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sábado, 25 de agosto de 2018

ROMÂNTICOS, DAS MALUQUICES À LOUCURA

Aurore Dupin, aliás, George Sand

Frédérik Chopin (1810-1847), virtuose polonês do piano, compôs praticamente apenas para seu próprio instrumento: mazurcas, noturnos e polonaises, dois belos concertos cuja parte orquestral não agrada gregos e troianos e outras obras. A conduta exótica de Chopin gerava interpretações das mais diversas, pois apaixonou-se por Aurore Dupin, escritora mais conhecida como George Sand, que se vestia como homem, terno e chapéu. Sobre ela, o próprio Chopin teria dito que parecia um rapaz – já Liszt a teria descrito como uma viril amazona. O estranho relacionamento surgiu após trocas de bilhetes seguidas de vaivéns de cartas, e as recebidas por Sand em sua maioria rasgadas.
Robert Schumann
Bem mais turbulenta foi a vida do alemão Robert Schumann (1810-1856), que desde cedo despertava a atenção para seus transtornos emocionais e de personalidade. Foi músico, literato e crítico, e pensava em dois autores fictícios, Florestan e Eusébius – o primeiro, sonhador exaltado e louco, o segundo, o introvertido e racional.  Para alguns, sinal de um pé firme na esquizofrenia. Seu lado Florestan apaixonou-se doentiamente por Clara Wieck, filha de seu professor e já uma virtuose nas teclas. Ela tinha apenas doze anos e Robert era passado dos vinte, tiveram de aguardar na Justiça autorização para o casamento. Com Clara já aos vinte e um, finalmente puderam realizar seu enlace. Papai Wieck desistira de um recurso judicial em que alegava que o noivo era um perturbado boêmio.

Pequeno artefato para exercício do dedo  anelar
Robert Schumann tornou-se um dos mais importantes compositores de música vocal (Lieder, canções) e pianística, além de suas quatro sinfonias e outras peças. No desespero de ser um grande virtuose, não se conformava com os movimentos mais limitados dos dedos anelares. Ignorando lições de anatomia, passou a forçá-los no afã de liberta-los do jugo dos tendões. Amarrava os dedos a cordões que passavam por uma alça no teto, tendo na ponta um contrapeso. O abuso daquelas engenhocas por pouco não foi mais trágico, mas encerrou-lhe a desejada carreira de solista. Passou a entregar-se com afinco à composição para o resto da vida.
Local do Reno onde Schumann se atirou às águas
Como líder de orquestra, Schumann também usou invencionices como certo apetrecho, espécie de ‘cinto de segurança’ que não deixava a batuta cair-lhe da mão. Tido como regente fraco, deve ter passado por situações vexatórias à frente de orquestras. Era do tipo que se perdia pelas ruas com facilidade, e volta e meia deixava cair o que carregava, o que só acirrava os ânimos dos maldosos. Nas crises, falava sozinho, dizia que se comunicava com os espíritos e frequentemente caía em desespero. Entregue à doença, jogou-se nas águas do rio Reno, mas foi resgatado contra sua vontade. Em 1854, pediu para ser internado, tão grave era o mal que o afligia, e deu entrada no manicômio de Endenich. Até o alívio que lhe trouxera a morte, Schumann tornou-se imprestável, mal reconhecia a mulher que tanto amou, mas foi justo ela que levou adiante seu nome e obra, executando-a por toda a Europa, partituras embebidas na ideia de que dor e prazer, assim como outros sentimentos antagônicos - coisas de Florestan e Eusébius - estão intimamente ligados.

Caricatura da orquestra de Berlioz por Grandville (1846)
O excêntrico francês Hector Berlioz (1803-1869) também foi, além de compositor de obras grandiosas, crítico e literato, habilidades de escrita frequentes entre seus pares na época. Versátil na partitura e nas letras, costumava receber para longos bate-papos a nata dos melhores artistas da época: Mendelssohn, Chopin, Paganini e Liszt, além de escritores como Victor Hugo, o que dá uma ideia da riqueza de suas tertúlias e saraus. Habituou-se a compor sobre formas complexas, que orquestrava de maneira exacerbada, a exemplo do seu Réquiem, escrito para um conjunto de quatro orquestras, que tentara vender para várias famílias de defuntos. Um crítico disse que Berlioz tinha mania de compor para 500 músicos, e levou uma ironia como resposta: nem sempre, às vezes me contento com 450. A bem da verdade, grandes números não foram invenção dele, já que em 1628 Orazio Benevoli já havia escrito uma missa para cinco orquestras, dois coros duplos, contínuo e solistas.
Greve de músicos da Sinfônica de Detroit (EUA)
Na Sinfonia Fantástica, Berlioz se inspira em um músico que, perturbado pelo desespero de uma decepção amorosa, envenena-se com ópio. Como a dose foi insuficiente, o candidato a suicida não logrou seu intento, mas o efeito do narcótico passou a atormenta-lo com visões - como a da amada que se transubstanciava em divina melodia. Para traduzir suas ideias em música, o instrumento de Berlioz sempre foi a orquestra. Pouco arranhava o violão, às vezes tentava os tímpanos, sem que tenha chegado a tocar ‘a vera’ qualquer um deles. Foi um grande artista na música e na vida: enlouquecido pela noiva que o abandonou por outro pretendente, tal qual o personagem de sua própria Fantástica, Berlioz planejou disfarçar-se de criado para assassinar o rival. Dono de um gênio extravagante, o compositor tinha frequentes problemas, em especial com os músicos: durante uma apresentação da Fantástica, parte da orquestra parou à meia-noite - os músicos franceses sempre foram militantes incansáveis, e em respeito às novas determinações das guildas passaram a empacotar seus instrumentos e sair. Berlioz ignorou-os e prosseguiu com pompa arrogante e triunfal, embora tenha concluído o concerto com apenas uma parte do conjunto. A apresentação terminou em um rotundo fracasso por causa dos rebeldes paredistas. E nem havia central sindical naquela época!

terça-feira, 14 de agosto de 2018

MÚSICA E SURDEZ


Foi padecendo da perda daquilo que lhe era mais caro que Ludwig Van Beethoven compôs, já em quase oclusão dos ouvidos, alguns dos seus melhores quartetos de cordas, sui generis e abstratos. Se soam modernos para a época, pura consequência do que lhe ocorria na mente. Ludwig passou a usar artefatos e espécies de cornetas de diversos tamanhos, no desespero de ouvir seu arredor. Fez encomendas especiais ao construtor e inventor Maelzel, o mesmo que criara o metrônomo, aquela pequena pirâmide cujo pêndulo oscila de um lado para o outro, alternadamente, para marcar o tempo.
Em 1812, já assinava cartas de modo inusitado: ‘de seu fidelíssimo amigo surdo’. Notas, acordes e frases de seu ouvido interno passaram a lhe atordoar, mas deixavam-no mais livre ante as normas rígidas do classicismo, dos invejosos e da crítica. À parte a surdez que torturava seu espírito, a fama lhe era perversa, não sabia lidar com ela. Na primeira audição de sua nona sinfonia, talvez a mais importante obra sinfônica de todos os tempos, Ludwig, já totalmente surdo, após encerrado o último acorde demorou a voltar-se para a plateia. Tinha medo de vaias e um fracasso tremendo, mas ao virar-se para o público só viu aplausos efusivos.
Helen Keller ouve Caruso
Se é possível um surdo criar música, que dirá dos que querem curtir lindas melodias? Helen Keller (1880-1968), ativista cega, surda e muda formada em Radcliffe (EUA), bem o mostrou. Sentia vibrações, e delas fazia o seu ouvido pessoal. ‘Ouvia’ cantores a seu modo, e do seu jeito manifestava sua opinião com sorrisos.
Apresentaram-na ao mito Caruso, o tenor maior, e este pôs-se a cantar-lhe uma ária. Com os dedos tocando os lábios do tenor, sorria como se comentasse cada frase. Assim, seu ouvido interno sentia pelo tato sons de beleza tão grande que a inebriavam.
Beethoven: máscara mortuária
Mas a surdez de Beethoven não era como a de Keller, nascida sem os principais sentidos. A vida do compositor parece ter sido melancólica, suas feições marcadas pelo sofrimento. Os retratos feitos pelos bons artistas destoam daquele vulgarizado, longos cabelos cuidadosamente revoltos como um modelo de passarela, a exemplo dos pequenos bustos comuns de se ver encimando pianos domésticos. Vi a máscara mortuária dele, e não era o rosto de um boa-pinta, consoante os retratos romantizados, só retratavam sofrimento e amargor. 
John Kamitsuka
Apesar da aparência malcuidada e desleixo, o gênio de Bonn parecia agradar os corações das mulheres. Seria a compaixão feminina pelo sofrimento dele um charme a mais? As investidas amorosas de Ludwig eram discretas, volta e meia sobre suas alunas. (O pianista John Kamitsuka lembra que o piano a quatro mãos, tocado por duas pessoas sentadas lado a lado no mesmo instrumento, foi criado tanto para facultar a audição doméstica de peças como sinfonias - já que não havia meios de registra-las em discos e afins - quanto para aproximar o professor de suas pupilas).
Condessa Giulietta Guicciardi
Levando adiante as simpatias femininas de Beethoven, as discussões intermináveis sobre quem teria sido a ‘amada imortal’ do compositor, já especularam que talvez a cunhada Johanna, como quer a ilação do cineasta Bernard Rose. Quem sabe Teresa de Brunswik ou a condessa Giulietta Guicciardi, ambas suas alunas? Em algumas cartas para sua misteriosa amada, Beethoven refere-se a um lugar chamado ‘K’. Seria referência ao balneário de Karlsbad? Ou Korompa, onde a família Brunswik teria propriedade? Bernard Rose (de Immortal Beloved) perdeu a oportunidade de fazer um filme interativo, em que os espectadores escolhem a resposta, versão a ser apresentada no final.
Helen Keller: laureada
Entre Beethoven e Keller, contrastam duas formas de se conviver com a surdez. Enquanto o primeiro se deixava levar pelos malefícios da perda de audição e problemas mentais, a segunda superou os obstáculos à ausência de três dos sentidos, escalou graus acadêmicos e alcançou notoriedade com seus estudos sobre o socialismo.
Em Beethoven, a surdez fora progressiva, em Keller de nascença. A do primeiro pode ter sido consequência de alguma outra moléstia ou a convivência com o epicentro da orquestra em alto volume, a PAIR (Perda Auditiva por Indução de Ruído). Esta, irreversível, pode acometer músicos e plateias - vide o caso de shows de rock, funk e outros, em volume pornográfico. Sirva isso de alerta para um exemplo cotidiano: a poluição sonora e o absurdo volume dos sons automotivos. Matam aos poucos nossos ouvidos.
Nos EUA: proteção auditiva exigida acima de 85 dB
Que ninguém amaldiçoe, buscando vingança, os donos dessas máquinas de fazer doido, pensando que logo terão uma perda auditiva, porque aos poucos elevarão o volume para continuarem ouvindo alto, daí mais surdez, e tome mais volume e assim vai, círculo vicioso até a perda total ou quase. Os cidadãos que se resignem a compartilhar à revelia a doença deles! Poluição sonora não é 'frescura de ambientalista', ela é cruel e selvagem. O limite de ruído para os humanos é de 90 dB (decibel, medida de volume) por 8 horas, segundo o Departamento de Trabalho dos EUA, mas um acréscimo de apenas 5 dB reduz esse tempo máximo de resistência para a metade da jornada, quatro horas. A 100 dB, o dano começa em 15 minutos, e a 112 dB, apenas um minuto. A 140 dB, a perda neurossensorial tem início imediatamente. Para se ter uma ideia, um escritório fechado, em silêncio e sem condicionador de ar ligado, registra entre 40 e 60 dB de ruído local externo ou vizinho (existem apps gratuitos para a medição em celulares, são os decibelímetros ou sound meters).
O guitarrista Mark Goffney, nascido sem os braços
É possível deficientes físicos, surdos, cegos ou mudos tocarem algum instrumento, cantarem? Sim, claro, observadas as condições de cada caso, a escolha e objetivos ao fazê-lo. Novas tecnologias ajudam, como os metrônomos com luz piscante para surdos. Esses ‘ouvem’ a música no seu instrumento, pela vibração em seu corpo ou ainda pelo chão.
A música, além de confortar os que perderam ou nasceram sem algum dos sentidos ou movimentos do corpo, é alimento do espírito e recompensa da vida. 

  

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

BEETHOVEN: UM GÊNIO PERTO DAS TREVAS

Aquele que é considerado um dos grandes gênios da música, se não o maior, Ludwig Van Beethoven (1770-1827), foi acometido de grave e progressiva surdez, aliada a problemas mentais, no auge da carreira. As desventuras de Ludwig tiveram origem ainda menino, volta e meia espancado pelo pai, que queria vê-lo criança-prodígio e fonte de renda, tal qual Mozart. Não tinha a pirotecnia, a versatilidade do ‘Pequeno Mágico’, e dizia criar com extrema dificuldade. Ao contrário do prodígio vienense, não tanto tempo depois, Beethoven veio a compor suas obras mais representativas, como a Sinfonia n° 3, Eroica, aos 34 anos, quase a idade em que Mozart morrera, deixando-nos vasta obra. (Mário de Andrade se referia a Ludwig como Luís de Beethoven, costume de nacionalista. Poderia até ter-lhe traduzido também o sobrenome: ‘Luís de Beterraba’).
Beethoven foi um revolucionário nas ideias e na música. Na questão da forma, trocou uma pacata dança de salão do período clássico, o minueto, por uma outra mais viva e serelepe, o scherzo, uma brincadeira ou troça. O scherzo já existia, mas a troca do minueto é da lavra de Ludwig, consumando sua originalidade. Na famosa Sinfonia n° 5 mais uma vez inovou, acrescentando os trombones no último movimento. Na gloriosa n° 9 deu de presente ao mundo, no último movimento, o acréscimo de um enorme coral e cantores solistas: ‘Ode à Alegria’, sobre poema de Schiller, páginas que marcaram a história da música e abriram caminho para outros grandes sinfonistas.
Eroica: capa com a dedicatória rasgada
Algumas inovações de Beethoven foram mal recebidas. No primeiro ensaio da 5ª Sinfonia, popular no Brasil pelo comercial de aparelho de barbear - o tchã-tchã-tchã-tchã -, o tema inicial foi recebido como piada por músicos e analistas: ‘aquelas quatro notinhas’, gracejaram. Um crítico berlinense disse que nunca ouvira coisa tão desagradável, pobre em melodia, ‘um ruído sem arte alguma’. Mas o instinto revolucionário na música do compositor se estendia às paixões republicanas. Por isso mesmo, dedicou a Napoleão Bonaparte sua terceira sinfonia, Eroica. Mas quando soube que o francês havia sagrado a si próprio Imperador, a admiração caiu por terra. Com ódio, riscou até rasgar impiedosamente a dedicatória da capa da partitura.
São misteriosas e muito romantizadas as paixões de Beethoven, entre elas a famosa ‘amada imortal’. Houve quem defendesse que havia um mistério, como Bernard Rose expõe no texto do filme Immortal Beloved: a luta desesperada pela guarda de seu sobrinho menor, Carl, após a morte por tuberculose de seu irmão Johann. Pega carona aí mais uma teoria de que Carl, tão mimado pelo compositor, teria sido, na verdade, filho do próprio Ludwig com a cunhada Joanna. Na verdade, os grandes nomes da arte são campo fértil para todos os tipos de ilações e especulações, e é difícil saber se existe ou não, ao fundo delas, a chamada ‘verdade verdadeira’.
(schohenbrunn.at)
Beethoven era de um temperamento insuportável. Brigava com todos, despertava antipatias e deixava de se comunicar com o mundo, ensimesmado e entregue aos sons indescritíveis gerados pelo seu ouvido interior, no caótico inferno particular em que a surdez e a insanidade o submergiam. Era de um mau-humor e pessimismo extremos: passeando pelos jardins arborizados de Viena, olhava para os arbustos e sebes cuidadosamente aparados, e chamava-os poodles, aqueles cachorrinhos peludos.
Beethoven e Goethe
Certo dia, braços dados com o amigo e escritor Goethe, costume da época, comentou que aqueles muito bem cuidados arvoredos mais pareciam um bando de carneiros mortos.  Tinha o costume de rabiscar música em qualquer papel ou pano que pudesse encontrar, cantava e resmungava sozinho pelas ruas - sem falar em quando arremessou ovos no cozinheiro quando não lhe agradou a comida. Durante seus estudos, refrescava a cabeça e as mãos com uma jarra d’água que deixava ao lado do piano. E molhava o soalhado, para desespero do senhorio.
O obscuro Testamento de Heiligenstadt
Por tal mau-humor e inconformismo, mudou-se tantas vezes de residência que, ao reencontrar um velho conhecido, este lhe perguntou para onde deveria escrever, uma vez que nunca tinha resposta. Ludwig disse-lhe é simples, basta endereçar ‘Beethoven, Viena’. Sabia-se famoso, mas não se importava tanto com isso. Por seu comportamento agressivo e volátil, além de admirado Ludwig foi também odiado. Com a mesma paixão buscava uma inexistente perfeição na música e no sentimento, conceitos que significariam talvez a mesma coisa em sua loucura - a obra e o amor perfeitos nunca encontrados. Restaram sobre uma suposta paixão três plangentes cartas de amor encontradas após sua morte. Escritas por ele mesmo, não tinham dedicatória ou destinatária e, pior, nunca foram enviadas. Beethoven deixou tudo o que criara, além da bela poupança amealhada - para desespero de seus parentes que sonhavam com uma mordida no testamento dele -, em uma distribuição confusa num texto alucinado escrito durante um tratamento em Heiligenstadt.
Foi naufragando em sofrimento profundo que Beethoven compôs alguns de seus melhores quartetos de cordas e a magistral 9ª Sinfonia, entre outras obras-primas, empregando bugigangas de todos os tamanhos e tipos para amplificar os sons, como espécies de cornetas.


[Peguei emprestado para completar o título deste texto parte do de um livro do autor de A Escolha de Sofia, William Styron, ‘Perto das Trevas’ (Darkness Visible), um relato confessional sobre atravessar a experiência da neurose à depressão, e da demência à recorrente ideia de suicídio, tal qual Beethoven.]


sábado, 4 de agosto de 2018

ROSSINI, MACHADO DE ASSIS, A ÓPERA E SATANÁS

Rossini, por Charlet Ory, 1829

Se por um lado Gioacchino Rossini (1792-1868) tinha enorme facilidade para escrever, por outro era extremamente preguiçoso. Compondo O Barbeiro de Sevilha, sua mais famosa ópera, certo dia uma página escorregou-lhe das mãos e foi parar debaixo de um móvel. Deitado na cama, não se deu ao luxo de levantar e pega-la, chamou o criado puxando seguidamente a corda que acionava um sino lá fora, mas sem sucesso. Após um bom tempo, virou-se para o outro lado e escreveu a página novamente.
Rossini era um glutão assumido: ‘comer e amar, cantar e digerir são os quatro atos da ópera da vida’, dizia. Poderia ter sido protagonista de uma opera buffa, gênero cômico italiano que dominava. Tornou-se famoso, compondo pelos cotovelos - Tancredi, melodramma eroico baseado em uma peça de Voltaire, foi escrita por encomenda em menos de um mês. Mas foi o sucesso de O Barbeiro que levou Rossini a compor mais intensamente. A ópera repercutiu tanto que as apresentações prosseguiram por 21 temporadas, centenas de récitas. E mesmo hoje: o Opera Sense contabilizou 2.547 apresentações pelo mundo na temporada de 2015.
Batalha de Yarmuk
Cenerentola, com libreto sobre a guerra entre bizantinos e sarracenos, foi escrita improvisadamente em apenas três semanas. Guilherme Tell, sua última ópera, obteve grande repercussão e ajudou a fazer de Rossini tão famoso na Europa que os franceses propuseram erigir-lhe uma estátua, orçada em uma pequena fortuna. Gozador, quando ficou sabendo Rossini disse que por metade daquele dinheiro ficaria no pedestal ele mesmo.
Um atarefado cozinheiro, uns bons séculos antes
A produção do italiano era quase doentia: aos 37 anos, já tinha composto número igual de óperas. Deprimido, enfadado pelo sucesso e sem perspectivas de subir ainda mais, quebrou a pena favorita que usava para compor. Entregou-se à boemia, às viagens, aos restaurantes franceses, a ne rien faire, ou, bom italiano que era, al dolce far niente. Mais uma vez enfastiado dessa rotina, passou a dedicar-se a outro talento, a culinária. Inventava pratos com a mesma facilidade com que criava suas óperas. Cansado de viver de economias, direitos e glória, Rossini decide voltar a compor, e escreve obras pomposas como o Stabat Mater e a Pequena Missa Solene.
Mosaico: a prisão de Guilherme Tell pelo tirano Gessler, por não reverenciá-lo
A última ópera composta por Rossini foi mesmo Guilherme Tell, cuja abertura foi usada, no nosso tempo, em filmes de caubói, porque os arcos em ricochet (saltando três vezes na mesma direção para cá e depois para lá) lembram o som dos galopes de cavalos do faroeste. A partitura de Guilherme Tell havia sido prometida muito antes, mas Rossini não se prontificava a começar a compô-la, pois havia prometido que aquela seria a sua última – apesar disso, viveu 40 anos após termina-la. Um crítico publicou no Correio dos Teatros que havia sido lançada à terra a semente da árvore cuja madeira serviria para a construção do piano que o compositor usaria para criar a partitura. E que pessoas não nascidas - porque os pais delas ainda não haviam se casado - poderiam, no futuro, ouvir tão preciosa obra. [No final deste artigo, você pode ouvir a abertura de O Barbeiro e seus ricochets]
O 'Retiro' de Jacarepaguá, Rio
Não se sabe se por causa desse episódio, Rossini pôs-se a escrever, concluindo uma de suas obras-primas, Guilherme Tell, com libreto em francês. Foi um dos mais populares compositores da história, mas tinha medo da velhice e parece que escrevia para correr do ócio, do torpor e do tempo. Legou boa parte de sua fortuna à Prefeitura de Paris, para que fosse construída uma residência para músicos idosos - algo como o nosso mais recente ‘Retiro dos Artistas’ de Jacarepaguá, no Rio.
Em A Ópera, 9° capítulo da obra-prima Dom Casmurro, Machado de Assis conta que a vida é uma grande encenação na qual tenor e barítono disputam a soprano na presença do baixo e dos comprimários (papeis secundários). Isso, quando não são soprano e contralto que brigam pelo tenor (eu sempre ouvi uma versão de músicos para este resumo da ópera: um tenor tenta ‘cantar’ a soprano, mas baixo e barítono atrapalham a cena).
Satanás expulso do Céu, por John MIlton
Machado resumiu o que acontece no mundo: Deus é o poeta, o compositor é Satanás, que subiu ao Conservatório do Céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não concordava em perder deles nas premiações. Tramou uma revolta, foi derrotado e expulso do Conservatório. Tudo poderia ter passado batido, pensou o escritor, se Deus não tivesse escrito o libreto da ópera para depois dele abrir mão - a atividade não caía bem à sua condição de Altíssimo. Satanás levou o manuscrito para o Inferno, compôs a partitura e usou-a tentando se recompor com Padre Eterno, que se recusou a vê-la. Por isso, quando certo dia alguém me perguntou o porquê das guerras, desgraças, tragédias, mortes, e questionou a existência de Deus - tão poderoso, Ele deveria evitar nossas desgraças -, pensei em Machado e respondi: Deus escreveu o libreto, mas quem rege a ópera é Satanás. 
Machado, o ‘Bruxo do Cosme-Velho’, foi guindado ao panteão dos maiores escritores do mundo após recente publicação de livro com contos dele nos EUA. O NY Times considerou nosso gênio um dos nomes de vulto entre os escritores, ‘herdeiro dos grandes e inteiramente sui generis’. A Ópera de Machado não é apenas uma incursão na literatura, música e filosofia. Considero o texto uma boa resposta para os incrédulos e os que não enxergam de quem é a grande culpa do mal neste mundo: o próprio homem. A Deus não cabe consertar ou evitar todos os erros da humanidade, tragédias e guerras. Quando muito dá uma forcinha aos que pedem e realmente merecem].
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Ouça a abertura Guilherme Tell com a Filarmônica regida por Karajan. Os ricochets surgem aos 8 min 45 seg:

https://www.youtube.com/watch?v=qOofwWT3Edc