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domingo, 27 de janeiro de 2019

SUPERSTIÇÕES, CRENDICES E DITOS POPULARES III (FIM)


No primeiro artigo desta série falamos sobre passar sob uma escada, do gato preto, do porco e da porca, do melhor amigo do homem e várias outras superstições, crendices e ditos, entremeados com frases e ideias cuja origem por vezes mal se sabe. No segundo texto, predominaram as frases, a exemplo de ‘o que é do homem o bicho não come’, ‘procurar chifre em cabeça de cavalo’, ditos já incorporados à nossa língua de forma tão natural que se ensina e se aprende escutando e passando adiante ‘de ouvido’ (vale um trocadilho: por transmissão ‘aural’). E há coisas que por vezes nasceram das Sagradas Escrituras, mas isso quem sabe?
Neste terceiro artigo, comecemos com o ‘bode expiatório’, que é quem ‘paga o pato’. Mas de onde veio isso? Levíticos, 16. Encurtando, dois bodes foram levados ao templo, em Jerusalém. Um deles foi sacrificado e o outro deixado vivo, a fim de expiar os pecados do povo judeu. E quanto a ‘dar um bode’? Ah, é problema feio. Jards Macalé, ícone da contracultura dos anos 70: “se amarrar algum bode eu mato / se amarrar algum bode eu morro / mas eu volto pra curtir”. ‘Amarrar o bode’ é ficar bravo, enfezado, porque se alguém amarra o bicho na cerca ou em um tronco ele se torna insuportável, pois berra, geme, grita, vira o diabo, é melhor soltá-lo ou ir para bem longe.
Imagem: Freemasonry Watch
O bode na antiguidade era um animal sagrado. Também se faz presente na maçonaria, o que induz alguns leigos às vezes a associarem erroneamente os ritos maçons com coisas do diabo. Mas falar do bicho pode ser apenas uma forma de um ‘irmão’ revelar-se maçom para outro ‘irmão’. Nada com o baixo-além, mesmo porque bode não fala, não conta nada, preceito fundamental para manutenção das confidências das sociedades maçons, nas quais segredo é regra de ouro.
A cabra, por sua vez – mulher do bode, diz-se - é vista como coisa ruim, com uma tinta de machismo: a saliva do bicho seria venenosa, de ‘secar pimenteira’, o bafo de dar enjoo, e, como seu marido, Sr. Bode, também teria coisa com o Demo, pois dificultaria os partos, entre outras maldades. Mas a necessidade  é vil, leite de cabra é forte que só ele, e por mais que digam que a cabra é do capeta, é boa ‘doadora’ do melhor leite.
Certa vez, perguntei ao célebre maestro cearense Eleazar de Carvalho onde ele conseguia tanta disposição para fazer um ensaio pela manhã em Porto Alegre, um concerto de Natal conosco à tarde em SP (OSESP) e um outro à noite, com a Sinfônica da Paraíba. É que eu fui criado com leite de cabra, bradou, como bom ‘Severino’. E queijo de cabra nem se fala, é bom ‘pra mais de metro’, muito apreciado na Europa, a exemplo dos tipos finos, como camembert, bûche ou feta. ‘Cabra da peste’ ou ‘da moléstia’ é o sujeito corajoso, viril, que luta como um animal e suporta as agruras do sertão nordestino. ‘Fulano é cabra macho’!
Não desanimeis, animais, brincava meu pai. Veja o boi, calmo e gentil. Cuidado: na Índia, a vaca é um animal sagrado. Por aqui, não dá bom churrasco, daí que ‘boi na terra dos outros vira vaca’, animal que não tem qualidade para corte e é mais utilizado para ordenha e procriação, sua carne não é tão saborosa e macia quanto a do boi. Em nossa cultura, o universo do boi veio dos árabes com os lusitanos, depois de mais de 700 anos de ocupação da Península, enriquecer nossas danças e folguedos, como o bumba-meu-boi maranhense, o boi-barroso dos Pampas, o boi-bumbá da região Norte, o boi-calemba recifense e o boi de jacá paulista, eventos cheios de danças, lendas e  fantasias.
O boi também está em uma lenda quase mítica da história do Brasil dos tempos do príncipe Maurício de Nassau (séc. 17), na época das Invasões Holandesas. Nassau queria fazer uma ponte sobre o rio Capibaribe, no Recife, mas a Holanda disse que a verba, ‘só no dia que boi voar’. Ironizando a ‘matriz’, Nassau pagou a madeira e a obra do seu bolso, e no dia da inauguração fez um boi empalhado atravessar o rio pendurado em uma roldana sobre uma corda, fazendo de bondinho. Foi baseado nessa quase-lenda que Chico Buarque e o cineasta Ruy Guerra, em parceria, compuseram para a peça Calabar: “O boi ainda dá bode / qual é a do boi que revoa / boi realmente não pode / voar à toa”.  
Superstições, crendices, frases e expressões populares são parte de nossa cultura e como tal devem ser preservadas. Não se deve tomá-las como lei, tampouco desdenhá-las. Não são interpretações malucas de coisas reais, algumas que retroagem na história, contra a ciência, contra tudo e contra todos. Parece que nos tempos de retrocesso global de hoje abriu-se espaço para o obscurantismo de séculos atrás: crer que a Terra é plana, que é o centro do Universo ou do sistema solar e outras coisas há muito tempo enterradas.
Autran Dourado (O Globo)
Meu pai dizia para nós, crianças: “Meia-noite / o sol nascia / um homem nu com a mão no bolso / sentado num banco de pedra feito de pau / calado dizia: / O mundo é uma bola quadrada / que gira parada / antes morrer do que perder a vida”, motivo para risadas e pedidos para que ele repetisse, e o fazia com muito humor. É surrealista mas tão atual, essa ‘bola quadrada que gira parada’... Autran Dourado teria completado 93 anos no dia 18 de janeiro e carregava tudo aquilo, do seu interior mineiro, bom capiau que era, sem que fantasias se imiscuíssem na sua percepção da realidade e dos fatos. Conceitos há muito abandonados andam virando modismos, há quem os creia verdadeiros. Recorro a Einstein: a ciência, sem religião, é manca. E a religião, sem ciência, é cega. (Fim)
"A experiência cósmica religiosa é a mais poderosa e nobre força impulsionadora da pesquisa científica"

domingo, 20 de janeiro de 2019

SUPERSTIÇÕES, CRENDICES E DITOS POPULARES - II


No artigo anterior falamos de passar debaixo da escada, gatos pretos, poderes do sal, dos malefícios de se comer manga com leite e manga com ovo – ‘pode dar febre tifoide’, dizem. Não desdenhe: faz parte da nossa cultura, das superstições universais ou mais localizadas, como as celtas, as portuguesas levadas pelos mouros, as de origem africana e, claro, as genuinamente brasileiras - ‘que ninguém sabe o que seja’, diria Cecília Meireles. Pois são as indígenas: brasileiríssimas (afinal, ‘o que é do homem o bicho não come’). E tentar entende-las é ‘procurar chifre em cabeça de cavalo’.  
Ferradura indígena (diz o anúncio) usada americana
Temos os amuletos, e para os que conhecem o interior logo vem à mente a ferradura, que barra o azar e o mau-olhado, diz o populacho. Mas não a compre em uma loja, ela tem de ser achada, caída do casco de um animal, caso contrário será apenas uma peça de ferro que vira ‘macumba pra turista’ (como diria Mário de Andrade), coisa para fazer um troco nas vendinhas. A tradição da ferradura diz que ela deve ser pendurada em um só prego no meio, do lado de dentro da casa e acima da altura do dono. (Os céticos dizem ‘se ferradura desse certo burro não puxava carroça’).
Figa de ouro 15 K da era vitoriana
Além da ferradura, há a figa contra o mau-olhado, esculpida tendo o polegar entre os dedos indicador e médio da mão direita fechada. Carregadas pelo dono, de madeira, osso, pedra ou ouro são da boa sorte, e guardadas atraem dinheiro. Costuma-se pendura-las em um cordão no pescoço, às vezes no pulso, para criar corpo-fechado ao seu dono – só não recomendo testá-la. Na falta de uma figa, pode-se mostra-la com a própria mão - o que, obviamente, só deve funcionar se a pessoa visada também acreditar nisso. Caso contrário, será como ‘tirar leite de vaca morta’.
Narciso, por François Lemoine (séc. 19)
O espelho é outro amuleto universal. O historiador Câmara Cascudo (1898-1986), em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, lembra a astrologia, a ornamentação mágica e o poder que tem aquele quadro mágico de vidro contra ‘forças adversas’, pois seu lado brilhante é impenetrável, o olhar não atravessa – aliás, deve ser por isso que ‘Narciso acha feio o que não é espelho’, pois não vê o mundo do outro lado. Mas há precauções: o estudioso Moacyr Costa Ferreira lembra que a tradição manda cobri-lo na primeira semana de luto. À frente do espelho deve-se guardar silêncio, e se dá de ele quebrar assim sem mais indica a morte próxima do dono da casa. Às mulheres, pede que nunca amamentem na frente de um espelho, pois a criança começará a falar tarde!
Tamanduá e seu abraço
De curioso, a gente vai se lembrando de tantas e descobrindo sua origem! Abraço de tamanduá é uma delas. Tal ‘mamífero desdentado’ (do tupi ‘tamandu’a’), que se encontra em quase toda a América Latina, possui garras fortes nas patas dianteiras, de grande serventia para abrir formigueiros, onde fica seu principal alimento. Mas consta que, ao andar com as patas anteriores levantadas, como um bípede, ele está esperando sua presa. Ao vê-la, um abraço! Com as garras, joga o bicho no chão, mata-o e espera vir o seu verdadeiro repasto, as formigas que vão devorar a carniça. O abraço do tamanduá é uma espécie de ‘beijo do Judas’, uma saudação de traidor, um voo de urubu. Prefiro o ‘abraço de urso’, que aperta, deixa o amigo sem ar mas não mata.
Um belo pé de jurema
A (o) jurema, do tupi yu, (espinho), + rema (em que vasa), é uma árvore da família das leguminosas cuja casca possui poderes alucinógenos. Era usada pelos pajés para fazer uma infusão branca a que atribuíam poderes afrodisíacos – mas ingerida em grande quantidade pode matar. “A ema gemeu / no canto do jurema / será que é o nosso amor, ó morena / que vai se acabar” (Jackson do Pandeiro). Seria por causa do sonho desfeito, do erotismo onírico que a casca enfeitiçou, que a árvore envenenaria o amor moreno?
O Brasil é rico em alho. Ele afasta bruxos e bruxarias (quem viu O Caçador de Vampiros, filme de Polanski com a divina Sharon Tate, depois assassinada por uma seita macabra?) É um bulbo da família das aliáceas migrado de Portugal, afasta a mandinga e o mau-olhado. Planta-se por cá pelos seus poderes medicinais, além de tempero e alimento, sem falar na lenda. Não só os vampiros do filme, o alho afasta também a mula sem cabeça, o caipora, o lobisomem. Ótimo para dar gosto especial aos bons pratos, tem suas virtudes contra inflamações e gripes. Cuidado: o cheiro forte ao se morder um dente de alho afasta pretensão amorosa – salvo se a parte desejada também der sua dentada. Paulo Maluf disse que à noite colocava dois dentes de alho em um copo d’água e o bebia pela manhã. Se, além de remédio, alimento ou proteção contra o mau agouro, no caso do político dá impressão de ter funcionado bem por muito tempo. Pelo sim, pelo não, ‘mais vale um burro vivo do que um doutor morto’.
(Talvane Sobreira)
Cascudo, em sua Antologia do Folclore Brasileiro, fala das tradições vindas de Portugal. Conservamos várias delas, como as que falam sobre dentes de crianças. Os dentinhos de leite que caem, jogados no telhado enquanto se diz ‘Mourão, Mourão, leva este podre e devolve o meu são’, têm o poder de fazer nascerem dentes fortes. Já no Norte-Nordeste, quem primeiro ver um dentinho despontando na gengiva de um bebê deve dá-lo um agrado branco e resistente, para a dentição do pequeno crescer forte e alva. Entre os índios, o colar de dentes diz muito: ‘queres conhecer um homem, olhe com atenção para seu colar’, porque o guerreiro usa o adorno como galardão e insígnia, tal qual os militares. E quanto mais bonitos, mais sorte trazem. (Cont.)


sábado, 12 de janeiro de 2019

SUPERSTIÇÕES, CRENDICES E DITOS POPULARES - I


Talvez você já tenha hesitado ao passar sob uma escada no caminho. Se foi adiante, talvez de maneira desafiadora, provou que não teme. Talvez possa ter desviado, relembrando o pero que las hay, las hay dos mexicanos, sobre as bruxas (‘eu não creio, mas que elas existem, existem’). Sei de dois casos de morte de pintores de paredes que caíram da escada, um deles conhecido meu, e, por falta de capacete e cinto, e culpa do dono do imóvel ou da empresa, foram vitimados por fratura no crânio e cervical. Meu medo vem da lembrança de que a escada pode cair com pintor e tudo, mas se ela for de boa qualidade com cinto de segurança – e sem o pintor - eu passo. O grande historiador Câmara Cascudo (1898-1986) credita essa superstição à imagem da ascensão social de quem está na escada, daí quem passar por baixo estará se rebaixando sob quem vence na vida (Dicionário de Folclore Brasileiro). Mas e se o homem da escada estiver descendo, pergunto? Evita-se, em todo caso, quem sabe, pois ‘burro velho não perde a mania’, reza o ditado popular.

Gatuno ligeiro de passos suaves!
O gato é símbolo de destreza, agilidade – daí ser um apelido comum para o ladrão – ou gatuno, não por acaso -, ladino na arte da ‘subtração do alheio’. Quem mata um gato tem sete anos de azar, já o bichano tem sete de vida - ‘g’ é a sétima letra do alfabeto, motivo para diversas associações.  Sete é o número da perfeição, disse lá atrás Pitágoras. Pela beleza e pisar elegante, também se chama a moça de ‘gata’ e o rapaz, por extensão, de ‘gato’.
Já a crendice de que gato preto traz má sorte vem dos tempos medievais, pois ele seria uma espécie de reencarnação das bruxas queimadas em praça pública, por isso o estigma do azar. Mas o bichano é lindo, quem tem não larga. Olhos claros enormes, pelo negro reluzente, lindo que ele só. E não me chame gato algum de sujo, só porque ele odeia água: lava-se boa parte do tempo com sua língua áspera, deixando a pelugem lisa, brilhosa, livre dos fios soltos e boa de se acariciar. A limpeza do bichano nada a ver com o que os humanos chamam de ‘banho de gato’, meia-boca, para sair correndo ou por preguiça mesmo.
O porco não tem a mesma fama de limpo, apesar de por vezes não viver na lama, chafurdando-se na pocilga: uns dormem dentro de casa e até na mesma cama de seu dono ou dona, nada tão raro nos EUA. E quando a porca torce o rabo? Se há alguma briga na vara, o jeito de pará-los é pegar o mais atrevido – dizem que a porca - pelo rabicó e torce-lo até que a contenda chegue ao fim. Há quem fira a dignidade do bicho, menosprezando-o com a comparação: ‘homem é igual porco, só se descobre o valor depois de morto’. 
Outra: a origem do termo ‘chico’ para designar o animal vem dos portugueses, que por isso mesmo deram ao lugar onde esses bichos vivem o nome de chiqueiro. Há os tipos criados em ambientes limpíssimos para reprodução ou abate, mas tanto quanto anêmicos e róseos, daí no caso não se dever chamar o criadouro de chiqueiro. Alojamento, talvez?
Já o cão, melhor amigo do homem, tem lá seus poderes e magias particulares. Quando o animal uiva, deve-se dizer ‘todo o agouro pro seu couro’, e o animal se calará. Ao cruzar com um cão na rua, se você tiver medo de um ataque é infalível dizer ‘São Roque, São Roque, São Roque’. (Nunca experimentei, e pelo sim, pelo não, evitaria fazê-lo com conhecidas raças violentas). Quem deixou o cão em segundo lugar foi o ‘poetinha’, Vinícius de Moraes. Certa vez, já meio embriagado, disse em uma roda de bar que ‘o uísque é o melhor amigo do homem’, no que foi prontamente corrigido: ‘poeta, o melhor amigo é o cão!’, aparte treplicado de imediato por Vinicius: ‘então o uísque é o cão engarrafado!’.
Sobre elementos minerais, segundo Câmara Cascudo, diz-se que, misturado à areia, sal com pedaços de unha,  roupa ou cabelo é feitiço brabo se espalhado sobre a pegada de uma pessoa - coisa que somente a água do mar, poderoso elemento salgado, pode dissolver. O sal desfaz feitiços e pecados, ideia que vem de muito longe e foi incorporada ao batismo da Igreja Católica, talvez devendo a costumes orientais muito antigos, quando o empregavam para afastar coisa ruim.
O sal possui inúmeras virtudes, como tempero, cicatrizante de feridas e conservante de carnes e peixes – que seriam da carne seca e do bacalhau sem ele? E tem seu lado do bem muito preservado, pois que tira mau agouro e olho grande se passado na cabeça durante o banho, e expulsa os maus espíritos se colocado em uma tigela atrás da porta, fora inúmeras outras utilidades.
Escravos de engenho (Debret)
Conhecida é a crença ‘manga com leite mata’. Os senhores de engenho cultivavam mangueiras nas propriedades, pois os frutos serviam de alimento para os escravos, não custavam nada e cresciam às pencas. Já o leite era a conta certa da ordenha da manhã, tinha vida curta e destinava-se ao desjejum exclusivo da família. Como os escravos, esfomeados, metiam seus canecos nos baldes de leite, os capatazes foram incumbidos de comentar junto aos cativos que havia gente que tomava leite e comia manga morrendo nos engenhos das cercanias. Os negros ficavam com as mangas e a caça eventual, e para beber apenas a água dos riachos. Mas a mentira pegou e é crendice de muitos até os dias de hoje, tempos em que os mais espertos saboreiam deliciosos sorvetes, sucos, milkshakes ou batidas de manga – feitos da fruta com leite ou seu creme. (Cont.)


domingo, 6 de janeiro de 2019

FOI O ÁRABE QUE PASSOU EM NOSSAS VIDAS


Outro dia, conversando com um amigo, lembrei-me de uma piada que fiz com aldrava (ad-drav), ou aldraga, palavra de origem árabe que desembarcou no Brasil via portugueses. A influência moura na Península Ibérica se deve à ocupação de Portugal e Espanha por 781 anos (711-1492)!  Ou seja, toda a existência do Brasil mais 263 anos! Ah, e a a aldrava? É um daqueles pêndulos metálicos de portas das residências, igrejas e castelos dos tempos d’antanho. Troquei Algarves por Aldrava, região de Portugal, e ficou Reino Unido a Portugal e Aldrava, ao invés de Algarves – o novo Reino que substituiu a Colônia de 1815 até 1822, quando da independência do Brasil.

Pronto para achacar
Pois lá ia eu pensando em minha bela aldrava, que custei a encontrar na Internet. Um door-knocker (batedor de porta), já que no suporte está gravado welcome. E não é que logo me veio em conta o tanto de árabe trazido para nossa língua, costumes e cultura, pelas mãos dos patrícios da terra de Camões? Fui pinçando dicionários, pescando aqui e ali, e de prima vi achaque (ax-xaqq), no Brasil sinônimo de exploração de alguém, coisa de bandidinho ou estelionatário de alto quilate (qirät). ‘Fulano era mestre em achacar negociantes alegando ser irmão de um policial’ - se não desse o azar (az-zahr) de ser dedurado por um alcaguete (al-qawwâd) a um delegado de verdade, distintivo na corrente e terno cortado por alfaiate (al-hayyât).

Alaúde
E vieram aduana (ad-dwana), a alfândega (al-fundak) dos portos dos que voam e dos que navegam – pobres nadam em açude (az-sudd), que é uma barragem muito comum em nossas zonas secas, longe do colorido azul (lazürd) das piscinas dos ricos. Na música, lindo som tem o alaúde (de al-oud, ‘a madeira’), precursor do violão! Os mestres sabem tocá-lo com melismas (ornamentos) mouriscos, acompanhados por uma suave alfaia (al-hãiâ), tambor rústico, e um adufe (ad-uff), pandeiro sem as soalhas (aqueles pratinhos) tal como os da congada e do bumba meu boi. Sem falar na rabeca (rebab, rabeb), de onde veio o violino. 

Cai bem levar à brasa aquela carne bem escolhida no açougue (as-suk) do seo Mansur (ár.: vitorioso na guerra), também dono do armazém (al-mahazén) e bom escolhedor das arrobas (ar-rüb) de gado da melhor alcateia (al-kataia), reses (ár.: rä’s) criadas com a melhor alfafa (al-hâfa). Para beber, reza a tradição dos apreciadores do álcool (al-kuhul) bem regrado nas refeições que aquela mistura de limão (laymün) deve ser feita com pinga de alambique (al-anbiq), engenhoca que vem dos tempos da alquimia (al-kïmïa). E não se esquecer de amassar o limão com açúcar (as-sukkar) antes de misturar.

Para completar o repasto, sirva a alface (al-khass) da salada nossa de cada dia com tomate, farofa e azeitona (az-zaytünah), tudo regado a vinagre e azeite (az-zayt) e acompanhado por um bem temperado arroz (är-ruzz). 

Alcachofra (Tudo Ela)
E antes de servir o principal, que tal uma deliciosa alcachofra (al-kharshof), embebida sem parcimônia em molhos suaves ou picantes? Trata-se de uma planta que costumava ser apreciada pelos alcaides (al-qaid), chefes, que hoje é alcunha (al-kunia) usada entre nós para os prefeitos. Já alcaloide vem de álcalis (al-qalyi), e é uma substância extraída de plantas ou fungos, mencionada até pelo genial poeta Manuel Bandeira em sua Vou-me Embora pra Pasárgada: ‘lá tem alcaloide à vontade / tem prostitutas bonitas / pra gente namorar’ (no caso, o alcaloide seria o proscrito cloridato de cocaína).

Alcaparras
E se um dia for a Pasárgada, leve deliciosas alcaparras (al-cabbar) para topping ou tempero: ela é tida como afrodisíaca e também pode ser deixada perto do ‘ninho de alcova’ (al-kabu), quarto do amor. Já o alecrim (al-iklil) é uma erva cheirosa que cresce na terras mais altas da região mediterrânea. O tipo nascido por aqui enriqueceu nosso cancioneiro infantil: “Alecrim, alecrim dourado / que nasceu no campo / sem ser semeado”.  Perfumada é a alfazema (al-khuzâma), uma espécie de lavanda que serve para fazer uma boa água de colônia ou de cheiro.

Nessa altura do texto, faz muito que o leitor percebeu que tentei - e o fiz sem a menor intenção de bancar o linguista ou arabianista - listar palavras de origem árabe do nosso idioma. Comecei pela nossa vogal ‘a’, isolada ou seguida por ‘l’, ‘z’ ou outras consoantes que lhe dão complemento. Calculo que há mais vocábulos árabes em nosso dia a dia – especialmente no sul-sudeste – do que dos nossos senhorios índios, de quem somos inarredáveis inquilinos. Uma breve reflexão basta para o espanto: pesquisei apenas a letra ‘a’ – e olhe que temos até ‘z’ em nosso vocabulário para serem exploradas. Em nossa comida, nossa música e dança, folguedos, instrumentos, arquitetura, azulejos (az-zulayj), em tudo o mundo árabe está presente.

Textos do Corão
Quem nunca leu o Corão (al-kurän) deveria. Há ali os ensinamentos que nem tanto ou pouco divergem da bíblia judaica (Torá) ou do Antigo Testamento cristão. Amar a Deus – um só Deus – sobre tudo, temer a Deus, os três livros coincidem em boa parte. Agora, cuidado: muçulmano não é o EI ou A-Qaeda, Hitler nunca foi exemplo de cristão e Ovadia Yosef, líder ultra-ortodoxo judeu que pregava o extermínio dos árabes, o foi do judaísmo. Esses são extremistas bem ao largo de sua fé. Há espaço para convivência e irmandade em um só grande abraço a circundar do mundo. Grandes líderes mundiais e seus admiradores não devem tomar atitudes impensadas ou por interesse unilateral que incentivem o ódio de uns contra os outros - ou o ocaso da desarmonia nunca virá. Já é um desejo enorme para 2019.