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domingo, 25 de novembro de 2012

BACH E SUA CATEDRAL DE SONS - I



Johann Sebastian Bach, nascido em Eisenach em 1685 e falecido em Leipzig em 1750, foi um dos chamados três “bês” germânicos da música universal, ao lado de Beethoven, essencialmente clássico, e Brahms, já verdadeiro romântico. (Como o mapa da Europa mudava volta e meia, o que hoje é Alemanha na época de Bach fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico). Bach trabalhou exaustivamente, indo muito além de sua missão de Kantor da Igreja luterana de Santo Tomás, de Leipzig. Seu trabalho era não apenas compor, cantar, tocar órgão, cravo, violino, dirigir orquestra e coro e ensinar. Para complementar sua renda também fazia por fora seu “extra”, para ajudar a sustentar sua prole: teve 20 filhos. O próprio Bach veio de uma extensa genealogia de ascendentes musicais, havendo dezenas deles registrados. Assim como na família, o mestre de Leipzig foi prolixo em sua obra, deixando uma coleção imensa de grandes composições.
Igreja de São Tomás
Talvez por isso mesmo, assumindo esse perfil de operário da música, Bach tenha escrito, entre outras obras, três Oratórios, quatro Paixões (das quais restam duas: Segundo João e Segundo Mateus, esta última com 78 seções e horas de duração), 4 suítes orquestrais, centenas de cantatas, 53 concertos, sonatas, partitas, 48 prelúdios e fugas, inúmeras suítes, e por aí vai. Enquanto mestre de capela em Leipzig, Bach compôs uma peça para cada domingo ou feriado do ano.
Lutero
Para tomar posse do cargo, Bach passou por uma sabatina absurda, que incluía, além de música, claro, exigências como domínio de línguas e diversos outros assuntos – o que não foi difícil, pois o compositor havia estudado desde os oito anos de idade na Escola Latina de Eisenach, mesmo lugar onde Lutero, dois séculos antes, obteve sua formação. Dominava o alemão, o grego, o latim, o hebraico, além de geografia, história, lógica, prosódia, retórica e filosofia, disciplinas da rígida escola de sua cidade natal.
Partitura original da Paixão Segundo Mateus
Dentre as composições citadas, sugiro uma audição da Paixão Segundo Mateus (Bach escreveu o título em latim: Passio Domini Nostri J. C. Secundum Evangelistam Matthaeum), a agonia e morte de Cristo. A obra foi estreada na sexta-feira da paixão de 1727 na Igreja de São Tomás, em Leipzig. Para quem não conhece, vale a pena ouvir ao menos um pouco. Para quem já é iniciado, esta primeira parte leva 1h16 e foi gravada pelo Concentus Musicum de Viena e o Coro do King’s College de Cambridge, sob a regência de Nikolaus Harnoncourt, um expert no gênero (veja e ouça abaixo).

BACH E SUA CATEDRAL DE SONS - II



Aposentos de Bach, hoje assim como há 4 séculos
Necessitando de uma renda a mais, Bach escrevia para qualquer ocasião, de casamentos a funerais. Mas deixou de lado certos princípios da rígida doutrina luterana quando escreveu a um amigo, Erdman, em 1730, queixando-se da saúde pública e do saneamento da cidade, que lamentavelmente, segundo ele, haviam melhorado muito: por essa razão, começaram a ficar mais escassas as encomendas para enterros solenes e obras fúnebres. Com tamanha volúpia artística e facilidade absurda para compor, dizia que qualquer um que trabalhasse o tanto que ele trabalhou obteria o resultado que ele conquistou. Sobre as letras de seu nome - B (si bemol), A (lá), C (dó) e H (si natural), compôs nada menos do que 37 obras).
O Duque de Sachsen-Weimar
Apesar de sua enorme religiosidade –“tudo o que fiz dedico a Deus”, disse ele-, Bach às vezes esquecia os conselhos de paz divinos: era meio brigão. Não aceitava aquela baguncinha de músicos-funcionários-públicos tão típicas de algumas orquestras estatais. Certa vez, durante um ensaio, Bach travou uma discussão com um fagotista, Geyersbach, e o repreendeu perante os colegas. Na praça, partiu para cima do rapaz, brandindo sua espada no ar, enquanto o jovem músico tentava se defender com um pedaço de pau, até que a briga fosse apartada. Fora isso, ia para a cervejaria ou café de sua preferência, após os ensaios, e se esbaldava bebendo e improvisando com os músicos. Em 1717, requereu uma licença para o Duque de Sachsen-Weimar (ilustração), para quem trabalhava há 4 anos. Pedido negado, Bach tentou exigir a regalia à força, razão pela qual foi expulso do palácio e preso por um mês.
Bach com alguns de seus filhos
O compositor morreu cego e apoplético. Para tentar salvá-lo da morte, havia sido chamado às pressas um famoso médico inglês, John Taylor, mas a cirurgia foi malsucedida (dois anos depois, o mesmo cirurgião foi chamado para tentar salvar o compositor Händel, que morava na Inglaterra, mas também falhou). Pouco antes de se encontrar com Aquele a quem dedicara toda a obra, o Salvador, trouxeram-lhe o neto, filho de Johann Christian Bach e Elizabeth, para que o conhecesse. Ao genro, Johann Christoph, também músico, pediu que tomasse um papel de música e uma pena, passando a ditar-lhe cada nota, cada figura rítmica das quatro vozes com que ia construindo na cabeça o coral Com Isto me Apresento diante do Vosso Trono.
Antes de partir, pediu aos presentes que cantassem, com ele, Todos os Homens Deverão Morrer, obra coral composta sobre versos de Lutero. Finalmente, os olhos cegos brilhando, disse que em breve conseguiria ver o Senhor. Bach estava bem preparado para aquele momento, pois tempos antes, em seu livro de notas, havia escrito a seguinte dedicatória à amada esposa: “Estando tu junto de mim, irei com alegria para a morte e o descanso eterno. Como será lindo o meu fim, se tuas belas mãos me cerrarem os olhos!”
A bela Anna Magdalena Bach

sábado, 17 de novembro de 2012

A MARÍLIA DE JOSÉ DIRCEU – I

Marília, por Alberto da Veiga Guignard

Marília: “Ali Dirceu esperava / para me levar consigo / e ali sofreu a prisão. / Mandarás aos surdos deuses / novos suspiros em vão”. Dirceu: “Por morto, Marília, aqui me reputo / mil vezes escuto / o som do arrastado e duro grilhão”. Os célebres versos de Tomás Antonio Gonzaga (1744/1810), grande poeta do arcadismo luso-brasileiro nascido em Portugal, figura ímpar da Inconfidência Mineira, foram endereçados a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, sua “Marília de Dirceu”, no ano em que o poeta foi exilado e partiu para Moçambique, onde viria a morrer.


Marília é cantada como a pastora Amarilis desde Virgílio, poeta romano (70/19 a.C.),  e recontada pelo italiano Guarini (1538/1602), cuja “Marília” o havia ensinado a “amar amargamente”! O nome Marília já fora, bem antes de Gonzaga, o da musa inspiradora de um século inteiro.
Veja e ouça a diva Cecilia Bartoli, cantando a Amarilli de Giulio Caccini (1551-1618)

Dirceu: foto Abril/Veja
José Dirceu de Oliveira e Silva, nascido em Passa-Quatro, MG, é homem estudado: cursou direito na PUC/SP, embora não tenha concluído. Mas a paixão do jovem, na verdade, inclinava-se fortemente para a política. Seduzido pela resistência à ditadura desde 1965, leu Marx, Engels, Lênin e Trotski, e deixou-se encantar por Carlos Marighella, afinado com a guerrilha de Fidel e Che.
O incendiário Daniel Cohn-Bendit, "Le rouge"
Tendo como ídolo o alemão Daniel Cohn-Bendit (conhecido na França de 1968 como “Dany, o vermelho”), que ateou fogo nos estudantes de todo o mundo com seu charme revolucionário, Dirceu, então presidente da UNE, foi preso no Congresso de Ibiúna - um encontro de organização tão incompetente que se esqueceu de que o comércio local não daria conta da explosão absurda da demanda por pães, margarina e provavelmente muita mortadela e cerveja para mais de 1.200 jovens, o que chamou a atenção da polícia.
A prisão dos estudantes no congresso da UNE em 1969
Preso ali, em 1968, ele foi moeda de troca do resgate do embaixador americano Charles Burke Elbrick, ação espetacular de um grupo armado que culminou com a libertação de 13 presos políticos. (Dirceu, portanto, nunca foi “expatriado”, como diz, e sim libertado para Cuba por seus companheiros de luta).
Clara Becker,. a "Marília" de José Dirceu. Foto de  Marco Rodrigues
Em 1971, reingressou ilegamente no país, mudando de feições após uma cirurgia plástica feita em Havana. Com novos documentos, foi para Cruzeiro do Oeste, no Paraná, onde se casou com Clara Becker – com o mérito absurdo de, com frieza e inteligência, com ela ter convivido maritalmente sem revelar seus segredos, tarefa praticamente impossível para qualquer homem comum. Pois Clara foi, por anos, a Marília de José Dirceu. Clandestino, o dândi da estudantada nunca deve ter empunhado uma arma. 

A MARÍLIA DE JOSÉ DIRCEU - II

Lênin

O jovem Dirceu foi esquerdista, e sonhava em se tornar comunista, conforme ensinou o mestre Lênin: “o esquerdismo é a doença infantil do comunismo”. Dificilmente ele chegou a ser comunista, porém mesmo esquerdista já tinha traços do pior efeito colateral do comunismo: o stalinismo, o culto à personalidade, a prepotência, a censura, a manobra personalista da estudantada: “eu organizo o movimento / eu oriento o carnaval / eu inauguro o monumento no Planalto Central do país”, como festejou Caetano, em sua imortal “Tropicália”.
Pois o já adulto Dirceu inaugurou-se em Brasília, sob o manto acolhedor da democracia – regime que, para Stalin, era pernicioso para a classe operária e a causa comunista. Passados os anos, Dirceu logrou entranhar-se nos intestinos do poder, logo sendo mordido pela chamada “Mosca Azul” – aliás, título de um livro de meu primo Frei Betto (escrito após abandonar os círculos do poder palaciano). Fora do governo, dono de preciosas inside informations, Dirceu transformou-se em lobista do capital internacional que tanto combatera: a revista Piauí levou uma repórter em viagem de negócios com ele por vários países, viu as polpudas comissões para intermediar gordos contratos que manteriam por longo tempo o ex-enfant térrible muito bem de vida - não fosse a algazarra financeira do poder, no passado, que levou o ex-líder gauche às barras do STF, onde foi indiciado por graves acusações, sendo afinal condenado. Julgando-se um cidadão acima de qualquer suspeita e da lei, esbravejou que entregar seu passaporte seria uma ofensa aos seus direitos!  – esquecendo-se de que todos os demais cidadãos do país, por lei, podem ser obrigados a fazê-lo, mesmo antes de qualquer condenação.
Stalin: O "Guia Genial dos Povos"
Mas o impossível acontece: talvez Dirceu tenha sido o único no mundo que conseguiu ser ao mesmo tempo lobista do capital estrangeiro e arauto do discurso stalinista. Sim, porque Stalin foi um Luís XIV (“O Estado sou eu”) a brandir a foice e o martelo. Para Dirceu, o STF, a mais alta corte do país, que vai começar a virar a página do passado e é nossa salvaguarda moral, é “tribunal de exceção”,  seu julgamento é “político”, colocando até mesmo sob suspeição os ministros que o julgam (sob Stalin, apenas por isso ele já estaria na masmorra). E promete “recorrer” até à OEA (e quem sabe ao Vaticano ou ao Juízo Final, talvez?). Stalin foi mais coerente: cometeu genocídios, censurou, apagou das fotografias seus ex-companheiros expurgados, mas foi fiel aos seus dogmas absolutistas até o fim.
“A quanto chega a pena forte! / Pesa-me a vida, desejo a morte”, cantou o Dirceu de Marília, a Marília de um verdadeiro revolucionário, o poeta Tomás Antonio Gonzaga.
[Para quem se interessar por uma boa gravação das 12 modinhas compostas sobre poemas de Tomás Antonio Gonzaga sobre Marília de Dirceu, recomendo o CD Tempo Breve que Passaste, com a bela voz da soprano Marília (outra!) Vargas, e os excelentes Ricardo Kanji, sopros de época, Rosana Lanzelotte, pianoforte, Maria Alice Brandão, violoncelo barroco, e Guilherme de Camargo, cordas dedilhadas em instrumentos de época. O contato pode também ser feito pelo site www.mariliavargas.com]
 






















domingo, 11 de novembro de 2012

ORAÇÃO DE UM PAI - I

Vinicius de Moraes, o bardo de Ipanema

“Filhos, melhor não tê-los. Mas, se não os temos, como sabê-los?”, cantou o bardo Vinicius de Moraes, “professor de ciências naturais”, como dizia meu pai rimando, em tom de chacota. Pois não é que a genialidade aparentemente singela do poeta criou um significado muito mais amplo do que qualquer outro enunciado, qualquer redação politicamente correta da frase? Não fosse da lavra de um artista, o verso poderia ter sido escrito: “se não os temos, como sabermos?”. Mas a poesia é maior do que todas as vãs filosofias e gramáticas, ela abre caminho para múltiplos entendimentos. Filhos, nós os sabemos, e só os sabemos quando os conhecemos. Mas, perdoem-me se estou me perdendo entre os diversos sentidos das palavras, nossos filhos só os conhecemos se os temos, e mesmo assim quando os recebemos com o coração rasgado pela felicidade, pois se assim não fosse, filhos, em nosso pequeno mas acolhedor coração, como cabê-los?

Ao conhecer nossos filhos, compreendemos que eles serão parte de nossas vidas como fomos para os nossos pais, que nos souberam, e os pais de nossos pais e os futuros filhos de nossos filhos, quando todos souberem. E passamos a conhecê-los quando, bebês engraçadinhos, em um átimo de tempo fazem o passe de mágica da adolescência: tornam-se perspicazes, espertos, curiosos, questionadores, descobridores do mundo e da vida – coisas que eles fazem, aliás, exatamente como nós fizemos. Quando nos soubemos. Em determinado momento, e não se pode definir quando, abre-se a porta para o ser adulto: analítico, crítico, já ciente dos vícios e maldades do mundo, mas preparado para enfrentá-los na vida.

E salve! Eles se mostram desde já atraídos pelas utopias que povoaram as mentes do mundo desde o princípio, depois do Verbo, utopias sem as quais não faria sentido vivermos. Temos de participar das transformações, já que todas as filosofias caminham na direção de uma simples porém inatingível justificativa para a vida, e vários pensadores o fizeram na busca vã de tentar explicar o mistério sem a luz da existência divina. A vida do homem serve para transformá-la, a si própria, e à humanidade rumo ao Paraíso. Por isso tudo, queremos, sim, saber nossos filhos lutadores, independentes, guerreiros e finalmente vencedores nos caminhos que escolherem. 

ORAÇÃO DE UM PAI - II


Quem conhece Isabela sabe-a lutadora, perfeccionista, incapaz de aceitar os próprios erros - não por vaidades fúteis, mas por sua inteligência, com a qual se diverte e diverte todos os que chegam a sabê-la. Conhecemos a Isabela das letras, pois tem o punho da artista; a Isabela da lógica, que raciocina com sua dialética particular; a Isabela musicista, com suas habilidades natas. E hoje vemos a ambição com que descortinou, dentro desse conjunto todo de seu já quase maduro conhecimento, o  mundo da ciência exata. Mas cuidado, cabe desde já adverti-la, porque a ciência tudo pensa e tudo pensa que explica de forma exata, mas, diria algum poeta imaginário, na Terra ela muito pouco ata ou desata.

"O Pensador", de Rodin
Faz tempo que o homem vem perdendo as qualidades chamadas universais, tão caras aos tempos clássicos das luzes; hoje, especializa-se cada vez mais, e dentro desses cada vez mais restritos compartimentos conhece-se muito mais sobre cada vez menos, o que vem a resolver problemas cada vez menores e de menos, sem usufruir de todo o conhecimento adquirido e conquistado pela civilização em milênios. Pois então, o que desejar para nossos filhos, como realmente sabê-los e querê-los? Nós os queremos rompendo esta grande barreira, que agora começa no portão do colégio - palavra que no passado significava reunião de indivíduos notáveis e dignos -, rumo ao sonho da universidade, palavra outra que por sua vez vem de universo, universalidade, lugar plural de conhecimento e pesquisa.

Drummond
De lá, esses filhos que agora sabemos e conhecemos partirão para a vida, e torceremos para que consigam ao máximo aproveitá-la, pois, como disse outro grande poeta, o chamado poeta maior, Drummond de Andrade: “da vida nada se leva, a não ser o que se leva dela”.

Abre-se agora para Isabela o horizonte dos sonhos, os sonhos das conquistas, as conquistas que deverá realizar durante esta luta longa e inglória em que é imperioso prosseguir e vencer, para que assim vencendo ela seja feliz, e o sendo, que todos também possam sabê-la. Filhos - perdão, mestre Vinicius -, eu acho melhor tê-los. Pois é somente quando os temos que fazemos por merecê-los. Quanto à Isabela, peço vênia para terminar essa costura e concluir: folgo muito em sabê-la.



domingo, 4 de novembro de 2012

I – Wagner e a obra de arte total.

Richard Wagner

Richard Wagner (1813-1883) sempre dividiu seu tempo entre duas paixões: a música e a literatura. Mais do que isso, uniu as duas em uma terceira, o drama, ou seja, a encenação teatral. Com essa fusão, esse caldeirão temperado com sua vasta erudição, Wagner criou um termo que pode parecer palavrão, mas é a definição perfeita para suas óperas: Gesamtkunstwerk, a obra de arte total. Prolixo ao extremo, Wagner é só para os bem iniciados e aficionados da ópera - e das dele em particular -, embora todos possam ser introduzidos a qualquer momento no mundo encantado que esse gênio criou. A encenação de sua ópera “Os Mestres Cantores de Nuremberg” pode chegar a cinco horas e 20 minutos de duração. 

II – A decepção inicial, o gênio, seus ídolos e as contradições do pensamento.



A iniciação musical de Wagner foi decepcionante: Numann e Robert Sipp, professores de música do jovem, chamaram os pais do garoto para dizerem que o rapaz era muito inteligente, e poderia seguir qualquer carreira, menos em música. Pois aquele menino, ao contrário, veio a romper com as tradições e mudou os rumos da música ocidental, e de maneira tão marcante que tudo o que foi feito depois dele, na linha-mestra histórica, tinha vestígios de sua sombra, e mesmo às vezes o rosto dele estampado.
Bakunin
Com Wagner a ópera consolidou-se de vez como gênero sério, monumental e definitivo. E foi polêmico: fazia propaganda rasgada do antissemitismo, do vegetarianismo, e mesmo do budismo e outros modismos que proliferavam na Europa. Amava Nietzsche, filósofo e poeta cultor da “morte de Deus”, mas abraçou Bakunin, famoso revolucionário anarquista russo, e Feuerbach, que abriu caminho para Marx. Pois isso era Wagner, os dois lados de uma mesma moeda.

III – O preferido de Hitler e as amizades de Wagner com judeus, e a admiração destes pelo grande compositor.

Hitler na plateia da Berlin Opera Haus

Hitler soprava aos quatro ventos sua admiração pelo compositor – não apenas pela música, que adorava, mas também pelas ideias antissemitas de seu ídolo. Pois o futuro Führer, aos doze anos, assistiu pela primeira vez a uma ópera de Wagner, e nunca mais o abandonou: mesmo durante os duros anos do regime nacional-socialista e da II Guerra, apoiava e frequentava óperas, fosse em Viena ou Berlim, e se fazia seguir por sua claque militar, com aqueles garbosos uniformes de gala do exército nazista. 
Zubin Mehta e a Filarmônica da Israel
Wagner tornou-se intragável para a comunidade judaica no mundo, mas os esforços para separar a música wagneriana de suas ideias filosóficas foram enormes - à frente o maestro Zubin Mehta, que regeu Wagner em Israel, após o violinista Yehudi Menuhin (ambos, aliás, judeus) ter feito uma série de concertos de compositores germânicos para a Cruz Vermelha em Israel. Mais um judeu trabalhou para essa desmistificação, Daniel Barenboim, que até hoje mantém sua orquestra jovem East-Western Divan Orchestra, formada por jovens israelitas e palestinos árabes, trabalhando desde cedo a necessidade da convivência pacífica entre os povos. 

IV – Parsifal: uma obra-prima, patrimônio da humanidade.



O próprio Wagner já havia feito ironias quanto a essa crítica ao seu pensamento filosófico, e tanto foi que convidou o grande maestro Hermann Levi para estrear sua ópera “Parsifal”, em 1882, escrita sobre uma lenda mística de Mont Salvat, na Espanha da Idade Média, com direito ao Graal e tudo o mais. Talvez embalado em seu antissemitismo declarado, o filósofo Nietzsche atacou a obra, para ele muito “dolorista”, o que poderíamos hoje entender como “novelesca” – cheia de emoções, um acinte para ele. O título “Parsifal”, segundo o próprio Wagner, foi tirado do árabe “Parsi”, puro, e “Fal”, louco. Contradição?  Nunca: isso era Wagner. O compositor Gabriel Fauré assim sentenciou: “Parsifal é o final esplêndido e sereno de uma arte monumental. É impossível analisá-la (a ópera), pois não haveria palavras suficientes. 
Levine
É preciso escutar, escutar, escutar... e deixar-se levar pela emoção indescritível que ela nos traz”. O Prelúdio (e mais 1h42 do 1º ato!) pode ser ouvido e visto abaixo. Uma das maiores obras de arte de todos os tempos. Inesquecível. Detalhe: o regente, James Levine, também é judeu. (Sugiro tela cheia, som amplificado, uma boa poltrona, sua bebida preferida e um bocado de pipocas).

V – Os amores de Wagner e seus personagens: a arte imita a vida.

Cosima e Franz Liszt

Wagner cedo se separou de sua esposa para ficar com Cosima Liszt, filha do grande virtuose do piano Franz Liszt; ela, por sua vez, era casada com Hans Von Büllow, o primeiro regente profissional não-compositor da história. E a arte de Wagner segue a vida: na ópera O Navio Fantasma (“Die fliegende Höllander”, para quem quiser procurar no Youtube), Senta quer largar o noivo para fugir com o misterioso holandês; em “Tannhäuser”, Isabel passa por drama semelhante, e na monumental Tristão e Isolda esta última quer fazer par com seu amado, mesmo tendo ele matado seu noivo Morold, para que ela se casasse com o rei Marcos. No final, uma cena inesquecível: Isolda morre abraçada ao corpo de Tristão, cantando “no esplendor dessa luz eterna, em pleno êxtase eu me perco e me regozijo”. Dramas semelhantes aconteceram com outros pares de óperas de Wagner, como Eva e Stolzing, Brunita e Siegfried, Sigilda e Siegmund, e por aí vai. 

VI – “O judaísmo na música”. O falso judeu e a enormidade de uma obra completa.



Mendelssohn
Em 1850, sob pseudônimo, Wagner publicou o ensaio O Judaísmo na Música, atacando seus contemporâneos Mendelssohn e Meyerbeer, ambos judeus, acusando-os de serem “alienígenas” da pura cultura alemã. Wagner desde sempre foi impiedoso com Mendelssohn, mesmo após este ter-se convertido e acrescentando um nome cristão ao final, passando a chamar-se Felix Mendelssohn Bartholdy. Apesar disso, em sua autobiografia o compositor escreve que com o semita francês Samuel Lehrs “dividiu uma das mais belas amizades da vida”.
Mais contraditório ainda, Wagner disseminou a ideia de que seu pai, Geyer, tinha ascendência judaica (pior: Wagner tinha dúvidas sobre essa paternidade). Contudo, ficou provado que essa ascendência não era verdadeira, e que a ideia teria sido uma maluquice de Wagner, conforme Nietzsche, no ensaio O Caso de Wagner. Após ler o texto “Um Ensaio sobre as Desigualdades da Raça Humana”, de Gobineau, Wagner disse que a humanidade estava sendo destruída pela miscigenação entre raças “superiores” e “inferiores”. Contraditório, antissemita e até falso judeu, Wagner mudou o rumo da música clássica ocidental, tornando-se o grande divisor de águas entre os românticos que o precederam e os modernos que o sucederam. Deixou para a humanidade um dos maiores e mais completos conjuntos de obras de arte de todos os tempos, um tesouro universal que perdurará até o final dos tempos.
Montagem de Tristão e Isolda