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sábado, 25 de maio de 2013

TROTE, SAIOTES & ROCK’N’ROLL



O "Rodeio"
A Justiça acaba de multar em R$ 20 mil alunos acusados de trote violento na UNESP de Araraquara (2010), onde deveriam se formar profissionais em áreas como filosofia, ciências e letras. O “trote” consistiu em escolher as calouras “gordinhas”, colocá-las de quatro, e, após segurá-las, cronometrar quanto tempo cada veterano conseguiria se manter na “montaria”. Fotos da época mostram a manifestação animalesca dos veteranos - sendo que em uma elas, com detalhe maquiado por computador, um dos rapazes estava sem calças e cueca. A cena terminou com indenização de valor ridículo, sem condenação criminal. A humilhação imposta às meninas no chamado “Rodeio das Gordas” perpassa todas as instâncias, e reabre a discussão sobre o momento por que passa a sociedade brasileira.

Marilena Chaui 
Abro espaço para a filósofa Marilena Chaui, da USP, em recente debate no qual ela exibiu seu invejável conhecimento: colocou em um caldeirão o filósofo holandês Spinoza (séc. 17), cuja obra foi basicamente dedicada ao estudo da ética, misturou no forno de seus conhecimentos da dialética  (Hegel, Marx, Wittgenstein, a quem interessar), e depois despejou o resultado sobre os presentes de maneira espetacular. Fez uma análise da tão decantada  “nova classe média”, bandeira de luta de seu próprio partido, e disse que tal classe não existe, é simplesmente uma pequena burguesia que quer ser classe média. E mais: que a classe média paulistana é a de sempre, a das “Senhoras de Santana”, a que deu seu "ouro contra o comunismo”, campanha do regime militar, e que hoje se perpetua, reacionária. Marilena  rotulou de maneira fulminante esses jovens: “proto-fascistas” (ou seja, um arremedo, projetinho de fascistas).

A brilhante exposição de Marilena foi uma aula magna sobre assuntos tabus, e uma crítica ao mito que ela considera inexistente, a “nova classe média”. Os novos pequenos burgueses, completou, só querem ‘parecer’ classe média, e para isso, concluo, objetivam o diploma – razão pela qual preferem pegar carona em uma bolsa do  PROUNI  em faculdades particulares fracas da capital, onde ganhar um título é sempre mais fácil do que tentar via cota nas públicas, onde o “canudo” sai de graça, mas a “ralação” (no dialeto jovem), sai muito mais cara.

USP de Saia: maio de 2013
Peguei emprestada a exposição da Marilena Chaui como ponte entre o animalesco “rodeio das gordas” e outro acontecimento recente – agora, um protesto inusitado, porém da mais saudável riqueza e criatividade. E isso aconteceu na USP da Marilena, dia 16 de maio. Passo a descrever o episódio, exemplo de rara solidariedade de veteranos a um calouro por ataques à sua opção pessoal. Vitor Pereira, que ingressou no curso de moda, no dia 24 de abril resolveu ir à aula de tênis, camiseta e... saias. No Campus da USP, pareceu não ter atraído mais do que olhares, alguns com certo quê de reprovação. Porém, em uma rede social da Internet, foi hostilizado e ofendido por colegas, o que causou comoção entre um grupo de veteranos. Também via rede social, foi marcado um protesto diferente, sem balbúrdia, juvenil e meio tropicalista: no dia 16 de maio, em solidariedade, rapazes vestiram saias e garotas ternos, ação que se espalhou pela Escola Politécnica e até a prestigiosa Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, ambas da USP. Houve reflexos em outros estados do Brasil, e o protesto simbólico pelo direito de se vestir como se quer mostrou que a classe média mais esclarecida tende a prevalecer, ao menos nos melhores redutos da USP, sobre a tal classe média “proto-fascista” de Marilena. A criação do protesto “USP de saias”, traz o repensamento do conceito de universidade -  de universo, universalidade, como bem disse o texto postado na rede na convocação: “A universidade é um lugar de liberdade de expressão. O uso de uma peça de vestuário não deve ser recriminado”, e convida a todos para “um dia de reflexão sobre os estereótipos do gênero (...) que todos usem algo que fuja aos padrões impostos pela sociedade”. Pois trocaram rodeios e trotes por uma brincadeira saudável e questionadora, prova de que é possível, sim, a juventude ser partícipe ativa de uma comunidade mais justa!

A manifestação nos remete mais longe: a saia masculina, tão reprovável aos olhos de muitos quanto foi no passado quase recente o uso de calças por mulheres. A escritora Aurore Dupin, que teve um rumoroso caso com o virtuose pianista polonês Fréderic Chopin, vestia ternos e usava um pseudônimo masculino, George Sand (ilustração ao lado). Mas o que poderia chocar a irreverente Paris do século 19?

Centurião romano
Mais atrás, podemos fazer outra digressão, agora à Roma antiga dos valentes gladiadores e centuriões de saias, ou às origens do “kilt”, saiotes usados por homens desde o século 16, na Escócia, Irlanda e outros países – o próprio príncipe Charles, do país de Gales, volta e meia surge com o saiote, que tradicionalmente é usado sem “underwear” (roupa de baixo).
Príncipe Charles e seu Kilt



1956: Flávio de Carvalho e seu saiote
Mas voltemos ao Brasil, onde saiote masculino também não é novidade. O modernista Flávio de Carvalho, um artista de formação admirável, arquiteto amigo de Le Corbisier, pintor que frequentou Picasso e Dali, escritor, poeta, músico e sabe-se lá o que mais, lançou, em 1956, após uma série de artigos sobre moda no “Diário de São Paulo”, o que ele chamou de New Look: um saiote pregado, blusa de náilon com mangas bufantes e chapéu transparente. Assim vestido, com meias do tipo arrastão e papetes nos pés, caminhou nas ruas do centro de São Paulo, “obra” que intitulou “Experimento nº 3”. Não sei se houve bullying (que em português deveria ser “bolir (com alguém)”, mas em inglês fica mais chique.  (Ou seria chic, do francês?).

Na Alemanha, pai acompanha filho que vai à escola de saia
A novidade está no contexto em que o saiote aparece, e na juvenil solidariedade de universitários de cabeça bem feita a um calouro de ideias próprias. O que vem a somar à discussão do momento, o preconceito contra a opção de cada um, que repercute em diversos segmentos da sociedade em meio a uma crise ideológica sem precedentes, ao menos que eu tenha visto. Termino citando um primo – que, aliás, usa saias, hábito religioso de sua ordem -, quando um jornalista o questionou sobre as reações à nova (então) dança, “lambada” (na verdade, um ritmo derivado da Salsa latina): ele declarou que “o pecado é muito mais do que uma simples dança de corpos colados”. E do que um saiote à toa e a opção do rapaz também, completo eu.


sábado, 18 de maio de 2013

DO IDIOMA PORTUGUÊS À GEOGRAFIA NA MÚSICA POPULAR



O sub do sub: Waleska Popozuda
São de petrificar as letras (ou algo parecido) das músicas de hoje. É claro que quem ouve “A gaiola é puro ecstasy / (...) sai pra lá seu falastrão / bota sua calça e sai voando”, de uma certa Valeska Popozuda, ou qualquer uma do tal de Naldo, todas impublicáveis, vê rasgar de cima a baixo a gramática e a língua portuguesa. Daí, não é de se estranhar que escrevam por aí na Internet ou mesmo em papel coisas do gênero “num to nen aí prus cara, mano,  eles num tá nen aí ou aki, mais isso é o brasil”. Que fazer se esse é o dialeto falado e escrito por boa parte da juventude? Pior: por que muitos estão na escola e continuam a falar assim?

O conhecido professor Pasquale Cipro Neto usa, com frequência, letras de Chico e Caetano para explicar nosso idioma. E já que precisamos adaptar nossas escolas ao ensino da música, ainda que de forma embrionária, por que não empregar as boas letras para que, aliadas ao canto ou à audição, levem a uma melhor compreensão do nosso idioma? Um exemplo: nas redondilhas do Chico, em Paratodos, ele alterna a inclusão ou omissão do artigo definido “o”: “O meu pai era paulista / meu avô pernambucano / o meu bisavô mineiro / meu tataravô baiano...”. (Veja e ouça o clipe abaixo). Pasquale explica que, em inglês, não é permitido usar artigo (“the”) antes de possessivo (“my”): não existe “The my house is big”, diz-se apenas “my house is big”. Mas em português pode ser chique, como brincou o Chico. Pasquale vai explicando outras tiradas inteligentes do cantor – não por acaso, filho de historiador e parente torto do filólogo Aurélio.



Petrolina, o Velho Chico e Juazeiro
Com Caetano, que o professor considera admirável –  acrescento eu, de cultura invejável -, Paquale investe na geografia do baiano: “Dorme o sol à flor do Chico, meio-dia / tudo esbarra embriagado de seu lume / dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia / só vigia um ponto negro: o meu ciúme / (...) Velho Chico, vens de Minas / (...) Juazeiro, nem te lembras dessa tarde / Petrolina, nem chegaste a perceber /sobre toda estrada, sobre toda sala / paira, monstruosa, a sombra do ciúme”. Pasquale lembra que Juazeiro, na Bahia, e Petrolina, em Pernambuco, são cidades separadas pelo Velho Chico, apelido do rio São Francisco, o que as faz “rivais” (do latim “rivus”: regato, ribeiro). É o “Ciúme”, título da canção. Mais ainda, Caetano, com “Velho Chico, vens de Minas...”, lembra que o rio nasce em Minas Gerais, completando sua lição de geografia musical. E declara com sua verve: “sobre toda estrada, sobre toda sala / paira, monstruosa, a sombra do ciúme”.

Castro Alves
Com sua formidável criatividade, Caetano busca em outro poeta baiano, Castro Alves, inspiração óbvia para sua letra Um Frevo Novo. Disse Castro Alves, em Ao Povo o Poder: “A praça? / a praça é do povo / como o céu é do condor”. Em seu frevo, Caetano toma emprestados os versos, cantando: “A Praça Castro Alves é do povo / como o céu é do avião”. Pronto, já teríamos aí material para cantar e para entender Caetano, trazer à cena o poeta Castro Alves, num “pulo do gato”, um truque de cena. Alunos jovens querem interesse, querem ser despertados para algo que os atraia, algum tipo de desafio à sua inteligência. Dar aulas sem vida, mostrar um fraco espírito de liderança sem atrair para o que é bom e acessível, é ajudar o aluno a trilhar o caminho da indiferença rumo à ignorância. É mais fácil para ele ver TV, achar que é coisa de macho ouvir funk carioca em alto volume no som automotivo, cantar coisas repetitivas e sem sentido que prescindam do uso do cérebro ou apenas curtir ser “o tal” cantando palavrões e sacanagem.


Chuva, Suor e Cerveja
Continuando com mestre Caetano, como a ele se refere Pasquale, podem ser exploradas diversas figuras de linguagem em diversas letras do baiano. Muitas vezes, é a aliteração, que o Houaiss define como “repetição de fonemas idênticos ou parecidos”: “acho que a chuva ajuda a gente se ver” e “a gente se embala / se embora / se embola / e só para na porta da igreja” (em Chuva, Suor e Cerveja). E mais, sugere o som da chuva com a aliteração dos sons “ch” e “j”: Acho, chuva, ajuda, gente se ver. Ser poeta assim não é para qualquer um. O frevo contagia, os alunos poderiam cantar e ainda analisar o português escorreito de Caetano. Com a criatividade livre do professor em classe, dividindo com sua turma o conhecimento humano.

E tome um pouco de história também, em músicas do Chico como Ana de Amsterdã, da peça Calabar, que este ano completa 40 anos de no triste papel de primeira censura total a uma obra de teatro pelo regime de exceção. E falando em teatro, lindas músicas também tem A Gota d’Água, bela versão do compositor para Medéia, tragédia milenar de Eurípedes transportada para um subúrbio carioca - texto em que, a quatro mãos com o falecido Paulo Pontes, ele faz um retrato da tragédia grega, mas com roupa atual: “Pra mim / basta um dia / não mais que um dia / um meio dia / Me dá / só um dia / e eu faço desatar / a minha fantasia / (...) Pois se jura, se esconjura / se ama e se tortura / se tritura, se atura e se cura / a dor / na orgia...”. E segue Chico, pela voz da Bibi Ferreira (na peça, de cuja estreia e primeiros 8 meses participei), bordando um emaranhado de duplos sentidos que para meio entendedor baste, além do requinte no uso das figuras de linguagem (no caso, a sequência de terminações em “ura”). É para o professor mostrar e explicar, encontrar elos com a boa prosa e a boa poesia, e fazer cantar. (Veja e ouça abaixo Bibi cantando Basta um Dia). E daí puxar os versos geniais de Fernando Pessoa: “Em horas inda louras / lindas Clorindas e Belindas, brandas / brincam nos tempos das Berlindas / as vindas vendo das varandas”.




Paulo Freire: 41 títulos Honoris Causa no exterior
- mas e aqui??? - 
A música brasileira é pródiga em ótimos exemplos da rica língua portuguesa. Além de Caetano, Chico, Jobim e o irreverente Gilberto Gil, há Cartola, Noel e Aldir Blanc, donos da mais fina veia poética. Fazer cantar é o que há de melhor. Por que as aulas não se tornam mais divertidas, os professores de todo o Brasil mais livres no cumprimento de suas disciplinas, mais próximos da boa cultura, da boa arte e do bom português? Por onde andam os ensinamentos do saudoso Paulo Freire? Ainda há tempo de se evitar o colapso final em nosso idioma. 

sábado, 11 de maio de 2013

É DIA DAS MÃES, EU RESOLVI LHE PERDOAR



Matéria do Mário Prata para o Última Hora
“Vou abrir a porta / mais uma vez pode entrar / é dia das mães / eu resolvi lhe perdoar. / Deus me ensinou praticar o bem / Deus me deu essa bondade / vou abrir a porta pra você entrar / mas não demore / que a outra pode lhe encontrar...”. É basicamente apenas isso a letra de Cuidado com a Outra, de autoria do Julinho da Adelaide, compositor de súbito sucesso nos anos 1970. O jornalista (e futuro autor de telenovelas) Mário Prata pediu permissão ao redator Samuel Wainer (dono do então importante jornal carioca Última Hora) para entrevistar o novo astro. Mas não havia fotos, contatos, nada. Por fim, ele descobriu que o autor dessa música e de “Acorda, amor” entre outras, era um outro. (Quanto à “outra” da letra, ficou apenas a insinuação).

Veto a uma letra de Chico que fala da Bolsa de Valores
O “outro”, no caso do Julinho da Adelaide, respondia pelo nome de Chico Buarque, compositor muito perseguido pela censura naqueles anos: hábeis açougueiros das artes passaram a vetar sistematicamente qualquer música que tivesse a assinatura do compositor carioca. Daí, surgiram Julinho e seu Cuidado com a Outra. Prata foi encontrar-se com o Chico, que lhe apresentaria Julinho da Adelaide. Na casa do compositor, o jornalista aguardou, até que desceu, segundo costa, o próprio Chico, a caráter de malandro de chapéu panamá e tudo, para se apresentar ao Mário Prata.


Dorival Caymmi
Dorival Caymmi, baiano verdadeiro (já que existe a “falsa baiana”), cantou para outra “mãe”, a de todos os baianos, a do Gantois: “Ai, minha mãe, Menininha do Gantois (...) / A estrela mais linda, hein / tá no Gantois / e o sol mais brilhante, hein / tá no Gantois / (...) e a Oxum mais bonita, hein / tá no Gantois”. Essa Oração de Mãe Menininha está impregnada da cultura afro-religiosa, como aliás toda a cultura baiana: “Olorum quem mandou essa filha de Oxum / tomar conta da gente e de tudo cuidar / Olorum quem mandou eô ora iê iê ô...”. Mãe Menininha de Gantois (1894-1986) foi uma Iyalorixá, filha de Oxum, e seu terreiro, mesmo após sua morte, continua na mesma rua em que morou (e que hoje leva seu nome, em homenagem). Veja e ouça Caetano, Dona Canô e Bethânia em coro cantando pela mãe de todos os baianos - Oração à Mãe Menininha de Gantois:



Caetano Veloso, conterrâneo de Dorival Caymmi, deixou casa e mãe para tentar a vida: “No dia em que eu vim-me embora / minha mãe chorava em ai / minha irmã chorava em ui / e eu nem olhava pra trás”. Dona Canô, mãe de Caê e Bethânia, deve ter sentido a dor de ver ir-lhe o filho, sem destino. Aliás, com destino sim, mas sem destino de vida algum na capital, partida também descrita por Dorival em “peguei um Ita no norte / pra vir pro Rio morar / adeus, meu pai, minha mãe / adeus, Belém do Pará”.

John Lennon
Já John Lennon, em uma de suas fases de redescobertas, crises e dúvidas, todas geradas durante seu relacionamento com Yoko Ono, cantou, em “Mother”: “Mãe, você me teve / mas eu nunca tive você / eu precisei de você / mas você não precisou de mim (...) / Mamãe não se vá / Papai, volte pra casa”. John Lennon foi abandonado pelo pai, mas, embora bem tratado pela mãe, Julia, pouco conviveu com ela – houve apenas um relacionamento frequente até a morte materna em um acidente de automóvel. Julia, título de outro sucesso de Lennon, está permeada de questões: “metade do que digo não quer dizer nada / mas eu o digo apenas para alcançá-la / Julia (...) / Quando eu não posso cantar meu coração / eu posso apenas falar com minha mente, Julia”.

Outra referência de Lennon à mãe seria em “Let it be”: “quando eu me encontro em tempos de apuros / Mãe Maria vem a mim / dizendo palavras de sabedoria / deixa estar”. Segundo alguns, talvez criando sobre a letra, a referência de Lennon à “Mother Mary” seria simplesmente à marijuana, maconha. Porém, com certeza, mesmo, provavelmente não há nada.

Michael  Jackson e sua mãe
Já em seus tempos mais divertidos, mais juvenis, junto a Paul, George e Ringo, o tema aparece com outra roupagem, em “Your Mother Should Know”: “Vamos todos nos levantar / e dançar uma canção / que foi sucesso antes de sua mãe nascer / apesar de ela ter nascido há muito, muito tempo / sua mãe devia conhecer / sua mãe devia conhecer”. Michael Jackson se aproveita de “Mother”, do Pink Floyd, e despeja sua infância infeliz e angústias na sabedoria que enxergava em sua mãe:“Mãe, você acha que eles vão despejar a bomba? / Mãe, você acha que eles vão gostar dessa canção? / Mãe, você acha que eles vão destruir meus testículos? / uuuaaa, mãe, será que devo erguer um muro?”.

Antonín Dvorak
Na música clássica, não faltaram declarações, e entre as mais emblemáticas está uma de Antonín Dvorak (1841-1904), “Canções que minha mãe me ensinou”: “... nos dias já esquecidos / muitas vezes de suas pálpebras / de onde lágrimas caíram. / Agora eu ensino meus filhos / cada compasso melodioso / muitas vezes as lágrimas flutuam / muitas outras elas escorrem / do tesouro da memória”. Recomendo esta gravação antiga com a voz impecável da diva Joan Sutherland:

Boêmia e Morávia (em laranja)
Dvorak, tcheco, apesar de ter morado nos EUA por quase dez anos, nunca abandonou suas fortes raízes: sua obra revela os traços claros da Morávia e de sua Boêmia natal. No caso dessas “canções”, a influência da música cigana das tribos locais sobre Dvorak é notável. E da cultura hebraica - claro, as judias são famosas por seu instinto maternal –, vem “My Yeddish Mother” (“Minha mãe judia”), com letra de Avi Koren:
“Minha mamãe judia  / eu preciso dela mais do que nunca / minha mamãe judia / eu gostaria de beijar aquela sombrancelha vincada / (...) e pedir perdão pelas coisas / que eu fiz para fazê-la chorar”. Uma versão linda e, claro, bastante fiel à melodia, foi gravada pelo grande violinista israelense 
Itzhak Perlman, com acompanhamento de orquestra:

De todos os credos, raças e origens, celebremos, hoje, dedicando músicas dos mais diversos gêneros a todas as mães do mundo!


 

sábado, 4 de maio de 2013

MICHELANGELO E A CONTEMPLAÇÃO MATERNA



Autógrafo de Michelangelo
A Pietà (Piedade) de Michelangelo, trabalhada entre 1498 e 1499, é uma das mais iluminadas obras-primas da humanidade. A escultura, à perfeição nos menores detalhes, escavados no melhor mármore de Carrara, fora comissionada por encomenda do cardeal francês Jean de Bilhères, embaixador do Rei de França na Santa Sé. Com a morte do prelado, após a conclusão da obra, esta ficou do túmulo do próprio Bilhères, na Capela de Santa Petronilla do Vaticano, e somente em 1749 chegou ao seu destino atual, a primeira capela à direita de quem entra na Basílica. É a única obra que o artista assinou, e o teria feito em um momento de insegurança: uma faixa que cruza o peito de Maria sobre seu ombro esquerdo tem o nome do autor gravado: “Michaelangelus Bonarotus Florentinus Faciebat” (do latim, “feito por Michelangelo Buonarotti, Florentino” – foto acima).

Michelangelo
Michelangelo já teria ouvido que competidores  tentavam copiar-lhe a obra, ainda em execução; porém, o autógrafo que utilizou à guisa de proteger-se causou arrependimento posterior no artista, que teria considerado aquela assinatura um arroubo de vaidade pessoal. Após séculos, a Pietà recebeu seu mais duro golpe: um psicopata, em 1972, adentrou a capela que abriga a estátua portando uma marreta, e com ela tentou destruir a obra, aos gritos de “eu sou Jesus Cristo”, provocando-lhe vários danos, tirando lascas de seu precioso mármore que, em parte, foram  furtadas por visitantes com interesses mesquinhos. O vândalo, com certeza, sentiu-se inconformado com a perfeição materna, a maior grandeza da obra (cabe aí talvez uma interpretação psicanalítica para o gesto insano). Após minuciosos e longos reparos e restauração, a Pietà retorna à capela de origem, mas passa a ser protegida por um vidro resistente a balas de grosso calibre, vândalos e criminosos diversos.


Rosto de Maria
H
á muito o que dizer sobre a visível juventude de Maria na Pietà, que, quando da morte de Cristo, teria algo perto de 50 anos de idade (considerando que o Salvador morreu aos 33). A face eternizada de Maria é de extrema e juvenil beleza, e traduz muito mais a castidade de um olhar quase adolescente do que o sofrimento indizível de uma mãe que perde seu filho adulto após longas sevícias e torturas de inimaginável crueldade. Essa juventude, que aparece também nas mãos – aliás, a marca indelével do avanço da idade feminina -, mãos suaves, lindas e puras, é a concepção da imagem que Michelangelo  quis traduzir: a dor da mãe ainda jovem pela perda do Filho, trocada pelo artista por uma profunda contemplação.

Compondo ainda esse quadro suavizado ainda mais por um silêncio imaterial extraordinário ao se ver obra, sobre o colo da Pietà resta um Salvador martirizado, seviciado e crucificado – mas foram-lhe poupados os sinais de violência em grande profundidade impostos pelos seus algozes. Pelo contrário, são sutis as referências visuais aos pregos nas mãos (e não orifícios rasgados, como seria de se esperar de mãos perfuradas que sustentaram um corpo inteiro) e o discreto ferimento na costela direita, assim como o semblante de um jovem como se estivesse dormindo: surge aí um corpo de Cristo mais doce, um homem jovem, não um retrato cruel de um flagelo sangrento e uma morte cruel. A juvenil Maria tem na obra propositalmente longas pernas, até um pouco desproporcionais ao corpo, porém em tamanho perfeito para acolher o Filho em conforto, junto ao ventre materno.




Lucas, Evangelista
E
m uma das citações mais conhecidas da Bíblia, mais especificamente no Evangelho segundo Lucas, médico de formação nascido na Antióquia, antiga Síria, as traduções dos três grandes papiros (datados do final do século 2) divergem aqui e ali. Há neles uma passagem relatada pelo evangelista com referência ao mesmo período bíblico, da descida da cruz à ressurreição, cuja primeira parte é retratada por Michelangelo em sua Pietà, texto do evangelho a que irei me referir logo adiante. Claro, daquele manuscrito arcaico, passando por diversas versões e traduções, como a Bíblia do Rei James e outras, é de se esperar o desvirtuamento do sentido original do texto, à vista do acúmulo de versões e superposições que terminaram por distorcer diversas partes deste e de outros textos bíblicos. Diz Lucas, naquele versículo (10, 38-41): “...respondendo, Jesus disse-lhe: Marta, Marta, estás preocupada e ansiosa com muitas coisas, mas apenas uma é necessária, e Maria escolheu a parte certa, a qual não lhe será tirada”. Cristo não diria “a melhor parte”, conforme surge em diversas traduções populares, versões que levam muitos a crer que a parte de Maria, segundo Ele, foi “a mais confortável”, ou a mais
aprazível.

Frontispício da Bíblia de Ferreira de Almeida
Na tradução da Bíblia de João Ferreira de Almeida (1628-1691), a primeira feita diretamente dos cinco idiomas originais para o português, pode-se ler neste mesmo trecho “a boa parte”, enquanto algumas outras versões ainda se referem à “parte certa”. E qual seria essa parte, na Pietà de Michelangelo? A contemplação do Cristo que será revivido, do próprio filho retirado da cruz e já sem vida, e o mais sublime gesto maternal, momento retratado pelo artista para nos fazer compreender que aquele Cristo no colo da Pietà é também um jovem, nos braços de sua jovem mãe.


Manuscrito original: "The Cloud"
Do século 15, é mais ou menos bem conhecido hoje um manuscrito feito originalmente apenas para uso interno dos conventos da ordem dos cartuxos, fundada 4 séculos antes. O título da obra é “A Nuvem do Desconhecimento” (do inglês arcaico “The Cloude of Unknowyng”), a meu ver mal traduzido aqui no Brasil como “A Nuvem do Não-Saber”. Tenho uma cópia do antigo texto inglês, cujos ensinamentos dirigem o iniciado à não-materialidade, ao não-pensamento, escritos que são um guia para a contemplação espiritual, levada a um estado da mente próximo à abstração da matéria e da existência. É uma obra importante para quem se interessa pelo assunto, apesar da tradução não muito apurada para o português. O desconhecido monge, dedicado à contemplação e à pobreza, ensina em seu texto a um discípulo (que existiu ou não) o caminho desse não-conhecimento, e o faz à absoluta semelhança dos versículos de Lucas (10,38-42) sobre Maria: a contemplação em comunhão da alma com Deus.


O rosto de Cristo, na Pietà, sob a contemplação de Maria
P
ietà, Michelangelo, Lucas, monges cartuxos, todos convergem para a contemplação como forma de contato do espírito humano com o divino feito homem na Terra, trazido à luz por uma mulher escolhida “in virtù”. Entre o artista, o evangelista e o monge, há uma comunhão com o espírito da Pietà, aquela que contempla como sua parte boa e certa o Filho retirado da cruz, corpo inerte retorcido sobre suas pernas e seu braço direito, enquanto o esquerdo, elevando à mesma altura a mão semiaberta, insinua uma posição de lótus, produto de caso pensado ou não da visão genial de Michelangelo. O espírito da Pietà, tão majestosamente traduzido pelo gênio florentino, é o mesmo que se multiplica no coração de todas as mulheres e se revela no momento em que trazem ao mundo seus rebentos, quando lhes é mostrado o caminho para o seu maior, verdadeiro e profundo mistério: ser mãe.