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sábado, 31 de agosto de 2013

MARTIN LUTHER KING: 45 ANOS DE UM ASSASSINATO, 50 ANOS DE UM SONHO




Martin Luther King, Jr. (1929-1968), Reverendo da Igreja Batista - como bem indica o nome que o pai lhe deu, homenagem à grande figura da Reforma, no século 16 -, foi, além de religioso, o líder da luta pelos direitos civis e pela liberdade do povo afro-americano, apologista da desobediência civil pacífica. Sofreu várias derrotas em sua batalha incansável contra o racismo na Georgia e no Alabama, e convocou a Marcha sobre Washington pelo Emprego e pela Liberdade em 1963, mostrando-se grande e inspirado orador, com sua verve e carisma contagiantes.

Martin Luther King. Marcha sobre Washington, 1963
Naquele 28 de agosto de 1963, um discurso de menos de vinte minutos entrou para a história americana como um dos mais belos e emocionantes, ao lado do Gettysburg Address do Lincoln. O povo caminhava cantando “We shall overcome” (“nós vamos conquistar, nós vamos conquistar, nós vamos conquistar um dia...”). (Veja e ouça abaixo a canção na voz inimitável da Joan Baez, e logo após o discurso de King).

 

Mahalia Jackson
Vale destacar alguns comoventes trechos, que traduzo livremente a seguir: “Eu digo a vocês agora, meus amigos, que apesar de enfrentar as dificuldades de hoje e amanhã, eu ainda tenho um sonho”. Pausa. A seguir, Mahalia Jackson, cantora gospel de poderosa voz de contrato, gritou: “Conte a eles sobre seu sonho!”. O reverendo pegou o “gancho” de Mahalia, abandonou o texto escrito e prosseguiu livre, improvisando com emoção: “É um sonho arraigado profundamente no sonho americano. Eu tenho um sonho de que um dia esta nação vai se levantar e viver o real significado de sua crença: que todos os homens são criados iguais. Eu tenho um sonho de que um dia, sobre as colinas vermelhas da Georgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos donos de escravos poderão sentar-se na mesa como irmãos". 
"Eu tenho um sonho de que até o estado de Mississippi, sufocado pelo calor da injustiça, pelo calor da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho de que minhas quatro crianças um dia viverão em uma nação onde eles serão julgados não pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tive um sonho hoje. Eu tive um sonho de que um dia, lá no Alabama, com seus racistas corruptos, com um governador de cujos lábios escorrem palavras de intervenção e negação; um dia, logo ali no Alabama, meninas e meninos negros poderão juntar-se as mãos com meninas e meninos brancos, como irmãs e irmãos. Eu tive um sonho hoje !” (Veja e ouça abaixo Martin Luther King, Jr., e o momento em que, por uma deixa de Mahalia Jackson, abandona o discurso escrito para deixar-se levar pelo improviso na emoção) 

Em 1964, por sua luta pelos direitos humanos e pela igualdade racial, King recebeu o Prêmio Nobel da Paz - justíssima homenagem, ainda que tardia (ao lado).
Grande opositor da Guerra do Vietnã, King proferiu em Nova York, em 1965, outro discurso inspirado: “Além do Vietnã: a hora de quebrar o silêncio”, de que me valho para destacar um célebre trecho: “Uma verdadeira revolução de valores mostrará em breve as agruras do gritante contraste entre pobreza e riqueza. Com justa indignação, ela surgirá dos mares e revelará os capitalistas do ocidente investindo enormes somas de dinheiro na Ásia, África e América do Sul, apenas para auferir lucros, sem se preocuparem com a melhoria social desses países”. E encerra firme, após uma pausa tática: “isto não é justo!”
Dr. King morto, no chão da sacada do hotel
Em 4 de abril de 1968, em Memphis, estado de Tennessee, King foi brutalmente assassinado. Contra o autor da façanha, o atirador James Earl Ray, pesou ainda a suspeita de que teria agido em conluio ou a mando de agentes secretos, uma dúvida que persiste há 45 anos e que nunca será dirimida. Naquele dia, ao amanhecer, King foi à sacada do segundo andar do pequeno hotel onde estava hospedado, quando recebeu o disparo de um rifle no rosto, cuja bala terminou por atravessar sua coluna para se alojar no ombro. Logo depois estaria morto, mas a notícia já havia se espalhado como fogo, provocando manifestações e protestos no país inteiro.
Rev. Jesse Jackson
O reverendo negro Jesse Jackson (1941, Carolina do Sul), foi um seguidor dos passos de Luther King. Em 1983, Jackson disputou a indicação do Partido Democrata para a eleição à Presidência dos EUA, final de uma luta que já vinha de alguns anos antes. Surpreendeu iniciando com um terceiro lugar no início das primárias e logo ultrapassou o segundo colocado. Mas perdeu as prévias para Walter Mondale, escolhido candidato pelo Partido Democrata, por sua vez derrotado nas urnas pelo republicano Ronald Reagan em 1981. Cheguei a ver discursos de Jackson na TV, ainda na pré-campanha. Uma emocionante chama de esperança traduzida em belas frases de efeito e um estilo professoral. Dificilmente, nos EUA, alguém tira de King e de Jackson o pódio dos oradores impecáveis e arrebatadores: o dom de fazer derramar lágrimas dos ouvintes, apontando uma réstia de luz, uma chance de que um país fundado por colonos brancos europeus poderia ser dirigido por um negro. (Abaixo, um discurso de Jackson, em 1988, em que além da igualdade racial, ele incluiu Aids e drogas. A palavra “sonho”, lembrando KIng, é recorrente).



Marcha sobre Washington: 1963 e 2013
Em 29 de agosto de 2013, completados os 50 anos do libelo “Eu tive um sonho”, Barack Obama, primeiro presidente negro eleito nos EUA após duas tentativas anteriores de correligionários democratas, foi a estrela que reverenciou Luther King, participando de uma segunda marcha sobre Washington. Se não o fez com a emoção dos reverendos negros, falou do alto de sua formação superior em Columbia e Harvard, preparado para as sustentações orais dos advogados das cortes americanas, ao estilo da oratóra de sua tradição.
Foi uma fala profissional, mas marcante. Ao invés do bordão antecipado de cada pensamento de King - "I have a dream" -, Obama usou um apêndice, ao final das belas frases finais, como "they are marching", "because they marched" ("eles estão em marcha, "porque eles marcharam").
Barak Obama, 28 de agosto de 2013
Na luta de King houve muitos avanços, sim, mas ainda há muito o que enfrentar. Na luta pela igualdade, contra o racismo atado umbilicalmente à maioria do povo branco americano - tanto quanto à nossa parcialmente miscigenada sociedade brasileira, manto que oculta uma boa parte dos cidadãos “que ainda discriminam seus irmãos pela cor da pele e não pelo seu caráter interior”. 

(Abaixo, o discurso de Obama, em 28 de agosto de 2013, na íntegra).


sábado, 24 de agosto de 2013

QUE MÚSICA ELETRÔNICA QUE NADA, MANO !!!



O brasileiro tem mania de imitar o que vem de fora do jeito dele, só porque ele quer, para ficar bonito “na fita”. Veja o tal de “Gospel” brasileiro (de “God spell”, do inglês Palavra de Deus, Evangelho). O Gospel original surgiu nos EUA por volta de 1890 em forma de canções e hinos, no seio das comunidades negras protestantes, nascido dos belíssimos “negro spirituals” (canções religiosas negras) ainda no século 18, lindos hinos para voz solista e coro cantado nas igrejas. Os spirituals eram uma adaptação dos hinos luteranos ao ambiente e forma de cantar do negro, com pitada de blues. Agora, o que a belíssima linhagem Gospel tem a ver com o pop-light comercial cantado geralmente por mocinhas bonitas com voz inocente no Brasil? O que tem isso a ver com o Gospel verdadeiro, além do nome?  Nada. (Veja e ouça o Gospel original abaixo, e a seguir um “negro spiritual”).







A "turma" de Cornélio Pires (ao centro)
Daqui mesmo, o sertanejo universitário, expressão que não explica coisa alguma, foi importado do nordeste pela peãozada dos canteiros de obras da Grande São Paulo. O gênero absorveu os vícios da região, foi misturado com a jovem guarda e a “country music” a bordo de chapéu, cinturão e bota de caubói americano. Euclides da Cunha (1866-1909), em seu consagrado “Os Sertões”, sobre a Guerra dos Canudos no interior baiano, imortalizou o filho do campo: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Daí a dizer que essa panelada musical urbana e híbrida é sertanejo, é tiro no pé. Esse “sertanejo” pop fez sumir as cantigas das festas juninas e degredou o sertanejo caipira de Cornélio Pires, Jararaca e Ratinho, Tonico e Tinhoco e um mundão sem fim da gente de raiz. 

O incrível Earth, Wind and Fire
O Funk saiu da gíria americana “funky” - nervoso, agitado - e teve origem no jazz negro dos anos 1950. Na década de 1970 passou a designar um estilo próprio de pop negro norte-americano, nascido do “Rythm’n’blues”. Dele brotaram o frenético James Brown, Sly Stone e o fantástico grupo Earth, Wind & Fire. O lema do funk é o grito de Brown: “free your ass and your mind will follow”: liberte seu traseiro e sua mente seguirá, algo como “agite-se e curta”.  (Veja e ouça abaixo o incrível Sly and the family Stone" com o hit "I wanna take you higher", que "detonou" Woodstock em 1968).





Anitta: nova musa do "funk" brasileiro
Já no Brasil funk é o nome dado a um ritmo de batida repetitiva e sem melodia, sem a riqueza dos metais, órgãos, progressões harmônicas, vozes afinadas e os passos de dança insuperáveis do funk dos negros americanos. As TVs, os subúrbios e morros cariocas e periferias – além dos terríveis sons automotivos – invadem com Lady Lu (“Soca Checa”), Mc Naldinho e Bella (“Tapinha não Dói”), e a mais recente Anitta, a dos shortinhos desfiados e reveladores, espécie de “pin-up girl” sem voz, nem açúcar nem sal. Há ainda a “Surra de Bunda”, o pornofunk (se o termo não existe, acabei de inventá-lo), do “x-rated” ao mais baixo calão, coisa de fazer corar profeta de pedra-sabão do Aleijadinho. 

Bomb-the-bass, grupo de um homem só
“Música Eletrônica”? Ah, esta é qualquer coisa que agita os “clubbers”, a galera das casas noturnas: o “Acid House”, o “Electro”, o “Techno”, o “Technopop” e outros. “Acid House” é música para danceterias gravada em estúdio com sintetizadores, samplers, baterias eletrônicas e afins. Podem ser superpostas vozes, gemidos ofegantes, gritos e uivos sensuais. Luzes estroboscópicas giram sobre as cabeças já alucinadas por uísque com energéticos, além do extasy, droga perigosa que traz grande excitação e, a reboque, taquicardia e o disparar da pressão sanguínea. São famosos a cantora Yazz e o Bomb the Bass, grupo que não é feito de pessoas, apenas foi criado eletronicamente em estúdio. Já technopop é um similar dos anos 1970, entre cujos “astros” estavam o Radio Activity e a Man Machine. 


A "Música eletrônica" dos night clubs brasileiros
O Brasil atropelou na contramão. Nada disso é Música Eletrônica, o uso de recursos eletrônicos não justifica o nome de um gênero de música séria que já existia de há muito. Thaddeus Cahill criou o Thelharmonium ainda no final do século 19! E o Theremin  (1920) é um aparelho que altera ondas de rádio por meio de um osciloscópio, cujo som fascinou até Lênin, o líder bolchevique. Em 1928, surgia o “Ondas Martenot”, inventado pelo francês Maurice Martenot, que consistia em um teclado de amplificação controlada por um oscilador por meio do movimento das mãos sobre captadores de extrema sensibilidade. O aparelho chegou a ser utilizado por Honnegger, Boulez e Messiaen, ícones da vanguarda da época. O movimento Música Eletrônica foi consolidado em 1951, em Colônia, Alemanha, por Beyer e Eimert. Por lá também passaram Messiaen e John Cage, que compôs uma peça-símbolo chamada “Paisagem Imaginária nº 1”, mesclando técnicas eletrônicas à chamada Música Concreta, que empregava montagens de recortes de fitas magnéticas pré-gravadas. A Música Concreta é associada a Pierre Schaeffer, na Paris da metade do século 20. Em 1954, Stockhausen assumiu o estúdio de Colônia, criando e adaptando mais aparelhos à Música Eletrônica, e elevando o nome da cidade alemã ao patamar de grande centro da vanguarda mundial. (Veja e ouça abaixo “Paisagem Imaginária nº 1, de John Cage: pura música eletrônica).





Doutores eruditos da "borla e capelo", na vetusta Universidade de Coimbra
Por que no Brasil querem vender gato por lebre, reinventar a pólvora ou a roda – e tudo isso com nome em inglês, para ficar mais “fashion”? Estranho e contraditório, porque esse mesmo país cunhou a expressão “música erudita”, que só existe aqui - mundo afora é música clássica, mesmo, e isso, o que é correto, deveriam equiparar. Para piorar, os rótulos de gêneros da ‘estranja’ aqui reproduzidos, diferentemente dos conteúdos originais, revelam um produto que não tem nada a ver com o original e que, no mais das vezes, é de muito pouco valor musical ou até lixo irreciclável.

[Fonte: Dicionário de Termos e Expressões da Música, do autor. SP: Ed. 34, 2ª Ed.]

sábado, 17 de agosto de 2013

GARRINCHA, ALEGRIA DO POVO (80 anos de nascimento e 30 de falecimento)


Clube do Botafogo: General Severiano, no Rio
Meninos, eu vi! Foi no final dos anos 1960, na General Severiano, onde eu fazia natação na piscina de água salgada e às vezes batia uma bola no campinho, na saída do Estádio do Botafogo. Era o time do meu coração, e podíamos ver de perto nossos ídolos: Jairzinho, Manga, Gérson, no gramado onde já havia jogado o insuperável Garrincha. Na saída do treino, os campeões autografavam, e às vezes até trocavam uma ou duas bolas no nosso campinho. Manga, um gigante brincalhão, pegava no gol por alguns minutos e nos dava a glória de deixar passar alguma bola, para o autor da façanha contar pelo resto da vida que havia cravado um gol no supergoleiro! Uma vez o acompanhamos até a rua, ele com uma mala de plástico, fazendo sinal para o táxi – sim, leitor, ídolo pegava táxi! Ver os campeões de perto, meu Botafogo, no estádio perto de casa era tudo de bom. E Botafogo nos era glorioso até mesmo na derrota!

No Esporte Clube Pau Grande
Há alguns dias revi o filme do cineasta Joaquim Pedro de Andrade (célebre também por Macunaíma), em cujo título me inspirei para encimar este artigo. Um relato comovente, bem além da narrativa documentária, um curta sobre a história de quem foi herói e ídolo até morrer, em 1983. Criado em Pau Grande, perto de Petrópolis, estado do Rio, Mané (um dos muitos apelidos do jogador) foi um feliz acaso espontâneo da pobreza.

Naquela cidadezinha de três mil habitantes praticamente havia apenas um serviço: a tecelagem, onde Garrincha trabalhou com seus amigos, de quem nunca se separou. E com ele “a classe operária foi ao paraíso” (lembrando um filme italiano do passado). Já famoso, Mané pegava o trem no Rio – de novo, leitor, campeão pegava trem! – para bater uma bolinha na várzea, como sempre fez desde criança. Na amizade, o time perdedor pagava a cerveja para o ganhador. (E era penalizado quem deixava a bola cair pela beirada do morro).


Embaixo, à esquerda: Garrincha no Botafogo
Meio preguiçoso, mesmo com o barulho das máquinas Mané conseguia arriscar um cochilo em serviço, razão pela qual o patrão queria mandá-lo embora. Porém, em cada tentativa  o chefe tinha que retroceder, pois o rapaz já despontava como promessa no futebol. Quando foi para o Rio, em 1953, Mané largou o clube Serrano (já tinha saído do Pau Grande) para juntar-se à esquadra botafoguense. Envaidecido, o dono da tecelagem colocou um retrato enorme do jogador na sala, bem ao lado do Getúlio Vargas. E Garrincha sempre retornava do Rio, humilde, para ver as sete filhas e a mulher, além, claro, dos amigos do peito.

O excelente livro de Ruy Castro
Alegria do Povo, Anjo de Pernas Tortas e O Rei dos Reis foram expressões talhadas para o jogador maior brasileiro. Sim, foi ele o homem que ergueu Pelé - era Garrincha quem desmontava defesas adversárias, preparava jogadas e entregava a bola para o santista chutar em gol. Na copa de 1962, Pelé sofrera uma grave distensão na virilha; Garrincha ficou sozinho, estrela solitária, e, desobedecendo ao técnico Aymoré - e com 39 graus de febre -, roubou o jogo, fez misérias, driblou, fintou, e fez bola passar por entre pernas de jogador adversário.



A alegria de celebrar cada gol
Fazia gols impossíveis, como aquele do lado da trave do adversário, e ainda com um jogador no caminho da bola. Gozador e irreverente, em uma semifinal deu um pontapezinho na bunda de um jogador chileno, e quase foi eliminado da Copa. Expulso do jogo, saiu de campo de cabeça erguida, sereno,  e por esse descuido recebeu na testa uma pedrada vinda da arquibancada, ao invés de correr em ziguezague, como diriam depois os críticos palpiteiros. Sem Pelé, Garrincha tornou-se rei por completo, corpo e alma do time. Assumiu a liderança, para gáudio da torcida de olhos arregalados e apaixonados, como mostram as imagens cinematográficas bem selecionadas, uma multidão de fãs nervosos e muitos desdentados.


Justiça feita: o novo Estádio Mané Garrincha, em Brasília
O grande dramaturgo, cronista e futebolista Nélson Rodrigues – o estádio do Maracanã leva o nome de seu irmão, Mário Filho -, que era cunhador de frases de efeito, vaticinou: “se todos os 75 milhões de brasileiros fossem Garrinchas, o Brasil seria maior do que a Rússia e os Estados Unidos”. Interpreto a frase de Rodrigues, e acho que, de certa forma, ele estava certo: se Garrincha tivesse sido escultor, teria sido um Aleijadinho; compositor, um Cartola, e por aí vai. Um gênio de pernas tortas, anomalia congênita, desvio de ambos os membros para o mesmo lado, que fez alguns médicos intrometidos se declararem contra seu ingresso no circuito do futebol profissional. Mas este ano o Brasil fez justiça, nomeando Estádio Nacional Mané Garrincha a arena do futebol em Brasília.


Aquele garoto pobre nasceu predestinado para ser ídolo, o que chamava as multidões para ver não exatamente o jogo, mas para ver o Garrincha. O filme de Andrade chega a arrepiar, desde a introdução, Mané correndo com a gloriosa camisa alvinegra, estrela solitária no peito. O time de maior invencibilidade da história, 52 vitórias entre 1977 e 1978, e dono da maior goleada do futebol brasileiro: 24 x 0, sobre o Mangueira, em 1909.


Gosto de saber quando meu time ganha, mas não me comovo como antes. Torço pelo Brasil nas copas do mundo, mas nem sei se gosto muito de futebol: eu gostava mesmo era do Botafogo e dos dribles Garrincha. O apelido, aliás, lhe foi dado por causa de um passarinho, o garrincha-chorona, sabe-se lá o porquê. Arrisco que nosso mito do futebol tenha sido uma criança chorona, que depois de crescida fez um país inteiro chorar. Após abandonar o futebol, Mané nos fez chorar outra vez: ele nos foi tirado cedo demais.

Veja, abaixo, algumas jogadas do Mané Garrincha:


sábado, 10 de agosto de 2013

PAI, PATER



Em uma rede social, surgiu uma discussão sobre o uso da expressão “nossa pátria”. Houve quem sugerisse até mesmo um absurdo: “mátria”, na contramão da onda machista que assola o país. Mas pátria vem do latim “pater” (terra, solo), e só passou a significar “país” na idade média. Alguns torcem o nariz também para patrimônio, embora a palavra deva sua origem à parte da terra (pater) de cada um, ou seja, sua propriedade. Patrimônio vem daquilo que na antiguidade se referia a propriedade (terra), e não ao homem, o macho. Já “mãe” veio de “mater” (vida, em latim). “Pater” e “mater”: terra e vida, assim como Adão e Eva, em hebraico. No Código Civil brasileiro, “pátrio poder” é a coleção de direitos e deveres de ambos os pais (homem e mulher) sobre filhos menores. Não sabem os mais afoitos que Adão e Eva, que em hebraico também significam terra (Adamah) e vida (Avaah) e são simbolizados por aquela moça de longas madeixas (à frente de uma árvore com uma serpente enrolada), a mostrar na mão o fruto proibido sob o olhar curioso de um rapaz, ambos com suas partes “pudorentas” cobertas apenas com folhas de plantas, momento do pecado original, entre os cristãos.


Fertilizando in-vitro
Dessas palavras surgiu uma das mais essenciais figuras familiares, que nos deram vida pela conjunção pater-mater, a terra que fertiliza e faz gerar a vida. Todos os homens e mulheres tiveram e terão pai e mãe, mesmo que técnicas modernas possam fazer a mulher conceber sem conhecer o pai de seu filho, seja pela fertilização “in vitro” ou a “barriga de aluguel”, avanços da ciência.


Lembro ainda um neologismo, tanto no jargão médico, da genética, familiar ou jurídico: o pai não-biológico, aquele que não participou da conjunção carnal para a concepção, apenas assumiu o papel de pai de um filho, muitas vezes com enorme esmero, tornando-se pai de filhos por toda sua vida. O pai adotivo, que assume o papel paternal ao lado de uma viúva, ou talvez de uma mulher abandonada por seu parceiro, aquele que adota uma criança ou ainda o padrasto, podem ser fiéis pais de coração. Pai é quem cria, no final das contas, com dedicação e esperança, os filhos que deverão continuar a missão de povoar o mundo, em nome da permanência da espécie.


“Pai”, canta Chico Buarque em “Cálice”, “afasta de mim esse cálice / afasta de mim esse cálice / de vinho tinto de sangue”. Uma brincadeira inteligente entre o cálice (calix) sagrado e o “cale-se” imposto pelas ditaduras. O pai católico é protetor à semelhança do bom Deus, Pai de Cristo. “Pater Noster quio est in ceali, santificetur nomen tuum, Fiat volunctas tua sicut in celo e in terra”: a oração católica maior ao Pai, que pede perdão por dívidas e ofensas, o Pai que traz o pão de cada dia, durante toda a vida até o inevitável fim. (Veja e ouça Cálice, gravação histórica de Chico e Milton, no video abaixo)


O Pai, para Lutero, concede e pune, ele é ao mesmo tempo bom e rigoroso. A oração matinal do religioso alemão diz: “agradeço, meu Pai do Céu, por meio de Jesus Cristo, Seu querido Filho (...). Porque em Suas mãos eu me entrego, meu corpo, minha alma e todas as coisas. Deixe comigo Seu anjo sagrado, e que o mal inimigo não avance sobre mim. Amém” (trad. livre). Lutero teme o mal que é ameaça, e pede que o Pai faça este sucumbir. O Pai-nosso católico pede diretamente a Deus. Já Lutero ora ao Pai por intermédio de Cristo. (Ora, como em “ora pro nobis” e não reza...).  

Allãh
Todas as religiões monoteístas, incluindo aí o judaísmo e o islamismo, fazem referência e reverências ao Pai; em todas elas, ele é o Senhor, e este é sempre o bom Pai. Alá (Allãh) é o nome de Deus, em árabe, e Maomé seu último profeta, que ditou os preceitos do Islã. Os que seguem o islamismo são chamados muçulmanos. Muçulmanos, assim como os judeus, consideram Cristo um dos profetas. Dirigem suas preces diretamente ao Pai, divindade máxima, infinita e única. O judaísmo também é uma religião abraâmica, e teve em Moisés o introdutor de suas leis, dos mandamentos e do Torá, sua bíblia sagrada. “Ouça, Israel, Adonai, nosso Deus, é único”. Não há ninguém além dele. A conversa dos judeus é com o Pai, seguindo preceitos religiosos que estão entre os mais antigos e intocáveis de nossa civilização. (Adonai significa “meu senhor”, porque o nome de Deus, Jhwh - Javé - não deve ser pronunciado).


Voltaire
O grande pensador francês do iluminismo Voltaire (1694-1778) propôs que “se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”, querendo dizer que sim, ele próprio cria em Deus, mas se alguém tivesse êxito na tarefa impossível de demonstrar a inexistência divina, a humanidade precisaria criá-lo. Até mesmo os ateus, para muitos, somente o são por não terem descoberto a Deus – por ironia, diz-se que também são filhos de Deus. Mais Chico Buarque (com Vinicius e Garoto): “... e eu que não creio, peço a Deus por minha gente / a gente humilde, que vontade de chorar...” (Veja e ouça o video abaixo, com Maria Bethania).



Fiz essa digressão para abordar alguns pontos bem básicos (não sou especialista na matéria, sou apenas um curioso incansável) para minha conclusão. Ela é o leito onde deito a reflexão deste artigo, no momento a que nos remetemos neste dia exato do ano aos nossos pais. Dos pais conhecidos e desconhecidos, dos que desapareceram nas guerras ou sob coturnos e torturas, e as vítimas de crimes. Dos pais exemplares aos que são pouco presentes, mas que lá têm alguma virtude. Aos nossos filhos homens, quando forem pais, e aos filhos deles, pais de tantos outros futuros pais, e assim por diante até o final dos tempos (será, então, quando nos encontraremos todos, pais?). E especialmente aos pais que hoje, por uma razão ou por outra, ou por desígnio impenetrável de Deus, não puderam comparecer para nos confortar com sua presença.

Autran Dourado, em caricatura genial de Bruno Venâncio
O Progresso em Revista
www.oprogressodetatui.com.br