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sábado, 26 de agosto de 2017

O LATROCÍNIO E O POLITICAMENTE CORRETO


Direito não é o meu ramo, mas procuro entender um pouco para aqui viver (“o Brasil não é para principiantes”, dizia Tom Jobim). Há o ‘politicamente correto’, no dia a dia, mas não sei o porquê desse ‘adocicar’ tudo. Vejamos o latrocínio. Código Penal, Art. 157, § 3º: “Se da violência resulta morte, a reclusão é de 20 a 30 anos, sem direito da multa”. Ora, se não tenho o douto saber, uso a lógica para questionar a redação: ‘morte morrida ou morte matada’, como se diz no popular? Se a morte é ‘matada’ tem de haver dolo, intenção de matar a vítima, e aí se configura o latrocínio. Se ela é um idoso cardíaco que enfarta no ato do roubo, o assaltante está quase lindo, leve e... logo solto, pois houve ‘apenas’ um assalto.

O Código de 1940
Dizem que latrocínio é ‘roubo seguido de morte’: o criminoso roubou a vítima, e depois a matou. Daí a dialética impõe a inversão da ordem - e se houve morte seguida de roubo? Não é latrocínio? Aparentemente não. Mas é. O que parece uma simples omissão vem explicado mais abaixo no mesmo artigo. A depender do citado § 3º, não, mas, ora, pois é sim. Uma primeira variável: se o bandido armado, com o produto do roubo na mão, desiste ou não logra matar, isso configura o quê? Claro, um roubo simples, na falta do ‘crime de morte’. A segunda variável: o assassino, no afã de despistar sua autoria, leva objetos de valor da vítima assassinada, cena de um roubo aparente para esconder uma vendeta - vingança por desavença ou motivo passional.

Resumindo, o latrocínio não integra as estatísticas de homicídios porque houve roubo! Simples assim. Ora, diz o bom português que tirar a vida de alguém é homicídio e ponto. A estatística serve para uma conclusão ‘politicamente correta’, e está aí a língua portuguesa que não me deixa mentir. Por que não é robbery with homicide (‘roubo com homicídio’), como nos EUA? Aqui seria o Art. 157 combinado com o caput do 121 e suas agravantes, ponto.

Em Goiás (ver imagem ao lado), o aumento do número de latrocínios foi da ordem de 18,5%, enquanto o de homicídios dolosos 3,6%. Em bom português, s.m.j. (salvo melhor juízo), o aumento no número de homicídios foi de 22,1%. Já no Estadão de sábado, dia 18/08/17, há estatísticas referentes a São Paulo em matéria do caderno ‘Metrópole’ – “Latrocínio atinge maior patamar em 14 anos”: São Paulo teve 237 casos de ‘roubo seguido de morte’ até julho deste ano. Logo ao lado, lê-se: “Já homicídio tem em julho menor taxa desde 2001”, ou seja, a balança desequilibra bruscamente para o roubo nos homicídios. Uma autoridade nacional chegou a afirmar que “o latrocínio é o roubo mal sucedido”!

Heitor dos Prazeres
‘Politicamente incorretos’, um negro, Heitor dos Prazeres, compôs e uma negra, Zaíra de Oliveira, gravou Meu Pretinho (de 1931, disponível no blog do amigo Luís Antonio de Almeida, em www.mis.rj.gov.br/blog/meupretinho/). Que tal Preta, Pretinha, dos Novos Baianos, o mesmo jeito dengoso de chamar um amor? Hoje seriam devidamente ‘limados’ pela patrulha? E por que nos EUA, com histórico de escravidão como aqui, diz-se Black Music, Black Power? O negro lá só tem horror de ser chamado nigger, que o associa à Nigéria dos escravos do passado - “A mulher é o nigger do mundo”, compôs Lennon. Por isso, eles preferem ser blacks (cena em NY: “Como prefere o seu café, senhor? Black, pedi, para evitar aquele aguado “chafé”. A garçonete abriu um lindo sorriso e esfregou o indicador no outro braço: “assim como eu?” Eu disse: “yeeeessss”. Feliz, trouxe-me o café, que simpatia!). 

Upa, Neguinho, de Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo, era uma espécie de intermezzo da peça Arena Conta Zumbi (1965), da dupla. Insistente, à diva Elis Regina foi permitido mudar até partes da música, criar breques e colocar vírgula no título, fazendo da composição música à parte, aliás um de seus maiores sucessos. Nego algum - como se diz no popular, independentemente de raça - reclamou.  Tributo a Martin Luther King, de Ronaldo Bôscoli e Simonal, foi grande sucesso na voz do segundo, homenagem ao líder negro americano que exortava seu povo à batalha por direitos iguais: “Sim, sou um negro de cor / meu irmão de minha cor / (...) Luta mais! Que a luta está no fim”. Quem não conhece o Negrinho do Pastoreio, uma espécie de lenda de origem afro do final do século 19? Está proscrita?
Luís Antônio Marcondes: nome artístico "Neguihno da Beija-Flor"


Ataulfo Alves lançou em 1956 um samba corrido, Mulata Assanhada: “Ó mulata assanhada / que passa com graça fazendo pirraça / (...) tirando o sossego da gente”. Na esteira, veio “É luxo só”, de Ari Barroso e Luís Peixoto, outra ode à mulata: “Olha, esta mulata quando dança / é luxo só”. Foi a glória. A palavra também existe em outras línguas, como inglês (mulatto) e francês (mûlatre).
Recentemente, o escritor tatuiano Ivan Camargo lançou o livro Golpe Baixo (SP: Ed. Kazuá, 2017), cuja contracapa resume direto o assunto: “soma uma série de ‘histórias quase apolíticas e nada corretas’, todas buscando, com bom-humor, questionar e satirizar o ‘coitadismo’”. No capítulo que dá título ao livro, uma pérola como “pena que vão cortar só metade de uma perna”, disse o idoso sobre um jovem companheiro de quarto que dormia,“tava torcendo para que arrancassem o pingolim dele até a raiz”. “Odilo! – interveio a esposa, acentuando não ser nada produtivo à educação do menino aquele linguajar de calão chulo”. Odilo garantiu que os atuais pré-adolescentes sabem mais palavrões do que ele próprio aprendera durante toda a vida.


Semelhante é a questão do linguajar do funk brasileiro, hoje alvo de uma proposta no Senado que tenta proibir o gênero, tendo como um dos muitos motivos o teor pornográfico das letras. Ora, elas refletem o que os jovens ouvem e falam nas periferias, mas ferem os ouvidos dos que se acham mais puros. Outra: acaso trocar deficiente por ‘portador de necessidades especiais’ atenuou perdas físicas? Dizer afrodescendente ajudou a acabar com o racismo? Não, se não for o contrário. Lembrando o “coitadismo” de que fala Camargo em seu Golpe Baixo, eu acho que certamente aumentou a segregação. Da mesma forma que suavizar as estatísticas dos homicídios varrendo a maior parte deles para sob o tapete do latrocínio não salvou uma única vida.

sábado, 19 de agosto de 2017

HERÓIS SEM NENHUM CARÁTER


Calabar
Domingos Fernandes Calabar (1609-1635), nascido na hoje alagoana Porto Calvo, talvez tenha sido o maior traidor, o popular ‘traíra’, da história do Brasil. Era dono de um engenho em Pernambuco, então nome da Capitania, enorme gleba que açambarcava algo como cinco estados do Nordeste brasileiro. Quando os holandeses invadiram o Brasil, Calabar tornou-se o que seria um ‘quinta-coluna’, para usar uma expressão surgida três séculos depois, na guerra civil espanhola: um escarrado traidor da pátria. Como brasileiro, Calabar deveria ter defendido a matriz, mas virou a casaca e aliou-se aos holandeses, colaborando com os invasores da pátria (pessoalmente, não sei se a expulsão daquela gente da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais foi a melhor opção).

Calabar, a peça
Pelas histórias já folclóricas ao redor de seu nome, o personagem foi tema de uma peça musical de Chico Buarque e Ruy Guerra: Calabar, o Elogio da Traição (1973). O texto quase conseguiu escapar da implacável caneta do ministro Armando Falcão. Quase, a peça terminou censurada. Chico e Ruy Guerra, com essas dissimulações, burlaram a censura algumas vezes, fazendo, por alegorias e fantasias, crítica velada aos tempos da ditadura. A peça mostrava um apanhado de boas músicas e letras, como Cala a Boca, Bárbara: “Ele sabe dos caminhos dessa minha terra / no meu corpo se escondeu / minhas matas percorreu / os meus rios, os meus braços / Ele é o meu guerreiro / nos colchões de terra / nas bandeiras, bons lençóis / nas trincheiras, quantos ais, ai...”

Joaquim Silvério
Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819), quase dois séculos após Calabar, foi outro grande traidor da história do país. Por encontrar-se com as finanças combalidas pelos impostos extorsivos da Coroa Portuguesa, Silvério foi convidado e bandeou-se para o lado dos inconfidentes mineiros, na esperança de que o sucesso da empreitada o livrasse da quebradeira em suas finanças mordidas pelas pesadas taxas da Matriz. Porém, seduzido pela possibilidade de Portugal perdoar suas dívidas e dar-lhe um bom carguinho no governo, transformou-se em delator de seus amigos inconfidentes.

6400 réis
Não se sabe o que levou em troca, mas passou quase um ano preso na Ilha das Cobras, para seu desgosto. Depois desse episódio, o máximo que conseguiu foi uma pensão vitalícia de 200 mil réis que o deixou com sustento para amargar seu papel de delator e traidor dos ideais do povo, pecha que ninguém gostaria de levar em vida por trinta anos, e que perdura até hoje, mesmo após sua morte. (Os duzentos mil réis não deviam ser lá muita coisa, já que havia moedas de 4.000 na época).

Joesley Batista (Estadão)
Do latim delatio, onis, denúncia, a delação premiada de hoje é uma espécie de toma lá dá cá amparada por lei trocada entre o réu e a Justiça, em colaboração que pode render ao primeiro penas mais suaves e privilégios. Pode haver redução de um a dois terços de prisão ao delator, fora algumas benesses que escapam aos prisioneiros comuns. Tudo isso está no Código Penal Brasileiro, disciplinado por lei de 1999. Assim, o traidor da bandidagem, bandido que também é, delata tudo, no gozo do guarda-chuva da Justiça: o que aconteceu e até o que possivelmente nunca acontecera. Pior: perante muitos cidadãos comuns, chega até a ser admirado, por entregar notórios políticos de reputação pouco ilibada, ou, como se diz no popular, “de família quase boa”.

Ilustração para o Dr. Faustus de Marlowe (+  1564)
Pior de tudo, parece que o delator passa a sentir alguma espécie de prazer, uma sensação fálica, uma certa libido trazida por vaidade, uma ‘energia vital’, um psicanalista freudiano talvez conclua assim. Delatar mais e mais, até o que não houve, a Justiça que se vire para provar sua ilação, pois a fome e sede do delator com o tempo parece não terem mais limites. Tal qual o personagem do Dr. Faustus, de Thomas Mann, que entregou sua alma ao diabo em troca de poderes desmedidos como músico: “Destruído pelo extraordinário, seu gosto arruinado para qualquer outra coisa, ele vai no mínimo deteriorar-se no desespero de executar o impossível”. É também uma versão pós-moderna do “seja marginal, seja herói” (1968), do revolucionário artista Hélio Oiticica. O delator deve sentir-se como o próprio Dimas, santo católico, o “bom ladrão”, crucificado ao lado do Senhor, que Dele ouviu (Lucas, 23:38): “em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”.

Grande Otelo como Macunaíma
‘Herói sem nenhum caráter’ é descrição do personagem Macunaíma, um romance (1928) de Mário de Andrade, navegando ainda nas águas da Semana de Arte Moderna de 1922. O nosso herói é indígena, e com Mário faz chacota do povo brasileiro, repetindo aqui e ali a frase “ai, que preguiça”, entre cenas surreais e anedóticas. Macunaíma fica possesso quando sua pedra da sorte, um muiraquitã, é roubada por um comerciante peruano, o gigante Piamã. O herói arrasta seus irmãos em busca do resgate do talismã, mesmo sabendo que o gigante inimigo era antropófago.

Nascimento de Macunaíma, segundo José Celso Martinez
Voltado à cultura indígena, e na contramão do romantismo literário pré-1922, Macunaíma é o próprio anti-herói, um escracho. Tornou-se um ícone de tanta importância para a cultura brasileira que o cineasta Joaquim Pedro de Andrade fez de Macunaíma um dos melhores filmes do nosso cinema (1969), com Grande Otelo no papel do ‘herói’. Macunaíma nasce – ou melhor, é parido – tendo sua mãe de cócoras, costume indígena que facilita o parto. Na verdade, Grande Otelo cai do útero de sua mamãe de cabeça no chão, em uma cena das mais hilárias do nosso cinema.


Todos os traidores são heróis “sem nenhum caráter”, mas Macunaíma foi apenas um simpático preguiçoso, nada mais.

sábado, 12 de agosto de 2017

DEUS É O POETA. A MÚSICA É DE SATANÁS

Casarão, hoje demolido, onde morou Machado de Assis, no Cosme Velho
“..., jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno”. Trechos do capítulo IX de Dom Casmurro, do Machado de Assis, o chamado “bruxo” do Cosme Velho, tradicional bairro carioca.

(Michael Thompsett)
Quando alguns incrédulos me perguntam por que as desgraças acontecem, “então Deus não existe! Não poderia ter evitado?”, dá vontade de mandar ler Machado de Assis. Deus não é personagem ou mesmo ‘comprimário’ (papel secundário ou figurante), como bem mostrou o sábio escritor carioca. Satanás está presente, sem chifrinhos e rabinho, claro, em nome do mal, com sua regência malévola. Machado fez esse achado literário que tem um significado muito mais profundo do que aparenta ao leitor desavisado. A Deus não restou alternativa, chamou Satanás e mandou-o reger bem longe Dele. Caiu em palco que calhou por azar de ser aqui, na Terra.

Salto várias décadas, de Machado para os Rolling Stones – isso mesmo, o grupo de rock -, e seu sucesso Devoção ao Demônio (Sympathy for the devil), música que inspirou um filme de Godard no final dos anos 1960. Sem conhecer Machado de Assis - infelizmente, pois se tivessem lido teriam feito ainda melhor -, a banda de rock tocou a versão de Keith Richards e Mick Jagger: “Por favor permita-me conhecê-lo, sou um homem de riqueza e gosto”. “Roubei muitas almas do homem para esbanjar”. “E eu estava perto quando Jesus Cristo teve seu momento de dúvida e dor” (N. do A.: ‘Deus, Deus, por que me abandonaste?’). “Exigi que Pilatos lavasse suas mãos e selasse o destino dele” (N. do A.: de Cristo). “Prazer em conhecê-lo, espero que adivinhe meu nome / mas o que te perturba / é a natureza do meu jogo”.

Anastasia Nikolaeva
E assim os Stones, creia, eles, mostram o perfil do demônio na Terra, o próprio falando de Satanás na primeira pessoa: Matei o Czar e seus ministros, enquanto Anastasia gritava em vão. Também passei pelos tanques de guerra nazistas em blitzkrieg. E gritei “quem matou os Kennedy, quando afinal fomos você e eu”. O demo disse que se cada policial é um criminoso e todos os pecadores santos, como cabeças são traseiros, apenas “chame-me Lúcifer porque eu preciso que alguém me contenha”.

Auschwitz
A poesia dos longevos ídolos do rock faz ironicamente um duo com a tese de Machado - que se compreendida muito pode explicar. As batalhas, as grandes guerras mundiais, os campos de concentração, as perseguições aos judeus – e agora aos islamitas -, aos armênios, a insanidade de Hitler, a prepotência de seu admirado Mussolini, a era Stalin, as ditaduras, torturas, perseguições e Inquisição no mundo inteiro não são atos, de forma alguma, da lavra de Deus, e sim do abusado maestro, que rege a partitura. E assim como quem está sempre presente nas coisas do mal descritas pelos Stones, eis o personagem maléfico pairando sobre os EUA, a Venezuela, os enormes propinodutos subterrâneos da corrupção brasileira que faz povo sucumbir ao desemprego e à fome. Síria, Coreia do Norte, os delírios de Putin, os grupos terroristas que se intitulam islâmicos sem seguirem o Corão, a miséria no mundo. Deus fez a partitura, mas o diabo é que Satanás é o maestro! Salve Machado de Assis!

Todos agradecem quando “Deus salva” uma vida, mas ninguém culpa o Pai quando a pessoa morre. Resignam-se: Deus assim o quis. Se Deus salva por meio de uma cirurgia, é pelas mãos de algum “comprimário” comprometido com o bem. Mas esse médico não tem o controle absoluto da situação exatamente porque lhe falta o domínio sobre a morte - no caso, a ciência ainda não avançou a esse ponto, e nunca vai chegar lá. Ele apenas possui o estudo, o bom coração e a boa vontade com que trata seus pacientes. Tampouco a morte do doente foi culpa do diabo, que apenas rege, mas não toca.

Os músicos de nossa orquestra também erram, pois são filhos do Pai, o grande poeta que desistiu da partitura. A questão do bem e do mal existe desde sempre, e na filosofia é assunto inesgotável, assim como os mistérios da vida e da morte. Está muito acima de nós, reles músicos, e até os solistas, coadjuvantes e figurantes. Somos submetidos aos implacáveis desígnios rabiscados no ar pelo maestro e sua regência, e nos resignamos quando o maestro compromete o bom andamento da obra, cabendo a nós repudiar os erros de condução ou quando a partitura da orquestra tem alguma grande aberração que transforma a bela ópera da vida em um verdadeiro inferno.  


Como bem disse Machado de Assis, Deus é o poeta, a partitura foi levada para o abismo de onde rege Satanás, ópera cuja direção temos de acatar por imposição. Apenas podemos tentar tomar as rédeas quando há o necessário suporte da Administração Superior, dando-nos ferramentas para a vitória. Porém, após cada embate, ao final Satanás sempre volta, enquanto nós, pobres músicos, apenas nascemos, morremos, somos substituídos por outros que prosseguem obedecendo à partitura e à pontaria ameaçadora da cruel batuta do capeta. Não tive o menor “prazer em conhecê-lo”, devolvo retribuindo Lúcifer na apresentação do dos Rolling Stones. Mas passei-lhe a perna porque adivinhei seu nome. E sei da natureza do seu jogo!

sábado, 5 de agosto de 2017

CRIMINALIZANDO O FUNK – PARTE II (Final)


George Clinton


Prosseguindo com a discussão sobre a criminalização do funk abordada no penúltimo blog, repito que sou isento e imparcial para falar do gênero, pois confesso que nunca fui fã da versão brasileira (a Parte I pode ser lida clicando no link à direita, no título da ‘postagem em destaque’). O que não quer dizer que não lhe devo respeito, como a toda e qualquer manifestação artística. É um ritmo que fala com o corpo, como disse George Clinton, do Funkadelic: free your mind and your ass will follow - literalmente, “libere sua mente e seu traseiro a acompanhará”. Para tanto, as letras são curtas e diretas, de contestação à ordem social, à repressão, e falam de drogas, sexo e polícia, enquanto o ritmo embala o corpo: sacudido, dançado, chacoalhado, signo de uma tribo que tem seus costumes particulares e seu próprio jargão para falar, contando a dura realidade das periferias. Esse ‘funk brasileiro’ é uma coisa à parte, tem quase nada a ver com o ritmo americano. Caetano Veloso, em entrevista recente à BBC, disse que “o funk no Brasil hoje é uma coisa totalmente brasileira. E as letras, que às vezes são muito obscenas, ou ligadas ao narcotráfico e à bandidagem, ficaram cada vez mais criativas. Os efeitos sonoros também”.
Earth, Wind & Fire
Nos anos 1970 pude assistir ao vivo, no Radio City de NY, ao fantástico Sly and the Family Stone, grupo com muita dança, metais, saxes e vocais admiráveis, na esteira do sucesso no Festival de Woodstock, de 1969. E ainda curto na Internet a beleza dos espetáculos do Earth, Wind & Fire, um grupo especial, as vozes em falsete cantando letras de amor, show de dança perfeita, muita técnica, de prender a respiração.
Dick Bogarde, brilhante em Morte em Veneza
Querer simplesmente tornar crime um gênero musical, jogando a Constituição no lixo e ferindo de morte a livre manifestação artística é um arroubo de pequeno segmento radical, ora em franca ascensão no Brasil, reflexo de uma meia-volta ao passado no mundo inteiro, em nome de uma pureza e castidade inexistentes. (E não é um fenômeno nosso, é mundial: a Rússia de Putin acaba de proibir uma encenação de Morte em Veneza no famoso Bolshoi – como o filme a que assisti, com Dick Bogarde vivendo uma platônica, distante paixão homossexual). Tornar crime um gênero musical não é insensatez, é insano mesmo, historicamente desconexo. O blues, em seu início no Sul dos EUA e principalmente em New Orleans, brotava no submundo das drogas, lenocínio e outras práticas não aceitas pela sociedade, mas era o meio em que os artistas viviam. A música acontece em todos os ambientes, e não é a responsável por eles - quando muito lhes é consequência: violência, falta de acesso a um bom ensino, pobreza, péssimas condições de moradia e saúde pública quase inexistentes. (A Folha de 17 de julho traz, na capa do caderno Cotidiano, a matéria: “Baleados crescem 61% em hospital do Rio”. Isso, no primeiro semestre - e nada a ver com o Funk).
Umbigada
Nunca é demais lembrar que o samba também foi hostilizado em suas origens (“coisa de negro”), que remontam às danças angolanas e congolesas e surgiu nos submundos considerados menos castos até ser assimilado pela sociedade, assim como outros gêneros oriundos da África, como a Umbigada. E foi via choro, mistura de schottishes e mazurcas com samba, que se abriu caminho para mais de um século de música popular brasileira. Podemos dizer que tudo o que temos de melhor devemos ao samba.
Baile da Ilha Fiscal
Após outro baile, o da Ilha Fiscal, em 6 novembro de 1889, a seis dias da queda do Império e da Proclamação da República, a limpeza encontrou, entre outros, “8 raminhos de corpete,  3 coletes de senhoras e 17 cintas-ligas”. Fotografias foram convenientemente inutilizadas. Fontes não oficiais falavam de bandejas e canudinhos de prata, para o consumo do mesmo cloridato usado nos atuais bailes Funk. Festa do Imperador, da nobreza e das classes mais abastadas!
Periferia paulistana
Pois se os arautos da atual onda de falsa pureza alegam que nos bailes do gênero funk cometem-se crimes, como uso e tráfico de drogas, prostituição, sexo exposto e envolvimento de menores de idade, acaso criminalizar o gênero vai extinguir os crimes por eles alegados? Já não estão todos tipificados no Código Penal? O crime, onde quer que ocorra, deve ser visto sob pontos de vista de diversas ordens. Se menores vão a esses bailes, o criminoso é o funk? Por que adolescentes frequentam bailes de madrugada? E a Educação, dever precípuo do Estado, por onde anda? O que acontece nesses bailes nada mais é do que um espelho da vida nas casas, barracos e muquifos onde as mesmas práticas acontecem, não é exclusividade do embalo, é o cotidiano da vida na periferia.
Boate em SP
O projeto que corre no Senado é o suprassumo da violência censória e da repressão e retrato, em outra ponta, da cegueira social, como no “Ensaio” de Saramago. Por que não veem crimes em boates finíssimas da zona sul paulistana onde homens da classe branca mais rica e poderosa escolhem moças “de fino trato”, à espera de freguesia, e nos quartos é frequente a cocaína? A sociedade faz vista grossa porque são “finos”, e em sociedade fina tudo se pode. As “soluções” radicais podem agradar a certo tipo de político e adeptos de alguma seita. Será que uma simples lei acabaria com as chagas das periferias?

Lembro-me de alguém já ter cogitado proibir porta-malas nos automóveis para evitar sequestros, uma vez que é ali que os criminosos prendem suas vítimas. A proposta de criminalizar um gênero musical para acabar com crimes já tipificados é surreal, perniciosa e absolutamente hipócrita. Por essa lógica, que proíbam antes a venda de isqueiros, para acabar com o uso do crack.


(Escrito a partir do meu artigo para a Veja de 13 de julho)