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sábado, 27 de abril de 2013

MY SWEET BOSTON



Puritans em culto
Os primeiros assentamentos de colonos ingleses foram estabelecidos pelo acordo de Cambridge, de 1620, celebrado entre os puritans e a Colônia da Baía de Massachusetts, até que os novos posseiros batizaram o povoado com o nome de Boston (os puritans eram protestantes dos séculos 16 e 17 que achavam que a Reforma Inglesa não havia se afastado o suficiente da Igreja Católica). Chegaram depois os católicos e posteriormente colonos da Irlanda e do País de Gales. Desse povoado, ao mesmo tempo simples, conservador e aristocrata, surgiu a chamada New England (da qual Boston é a maior cidade), área que se estende a 5 outros estados, além de Massachusetts. Não apenas a arquitetura original lembra a Inglaterra, mas também o nome de suas pequenas cidades, como Brighton e Allston (duas onde morei quando de minha chegada aos EUA).

Boston Symphony Hall
A ciência, a literatura, a música e as artes em geral encontraram ali terra fértil para crescer. A Boston Symphony Orchestra, uma das melhores do mundo, ocupa um local privilegiado, esquina da Huntington Ave. com a Massachusetts Ave. Descendo a Huntington, chegamos à esquina com a Gainsborough St., do lado esquerdo, onde fica a New England Conservatory – uma fabulosa escola de música de quase 150 anos, minha formação e modelo.

Jordan Hall, New England Conservatory of Music

Prédio da Gainsborough St.
Do lado direito da mesma Gainsborough, fica o prédio nº 79, estilo bem inglês, tijolos à vista e janelas protendidas do tipo ‘baywindow’, onde depois passei a residir. Ao lado, doze anos antes, no nº 77, havia morado um sujeito que entraria para a história, após arrastar a pacata cidade por longos meses de pânico e terror (fatos que deixo para narrar depois, ao unir as duas tramas deste texto).


Campus da Harvard University, em Cambridge
Paralela à Gainsborough, à frente do Symphony Hall, lá para trás, a movimentada Massachusetts Ave., que passa perto da maior escola de jazz e rock do mundo: a Berklee College, perto da Boylston St. Seguindo pela Mass. Ave. e atravessando a ponte, chegamos a Cambridge, do outro lado do rio Charles: uma espécie de paraíso onde se instalaram os magníficos centros universitários MIT (Massachusetts Institute of Technology) e a Harvard University, um campus monumental, onde se formaram vultos como  Barack Obama.

Ponte sobre o rio Charles: Boston-Cambridge
ainda museus, esporte (como o Boston Red Sox, fundado em  1901, melhor time de beisebol), a Igreja da Christian Science (Cientologia), que cooptou Tom Cruise, instalada em um prédio de mármore imponente, construção monumental sobre um amplo espaço. Existe ainda o badaladíssimo Mass. General Hospital, e a mais respeitada publicação científica de medicina do mundo, o New England Journal of Medicine. Agora, vamos ao contratema, e no caso deste texto, a narrativa principal.

A primeira explosão
No dia 15 de abril de 2013, tudo era emoção na tradicional Maratona de Boston, até que às 14h50, na Dartmouth St., próximo à Boylston St., explodiram duas bombas caseiras, feitas com panelas de pressão, pregos e pilhas, matando três e ferindo 176 pessoas. O pânico ressuscitou o medo do chamado 9/11 de NY, e de quebra o da Tchetchênia e do Irã. O pavor não seria tão grande se as duas Coréias não estivessem com seus supermísseis apontados para o mundo (“bala na agulha”, diz o jargão), fora as movimentações dos EUA contra o bloco Norte, enquanto este está pronto para atacar o vizinho e quem quer que seja com armas de poder de destruição desconhecido. Isso às expensas de um ditador lunático que deixou um filho ‘herdeiro’ idem que pensa que aquele arsenal e o mundo são seus brinquedos.


Qualquer coisa poderia ligar inimigos aos atentados, criando pretexto para uma nova guerra. Estaríamos todos em perigo, independentemente da origem do autor ou do grupo responsável pelo atentado. A segurança e a economia mundial iriam para o espaço, e teríamos uma crise sem precedentes.


DeSalvo, preso
Vou voltar à minha Gainsborough St. para retomar o caminho, pois é de lá que costuro as duas partes deste texto, duas variações sobre o mesmo tema: o terror. No prédio 79 daquela rua, em 1962, Anna Slesers, 55, fora a primeira vítima do Estrangulador de Boston, um dos mais famosos ‘serial killers’ da história. Seguiram-se mais doze assassinatos, durante 9 meses, até a captura do culpado – um demente chamado Albert DeSalvo. Boston tinha sofrido meses de pânico; o povo tinha medo de sair à rua, de ir ao cinema, onde um pequeno feixe de luz poderia ser a pequena lanterna com que DeSalvio apreciava os pezinhos das mulheres, cujos detalhes estudava com requintes de fetichismo.

Boston, 1962: pânico
O medo havia contagiado também os homens, já que não mais havia controle algum sobre dados de mortes (naturais ou não) e os boatos se multiplicavam; a eficiente Polícia local criou os famosos “Boston Police locks”, trancas com uma barra de aço colocadas na diagonal contra as portas, que “nem um mastodonte” poderia derrubar, diziam. Pode ser. Mas havia medo, muito medo, pânico, terror.

Prisão de Dzhokar Tsamaev
Passadas cinco décadas, dois irmãos tchetchênios (povos do sul da Rússia, palco de duas guerras nos anos 1990), sendo um deles de 19 anos – quase um “de menor”, para o Brasil -, são pegos por uma polícia aparelhada como nos filmes de ficção científica, deixando o mais velho deles morto. Bastaria uma conexão com um grupo islâmico tchetcheno, do Al-Qaeda ou outro para fosse aceso o pavio de uma guerra idiota e sem propósito (como todas as outras, aliás). Provavelmente, o cidadão de Boston não sofria tanto medo desde 1962. Dois medos, duas medidas.

Maracanã em reforma
Para concluir, o fecho, a 
“coda”, como se 
diz na música: se o Brasil está ou não preparado para sediar dois enormes eventos internacionais de esportes (2014 e 2016), com estádios erguidos ou adaptados às pressas, fazendo “na marra” vista grossa à lei das licitações, criando espaços dotados de segurança de construção no mínimo duvidosa, isso eu não sei. Mas que não estamos preparados para debelar dois ou vinte desses fanáticos, como aconteceu em Boston, disso tenho certeza que não. Resta a cada um se apegar a Deus ou às suas convicções, pois se já não há expectativas visíveis para uma vitória na Copa e medalhas em quilate e quantidade para nosso país nos Jogos, que ao menos depois do suspense tenhamos de volta o mínimo de paz que ainda resta hoje, mesmo que na ressaca da festa dos gastos desproporcionais às possibilidades de nossa combalida economia (e dos que se locupletarem, como sempre, às burras de dinheiros públicos), verba de que nossas escolas, hospitais, segurança e habitação popular tanto precisam.

sábado, 20 de abril de 2013

CANTOS E ROMANCES DA INCONFIDÊNCIA


Liberdade, ainda que tarde, ouve-se ao redor da mesa. E a bandeira já está viva, e sobre, na noite imensa. E os seus tristes inventores já são réus – pois se atreveram a falar em liberdade (que ninguém sabe o que seja)”. Esses lindos versos (Romance XXIV ou da Bandeira da Inconfidência), candentes, plangentes, cortados com a pena mais profunda na obra de Cecília Meireles (1901-1964), o seu Romanceiro da Inconfidência, revela a utopia de idealistas brasileiros e alguns d’além-mar, contumazes nas reuniões nas casas de intelectuais como o poeta do arcadismo Claudio Manuel da Costa (1729-1789), o 
Tomás Antonio Gonzaga
também poeta nascido português, Tomás Antonio Gonzaga (1744-1810) e o letrado Inácio de Alvarenga Peixoto (1744-1793), nascido no Rio e falecido em Angola.


O Tiradentes
Joaquim José da Silva Xavier, militar de menor escalão – um alferes,  que poderia ser um simples porta-estandarte real -, juntamente com os poetas e outros militares mais ou menos graduados, tornou-se símbolo da chamada Conjuração Mineira. Lançado o dístico de Virgilio Libertas quae sera tamen  – Liberdade, ainda que tardia -, talvez fosse o sonho de Xavier alçá-lo ao céu nas laterais do triângulo da bandeira, parte de seu ofício militar. Em 1776, já havia acontecido a Independência da América, sem falar nas brumas da Revolução Francesa e do iluminismo. Os conjurados, embriagados em seus sonhos libertários, já vislumbravam de uma só vez a abolição da escravatura, a Independência e a República – uma revolução imensa a ser detonada pela cobrança (“derrama”) da insuportável carga de impostos exigida pela Coroa portuguesa, que chegara a 20 %; com essas taxas (o chamado 1/5, ou o “Quinto dos Infernos”) e a queda crescente na produção de ouro, o povo estava desesperado. (Cabe lembrar que hoje tem se falado muito que houve uma Conjuração por 20%, quando atualmente o brasileiro carrega uma carga tributária de 38%, quase o sobro. São duas realidades, mas comparar esses simples números é assustador).

Tiradentes esquartejado, de Cândido Portinari
Tiradentes não foi um líder, um típico grande revolucionário. De todos os condenados à morte, ele foi o único que não recebeu o indulto da Dª. Maria I, de Portugal. Foi o único condenado à forca e o único executado, exposto ao público, para depois ser esquartejado, a fim de que partes de seus restos assombrassem o que poderia ter sobrevivido  das cinzas da Inconfidência, em Villa Rica, hoje Ouro Preto.

Villa Rica, por Arnaud Paulière (1820)
Era o mais pobre de todo o grupo, o de mais baixa instrução e o de menor poder. Contudo, devido à falta de um bode expiatório de menor risco, a Coroa portuguesa criou, involuntariamente, um mártir, um ícone, o homem-símbolo dos nossos livros de história escolares (e acaso seria este o único dos pedaços de história mal contada, já que crescemos decorando relatos escritos por linhas tortas? Sem falar nas linhas que nunca foram escritas – presumivelmente, as mais verdadeiras). A Inconfidência foi debelada no mesmo ano da Revolução Francesa (1789), que, vitoriosa, esta sim veio refrescar as ideias de todo o ocidente.

Jair Borin (de branco), com Antonio Cândido (dir.)
Mas voltemos ao nosso assunto, que é canto e poesia, e não história, que aqui é mero pano de fundo para cantarmos nossas canções e romanceiros. Dou um salto para 10 anos atrás, quando estava doente meu amigo Jair Borin, Chefe do Departamento de Jornalismo da USP. Borin havia sido escolhido Reitor da Universidade com larga folga, no pleito geral. Porém, a chamada democracia universitária não funciona do jeito que se imagina: o que vale é a eleição do colegiado que faz a lista tríplice que é entregue ao Governador, que escolhe o nome do eleito, seja o mais votado ou não. A amizade com Borin ajudou-me a me desvencilhar de alguns espinhos da disputa docente interna pouco conhecida do público – à qual não reservarei espaço. 
Núcleo Hespérides, em plena performance
Com Borin doente, comecei a escrever uma peça para um excelente grupo de música contemporânea, o Núcleo Hespérides, do qual fazem parte, entre outros, o compositor Antonio Ribeiro e as admiráveis sopranos Andrea Kaiser e Heloísa Petri, o barítono José Antonio Soares e mais um quarteto formado por piano, violão, flauta e percussão. A obra estreou em 3 de maio de 2003, no SESC Ipiranga (Jair havia falecido no dia 22 de abril, um dia depois do feriado de Tiradentes!). Foi também apresentada, a convite, na Bienal de Música Contemporânea do Rio de Janeiro. Título da obra: Opus Dez, com trechos do Romanceiro da Cecília Meireles (coincidências?). A família do homenageado compareceu à estreia, e foram momentos emocionantes.

Vladimir Herzog, "suicidado" no DOI-CODI
Borin fora preso na mesma época de seu colega Vladimir Herzog, só agora declarado oficialmente morto por tortura no DOI-CODI; Vlado foi pessoa sem participação em qualquer grupo armado que pudesse ameaçar o regime. De certa forma, Vlado tornou-se um símbolo – não tão incensado como Tiradentes, mas o símbolo de uma outra época de triste memória. Em meu Opus Dez, citei Cecília: “Não posso mover meus braços / por este atroz labirinto / de esquecimento e cegueira / em que amores e ódios vão”. No contracanto desses versos, o barítono repetia Tiradentes, antes de morrer: “dez vidas eu tivesse / dez vidas eu daria”.  Mais adiante, Tiradentes antecipa seu fim: “pois sinto bater os sinos / percebo o roçar das rezas / vejo o arrepio da morte / à voz da condenação. / Avisto a negra masmorra / e a sombra do carcereiro / que transita sobre angústias / com chaves no coração; / descubro as altas madeiras / do excessivo cadafalso / e, por muros e janelas / o pasmo da multidão”. Em contracanto, sempre, o barítono repetindo o mártir: “dez vidas eu tivesse / dez vidas eu daria...”.

O Martírio de Tiradentes, por Francisco Aurélio de Melo
Não, não se trata de desinventar o herói, mas de falar de um homem simples elevado a mártir, como tantos na história: “...choram Marias e Clarices / no solo do Brasil / mas sei que uma dor assim pungente / não há de ser inutilmente / a esperança...”, belíssima letra de Aldir Blanc, em O Bêbado e o Equilibrista. (N. do A.: Marias, mulheres de tantas vítimas, e Clarice,  a de Vladimir Herzog). Os regimes de força criam mitos, que por sua vez alimentam novos sonhos libertários. Se Tiradentes é um mártir sem ter sido um líder guerreiro, aqui pouco interessa. Os historiadores que recontem a história. Eu entendo mais da poesia, como a de Tomás Antonio Gonzaga, também conjurado, em seus versos a Marília de Dirceu: “Enquanto revolver os meus consultos / tu me farás gostosa companhia / lendo fatos da sábia mestra história / e os cantos da poesia”.


sábado, 13 de abril de 2013

ASSOBIOS, CANTAROLAS E SONS QUE CORREM DENTRO DE NÓS



Otto Lara (com cara de assobio) e Fernando Sabino
Lembro-me de quando alguns escritores mineiros, amigos e quase vizinhos de minha família, como o Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, além de outros mais afeitos às mais finas regiões praianas cariocas, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino, reuniam-se ora na casa de um, ora na casa de outro, para falar de literatura, política e o que mais a pauta informal da prosa permitisse, volta e meia surgia um assobio misterioso. Aquele som estava sempre presente nas conversas, não incomodava, era longínquo, mas certamente despertava alguma curiosidade em quem não estava na prosa, regada a solos sibilinos.

"La" Bardot
Assobio, dizem os dicionários, é o ‘som agudo produzido por alguns animais, como pássaros e cobras’. Genericamente, estendeu-se aos homens, que, mesmo não tendo o condão de voar, quando muito apenas  o de rastejar, teimam em imitar o som desses animais, ora com a boca (sem ‘caras’), à Brigitte Bardot, formando um pequeno orifício para a produção do som, ora usando a língua em vários formatos, como retorcida para dentro, para fins de uma melhor emissão de sons e melhor volume. Há ainda técnicas mistas, como a junção daquela que acabo de apelidar “Bardot” a outra, que usa a língua sobre os lábios e dentes inferiores, projetando melhor o som – que os nossos gramáticos poderiam criar, em neologismo, ‘linguolabial inferior’.

Soprano em "bocca chiusa" e violoncelos
Voltando, naqueles encontros de mineiros, surgia um assobio único, inconfundível, quase subliminar, à bocca chiusa, boca fechada, em italiano, técnica empregada por Villa-Lobos em sua lindíssima Bachianas Brasileiras nº 5, para soprano e orquestra de violoncelos. Pois havia no grupo de escritores mineiros um mestre no assobio bocca chiusa, autor daquele som agudíssimo, interminável e quase inaudível que permeava o papear e assuntar dos presentes. Chamava-se Otto Lara Resende e o assobio tornou-se famoso a ponto de merecer uma crônica muito divertida do Fernando Sabino. Um silvo quase involuntário, de poucas notas, mas presente como um zumbido, daqueles que dão no ouvido da gente depois de uma grande explosão. E existe até o assobio virtuosístico: de Brasileirinho à ária da Dama da Noite, da ópera A Flauta Mágica, de Mozart, proezas que foram
devidamente levadas aos palcos de esquisitices dos programas de auditório da TV e, hoje, ao Youtube. (Veja e ouça abaixo, dublê de soprano e assobio 'cover' na ária Dama da Noite - não é para ser levado a sério, claro, é só curiosidade):


O tinnitus, catalogado como doença no CID (Código Internacional de Doenças) sob o nº H93.1, nada mais é do que um assobio intermitente, um ou mais agudos altíssimos, lá dentro do cérebro. Ele é no mais das vezes associado a uma lesão auditiva, como a PAIR (Perda Auditiva por Indução de Ruídos), com que fui involuntariamente agraciado, e aceito, resignadamente, mesmo por não ter tido opção.

Decibelímetro
Entendo que boa parte dos motoristas profissionais, jovens com aquele estúpido som automotivo, operadores de máquinas e, também, músicos de orquestras e bandas, também sejam vítimas de lesão por ruídos constantes em níveis acima de 90 dB (decibéis). Com a perda, vem o tinnitus, que atazana músicos de todos os tempos. De uns anos para cá, aprendi a controlar o zumbido. Um leve ruído ambiente, levíssimo, ou uma música em baixíssimo volume ajuda muito a dormir; já o processo de esquecer o zumbido requer simplesmente ignorá-lo (uma daquelas afirmações tão banais quanto verdadeiras: para parar de fumar, não custa além do que não mais fumar).

Foram vítimas do tinnitus, entre outros, Beethoven, Sting, Eric Clapton, Barbra Streisand e por aí vai. O ‘meu’ só ressurge quando me lembram ou quando eu penso nele: no caso, neste exato momento em que escrevo, ele já vem bisbilhotar sem permissão meu ouvido interno, assobiando aqueles sons de abelhas-coloraturas (virtuosísticas). Mas dura pouco: logo eu o ignoro e esqueço.

Há em Tatuí um barbeiro cantarolante. Cantarolar, o cantarejo, pressupõe, ainda de acordo com os dicionários, uma certa desafinação que o torna inequivocamente humano e desinteressado tecnicamente. O barbeiro cantarola, mas não árias de ópera, nem serestas (adoraria eu), nem cantigas de roda ou recitativos: apenas cantarola continuamente, sem forma, sem tom definido, às vezes de forma modal (segundo os modos antigos), às vezes quase tonal, e vez por outra de forma mista.

Elisabetta (Isabel) Gafforini e suas melenas


E lá vai ele cantarolando e aparando gaforinas dos cabelos dos clientes (no Brasil, também, gafurinha). Curiosidade:  o termo remete a Elisabetta Gafforini, famosa cantora lírica italiana que fez grande sucesso em Portugal no século 19, dona de uma vasta cabeleira cheia de anéis e caracóis, de onde teria surgido o termo. Veja na ilustração, a soprano com sua enorme gaforinha, enorme apesar do grande coque). Cantarolando, o barbeiro vai-se entretendo enquanto poda os pelos alheios, não como o Figaro, barbeiro-barítono da ópera O Barbeiro de Sevilha (1816), de Rossini, mas um meio-barítono anônimo para lá de popular e despretensioso. (Abaixo, veja ouça a Cavatina de Figaro, em O Barbeiro de Sevilha).


Oscar Peterson (catarolando) e Niels Henning Pedersen
O
cantarolar não é o cantar de trabalho, como o dos nossos antigos escravos ou cortadores de cana e afins. O cantarolar é uma espécie de arte originária da Corte  portuguesa, daí uma certa sofisticação. E é popular ao extremo: não exige estudo, e muito menos experiência, apenas o talento da vida. O curioso é que houve músicos de primeiríssimo quilate que cantarolavam (ou cantarolam) enquanto tocavam ou regiam. Conheci e assisti a dois deles, o primeiro por centenas de vezes, o segundo uma meia dúzia: nosso imbatível maestro Eleazar de Carvalho e o mito canadense do jazz, Oscar Peterson. Eleazar, quando na euforia de uma gloriosa passagem da orquestra, volta e meia deixava escapar um solfejo desafinado, coisa que provavelmente só poderia ser ouvida por alguns músicos.

Seiji Osawa em flagrante regendo e cantando
O mesmo fazia Seiji Osawa, que foi regente titular da Sinfônica de Boston. Já Oscar Peterson, seus grunhidos musicais pareciam lhe ajudar a acompanhar suas improvisações para lá de virtuosísticas. E há um estilo para esse cantarolar dos virtuoses: há que ser meio (quando não totalmente) desafinado, um grunhido, um ron-ron estranho, uma coisa que parece mais vir do estômago do que das cordas vocais.

Termino avisando aos que empregam a nova terminologia médica que trocou perônio por fíbula e cordas vocais por ‘pregas’ vocais: não adoto a expressão! Alguém pode vir aí com uma hilária interpretação desse novo vocabulário. E parece que não optei sozinho: tenho a boa companhia do mestre Houaiss, que manteve a expressão ‘cordas vocais’ em nosso vocabulário musical.


Por fim, é boa a terapia: não só quem canta, mas também quem assobia ou cantarola, seus males (e zumbidos) espanta.