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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

FLAGELO, ASCENSÃO E GLÓRIA DO SAMBA


Muito antes de Ernesto dos Santos, o Donga, gravar um samba pela primeira vez (Pelo Telefone, 1917), o jornaleco satírico recifense O Carapuceiro (“Periodico Semper Moral e Só Per Accidens Politico”), de tiragem irregular¹, em 1848 estampou esses versos de Frei Miguel de Sacramento Lopes Gama, dono, editor e único redator: “Aqui pelo nosso mato / qu’estava então mui tatamba / não se fazia outra coisa / que não a dança do samba”. Malvisto pela classe branca rica, o ritmo dos negros chegou a ser alvo das chefaturas: “Tava na roda do samba / quando a polícia chegô: / ‘vamo cabá co’esse samba / que seu delegado mandô’”.
Em 1878, um pouco ‘americanizado’, segundo observou Vasco Mariz em A Canção Brasileira², o samba já era menos rejeitado pela sociedade rica. Um cartaz no skating-rink, o ringue de patinação de um dancing club - tudo em inglês, soava mais fino - trazia o seguinte reclame (“Verdadeiro samba de cana pura!”): “Venha ao rink ver o samba / corra antes de patins / tome boas pitadinhas / e depois grite caramba!” A empresa Hadwin & Williams patrocinava e a própria fina sociedade, dourando seus preconceitos, amenizava sua culpa na segregação racial ao introduzir baianas com seus quitutes, quindins e requebros em seus locais de lazer - “macumba pra turista”, diria Mário de Andrade. Talvez porque as baianas vinham mostrar sua arte, e sendo ‘importadas’ não iriam querer se imiscuir nos assuntos de outras plagas.
A baiana, quadro da poeta Cecília Meireles
Até 1923, segundo Jota Efegê³, o que ele chama de ilegitimidade continuava, também no Rio, mas ao se “mostrar (...) em teatrinho ali armado, o samba com toda sua autenticidade”, trazendo grupos de baianas. O carioca assistia, então, ao “verdadeiro samba à baiana, bem diverso do que estava acostumado, adaptação deturpadora de ritmo e coreografia”. Ou seja, o samba ‘importado’ da Bahia, desde os rinks introduzidos pelos recifenses nos idos de 1878, era ‘o verdadeiro’, mais palatável ao perfil daquela classe média carioca do que aquele outro samba nativo, mais fiel às raízes africanas - gênero, porém, que teria sido mal adaptado e era visto pelos puristas como corrompido.
Patinadores de "skating rinks"
As raízes do samba moderno fincam-se no Brasil colônia, com a chegada dos escravos negros. E, claro, nos lugares onde havia maior concentração deles, principalmente grandes centros como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. No Rio, até pelas suas características geográficas, população espremida entre morros, o samba urbanizou-se, enquanto em São Paulo sofreu influência até dos italianos e do caipira, ao par que na capital baiana conservou-se mais ligado à sua origem afro, porém de certa forma ‘sanitizada’ pela mescla com o maxixe e o lundu. Daí essa tendência, antes da Abolição, de o samba ser ‘importado’, com direito a baianas e tudo o mais, como nos tempos dos skating rinks e dancing clubs. (Equação política do problema: o samba vindo de fora, com quindins, quitutes e requebros, era a novidade que ajudava a marginalizar o gênero carioca urbanizado, que, sofrendo os problemas locais, poderia ser um campo minado, um veículo popular que não agradaria as classes abastadas e autoridades).
Entrudo no Rio, 1884, por Ângelo Agostini
Nos primórdios carnavalescos, os grandes ritmos cariocas, esclarece J. R. Tinhorão4, eram a marcha e o samba. Ele entende que esses gêneros foram responsáveis por botar em ordem o carnaval, uma bagunça sem controle desde o entrudo, palavra vinda do latim introitus, um festejo pagão de origem greco-romana que chegou ao país com os navegantes vindos dos Açores, durante a colonização.  Detestado pelas autoridades e famílias ‘de bem’, o entrudo era algazarra e lambança, os festeiros atirando farinha, e, com espécies de grandes seringas, água suja e até mesmo urina em direção às pessoas5. Por outro lado, na marcha e no samba estribilhos de cepa africana mesclavam-se indistintamente aos cucumbis e afoxés, às modas sertanejas, polcas e bem-comportadas valsas.
Chiquinha Gonzaga fez sua marcha Ô Abre Alas (1899) abrir caminho para um desfile mais organizado. O gênero ainda demorou um pouco para se consolidar, com instrumentações mais interessantes e músicos mais bem preparados. Chiquinha, que não era nenhum padrão de comportamento para uma moça da época, talvez fosse o meio de campo entre o bom-mocismo das elites e as classes mais baixas.
O luxo da Beja-Flor ("quem gosta de pobreza é intelectual"),
disse o carnavalesco da  escola Joãosinho Trinta.
O rancho (beija-flor) teve origem junto com os ‘ternos’ nordestinos das comemorações natalinas do fim do século 19. Misturava influências portuguesas e africanas que deram início às folias, que por sua vez culminariam, em 1930, no surgimento das escolas de samba. E o ritmo não era alegre e cheio de vida como o das marchas de Chiquinha; era, sim, mais indolente, arrastado, carregado, e deu origem à marcha-rancho. Com essa roupagem, as escolas foram mostrar-se nas avenidas, logo cedendo aos desfiles pasteurizados de luxo com estrelas da maior rede de TV, em 1965, gestada no raiar da ditadura. O samba galvanizou as classes média e alta e tornou-se evento do povo feito pelo povo, com o próprio suor e alegria, embora para deleite dos mais ricos.
O começo de tudo
1) "Em que dias certos sairá esse periódico? Sairá o pobrezinho quando Deus o ajudar, e conforme a generosidade que com ele quiserem ter os padrinhos, que são os Srs. leitores”. 
2) SP: Nova fronteira, 1985. 
3) Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira. Rj: Funarte, 2007. 
4) Pequena História da Música Popular Brasileira. RJ: Círculo do Livro, sem data.  
5) DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de Termos e Expressões da Música. SP: Ed. 34, 2004.

sábado, 19 de outubro de 2019

WALT DISNEY E A FANTASIA DOS NÚMEROS

Praxinoscópio

Já por volta de 1860 havia engenhocas que induziam à percepção de movimento em desenhos.  Em 1882, mais um avanço, o belga Joseph Plateau construiu um aparelho que dotava figuras simples de movimentos repetitivos. Outras invenções se seguiram, como o praxinoscópio (1876), de Charles-Émile Reynaud, um aparelho ótico que simulava ação de figuras por meio de um disco rotativo que alternava imagens; ao girar, sobrepostas à frente do observador, causavam a impressão de estarem vivas. Em 1909 o desenhista norte-americano Windsor McCay criou o que seria o primeiro filme de cartoon feito à mão, e em 1919 lançou o primeiro desenho animado, O Naufrágio do Lusitânia.
Walt Disney criou a primeira animação sonora em O Vapor Willie (1928), que introduziu a música como elemento fundamental tanto na trilha sonora quanto como ferramenta para a perfeita integração entre os movimentos das figuras e sons.
Betty Boop
Enquanto Max Fleisher e Grim Natwick faziam sucesso com a sexy Betty Boop, garota estilo Belle Époque com direito  a cinta-liga, Disney surgiu como o grande criador a partir de Pato Donald e Pateta, e consolidou-se na pole-position com os grandes sucessos Branca de Neve e os Sete Anões, de 1937, Pinnocchio, 1940, Fantasia, também de 1940, Dumbo, 1941, e Bambi,  1942.
É importante lembrar que o desenho animado só chegou ao chamado ‘estado da arte’ quando adotou a técnica do cinema - os ‘24 quadros por segundo’ -, ou seja, 24 desenhos em sucessão de variações milimétricas, selecionando 1.440 quadros para cada hora de filme, um trabalho artístico e braçal sem precedentes no cinema.
Branca de Neve e seus gnomos músicos
Com Branca de Neve, sobre um conto de fadas dos Irmãos Grimm (1812), Disney lançou-se a uma grande empreitada: o primeiro desenho de longa-metragem da história. A produção foi de tal envergadura que até uma enquete pública foi realizada para escolher o nome de cada um dos gnomos, os sete anões: Grumpy (Zangado), Happy (Feliz), Sleepy (Soneca), Bashful (Dengoso), Sneezy (Atchim), Dopey (Dunga) e Doc (Mestre). A Disney Co. investiu, na época, USD 1,5 milhões, em valores atualizados estratosféricos R$ 107,5 milhões. Em contrapartida, a fita rendeu, de início, USD 8 mi, R$ 860 milhões hoje, resultado de um trabalho extenuante de 750 artistas e um total de 2 milhões de desenhos dentre os quais foram pinçados a dedo os 188.440 que resultaram no produto final.
Leopold Stokovski
A obra-prima de Disney, contudo, viria em 1940 com Fantasia, animação dividida em oito segmentos, cada um integrado a obras sinfônicas diversas regidas por Leopold Stokowski, à frente de uma das mais importantes orquestras do mundo, a Philadelphia Symphony.  A PSO estava no auge de sua enorme influência sobre a música sinfônica americana: a turma de Schoenbach, fagote, Jules Baker, Flauta, Marcel Tabuteau, oboé, e o contrabaixista Torelló (todos professores do Curtis Institute), e gravou uma trilha sonora da maior perfeição, começando pela Toccata e Fuga em Ré menor para órgão, de Bach, em versão orquestral do próprio regente – e por imposição dele; o Quebra-Nozes, de Tchaikovsky; O Aprendiz de Feiticeiro, de Dukas (sobre um poema de Goethe); a Sagração da Primavera, de Stravinsky; a Sinfonia Pastoral, de Beethoven; a Dança das horas, do balé de Ponchielli; A Noite do Monte Calvo, de Moussorgsky e a Ave Maria, de Schubert – durante a qual os cinemas liberavam aroma de incenso.
Técnicos de som sob o palco  da PSO
Pioneira na gravação em estéreo e com recursos do inédito Fantasound, a Disney efetuou diversas alterações acústicas na sala, além de dispor técnicos sob o palco para cada um dos nove canais utilizados. Na estreia, o filme percorreu 13 cidades, uma espécie de caravana.
A cada segundo, 24 desenhos foram sincronizados à perfeição com a música. Não apenas braços e pernas, também os olhos, a expressão, as roupas e os cenários têm movimentos naturais, trabalho que alcançou o 23° lugar em vendas de toda a história do cinema, vídeo-games e correlatos.
Girassol e a "centaurette"
Nos anos 1960, tempos de movimentos antirracistas com Luther King Jr. em ascensão, trechos da Sinfonia Pastoral foram cortados: Girassol, um pequeno centauro negro, polia as patas de Otika, uma charmosa “centaurette” branca. Foi o suficiente para a Disney receber uma avalanche de protestos.  Parte da cena foi removida mas os originais ficaram guardados, intactos.
Outra polêmica: em vista da receita de USD 120 milhões (R$ 956 mi corrigidos) em novas mídias, como o VHS e o MMDC, a Orquestra da Filadélfia abriu em 1990 um processo reivindicando direitos conexos à Disney Company. Na ação, pleiteava sua parte no lucro, até que quatro anos depois as partes chegaram a um acordo fora dos tribunais.
Trabalho de efeito com as sombras dos músicos da orquestra
Fantasia tem início exatamente com essa orquestra. Jogos e efeitos de silhuetas, músicos acomodando-se nas cadeiras e aquecendo seus instrumentos. Após uma preleção do crítico Deems Taylor, apresentador de cada segmento, é chamado ao pódio o maestro Leopold Stokowski, que dá início à execução da  grandiosa Toccata e Fuga em Ré menor, obra de Bach para órgão em arranjo instrumental para orquestra sinfônica de autoria do próprio maestro.
O filme tem a duração de 126 minutos, custou R$ 167,7 mi (corrigidos) - ou R$ 22.182 por segundo. Porém, acima dessa dança de valores monumental está a perfeição da obra-prima. Um trabalho de formiga com tecnologia precária, se comparada à dos dias atuais - artesanato 100% analógico de grandes proporções cujo resultado final não encontra páreo nas superproduções digitais das animações modernas. Nem em números nem em qualidade.
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Segue o link para o filme completo: https://www.youtube.com/watch?v=r7gLlIv4ito&t=548s