ela em alguns encontros, e tomei a liberdade de deixar um depoimento. Não demorou, a resposta: “Prezado Henrique Autran, o projeto apresentado pela escritora (...) não é mais do meu alcance, pois foi autorizado para captação de recursos em 2009. Espero que isso não ocorra mais e que, daqui para a frente, autores consagrados passem por critérios mais rigorosos. Informo, ainda, que fiquei contrariada ao tomar conhecimento do fato, pois iniciativas como essa maculam os grandes escritores”. Não sei no que deu o projeto, do qual não mais se falou, e espero nunca ouvir meus netos e eventuais bisnetos lendo a que já foi chamada “Última flor do Lácio, inculta e bela” de forma abreviada, deturpada e enxugada por conta de modismo ou simples ignorância.

 

sexta-feira, 14 de abril de 2023

ANJOS

 

Anunciação: Fra Angelico

Os anjos e os arcanjos, os querubins e serafins, não o cessam de louvar dizendo em uma só voz: santo, santo, santo, é o Senhor Deus do universo. Céus e terras estão cheios de vossa glória. Hosana nas alturas”. Oração dos tempos de criança, despertou-me curiosidade sobre os anjos (nos EUA, 70% dos habitantes creem neles!). A palavra vem de ággelos, em grego, de onde angelus, em latim. São personagens celestiais de tão grande vulto que no séc. 4 teólogos criaram a hierarquia angelical e sua organização. São nove entidades, entre elas os citados anjos, arcanjos, querubins e serafins. Um anjo com uma espada levou a mensagem de expulsão de Adão e Eva do Paraíso, e um outro abençoado teve a missão de levar à Virgem Maria a notícia de que ela daria vida a Jesus, gestado em seu ventre. Entre os anjos, sete se destacam: Gabriel, Miguel, Rafael, Raguel, Remiel, Sariel e Uriel (SILVA, Deonísio. “De onde vêm as palavras”. RJ: Lexicon, 2014, 17ª ed.). Angelus” é também a tradicional oração do Papa no Vaticano: Dominum nuntiavit Mariae (“O anjo do Senhor anunciou a Maria”).



E
m nossa música e poesia, eles também existem, e mais do que nunca são irreverentes: “Quando nasci veio um anjo safado / o chato do querubim / e decretou que eu estava predestinado / a ser errado assim” (“Até o fim”, Chico). Outro desses anjos arteiros é o de Drummond, em “Poema de sete faces”: “Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / Disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Bem aqui na Terra, os “Guardian Angels” (Anjos da Guarda), organização fundada em 1975  em NY, tinham, entre suas missões, passear em grupos pelo metrô de NY evitando assaltos, ajudando idosos, crianças perdidas. Vestiam jaquetas que lembravam outros anjos, os “Hell’s Angels” (Anjos do Inferno), briguentos em suas possantes motos Harley Davidson, que faziam arruaça por onde passavam. Fundado em 1948, na California, EUA, os HA tinham como primeira exigência que o “Angel” possuísse uma Harley 1.200 cc, uma máquina com força de touro e rugido de leão. Sua “capital”, Los Angeles, 2ª cidade dos EUA com 4 milhões de habitantes, foi tomada dos indígenas para a Espanha por Juan Rodríguez Cabrillo em 1781, de onde o nome em espanhol da metrópole (em português, “Os Anjos”).


N
o dia 4 de abril, logo abaixo do título e antes mesmo do headline da capa – “A barbárie vai à escola” -, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma lista apavorante: “5/4/23 Blumenau, Sta. Catarina, 4 mortos, 5 feridos; 23/7/23 São Paulo, 1 morto, 4 feridos; 25/11/22 Aracruz, ES, 4 mortos, 13 feridos; 26/9/22 Barreiras, BA, 1 morto; 4/5/21 Saudades, SC, 5 mortos; 13/3/19 Suzano, SP, 8 mortos, 11 feridos; 6/11/17 Alexânia, GO, 1 morto; 20/10/17 Goiânia, GO, 2 mortos, 4 feridos; 26/9/11 São Caetano do Sul, SP, 1 morto; 7/4/11 Rio de Janeiro, RJ, 12 mortos, 22 feridos; 29/1/03 Taiuva, SP, 1 morto, 3 feridos; 28/10/02 Salvador, BA, 1 morto”. Não seria preciso explicar, mas este é um gráfico por extenso dos ataques, da violência, dos assassinatos e das chacinas que vêm acontecendo em escolas de crianças, aparentemente sem explicação alguma.


N
o dia 8/4, em Blumenau, na creche Cantinho Bom Pastor, 9 crianças foram atingidas por facadas e machadinha, fazendo de quatro delas vítimas fatais. Uma, com escoriações e a mandíbula trincada, conseguiu escapar. Recebeu seu pai, em desespero: “Pai, estou vivo”. Este o breve desdobramento do final do último lamentável episódio. Nos funerais das crianças faziam flutuar estrelinhas, como fosse cada um dos anjos perdidos. Sim, a palavra mais ouvida foi “anjo” – pela inocência das crianças, pela pureza de suas tenras idades, pelo que representam em um país tomado pela violência, belicismo e mortes, ataques em geral sem qualquer coisa que lhes dê fundamento, além de simplesmente matar. São maníacos contagiados pela onda que preocupa vários outros países: entre meus contatos nos EUA, sei que eles não apenas compartilham das nossas dores, há uma espécie de mea culpa sem razão alguma, por uma prática importada de lá. Sim, são anjos, salvos do mal que os atacou. Ou levados por outros anjos onde se encontrarão com tantos anjos-crianças para sempre. Resta aos que ficaram, seus pais, às comunidades, o medo, o medo, o medo.


O
Brasil, com seus 5.570 municípios, não poderia ficar à parte desse pânico. Tatuí, por exemplo, com seus 124 mil habitantes (2021), chegou a estampar na capa do jornal O Progresso (9/4/23), encabeçando as notícias: “Ameaças alteram rotina das escolas locais”. Noticiou como reação local um encontro da Polícia Civil, PM, GCM, secretários de Segurança e Educação, além de docentes e gestores. Ainda na capa, um cartaz encontrado na escola “José Celso de Melo”: “Todo mundo dessa escola vai morrer”. Segundo Telma Vinha, pesquisadora de violência escolar, câmeras, detectores de metal e segurança por si não são soluções, ajudam mas não vão ao fulcro da questão: “Traz segurança para a sociedade, mas não (...) diminui o discurso de ódio” (Estadão, 9/4/23). Há fanatismo, há psicopatia, há os que querem seu tempo de fama nas mídias sociais e na imprensa, a que custo for.


N
a Nova Zelândia, onde 51 pessoas foram mortas, foi criada em 2019 a Christchurch Call to Action, que hoje reúne 120 governos, ONGs e empresas tecnológicas. Um supremacista branco matara meia centena em ação transmitida online por todo o mundo! Nesta luta, é preciso entendermos antes as mentes do que os atos. A herança política do que as armas. E proteger os nossos anjos.