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domingo, 24 de fevereiro de 2019

UM FURACÃO CHAMADO BIBI


Chegamos os seis quase juntos naquele teatro enorme, vazio, eu já havia tocado bastante ali. Fomos para o nosso lugar, afinamos, arrumamos as estantes, preludiamos, papeamos como em qualquer conjunto. Logo chegou o Dori Caymmi, proseamos um tanto, ele pegou umas partituras novas e, naquela bagunça, passou a escrever arranjos sem usar o piano, transpondo de cabeça as partes, uma a uma, até as de sax alto e tenor, sem uma partitura geral! (Aí o porquê do Grammy Latino e da indicação ao Grammy Internacional). Ao piano, Luizão Paiva, sax, Zé Nogueira (do segundo não me lembro), violão, Vital Farias, bateria, Joca Moraes, eu no contrabaixo. Pronto, hora de ensaiar a vera, Dori com a palavra. Assim nasceram os arranjos das músicas do Chico para a Gota D’Água, peça de 1975. Sob o medo (não, já não cabia temer) de um possível veto da censura logo na estreia (no ano anterior, o gen. Bandeira havia mandado a PF impedir Calabar, de Chico e Ruy Guerra, 'subversiva ode à traição').
Eurípides: 480-406 a.C. 
A peça era baseada na tragédia grega Medeia, de Eurípides (480-106 a.C.), ambientada em um conjunto habitacional pobre do Rio. Creonte, papel de Osvaldo Loureiro, era o todo-poderoso da comunidade, e sua filha Alma, a jovem e linda Bete Mendes, seduzia Jasão, marido de Joana, a Medeia. Na batuta da cena, o milanês Gianni Rato, gênio da cenografia, da coreografia e tudo o que se desenrola sobre um palco. Em sua bagagem, a Meca da ópera, o La Scalla de Milão, Maria Callas. Atores no palco, bailarinos, músicos a postos, ensaios, tudo sob os olhos críticos do Chico Buarque e Paulo Pontes, autores da peça, e os argutos Dori e Rato. As cenas, o clima, os movimentos, tudo ia tomando forma e espaço em um emaranhado orquestral.
(Folha PE)
Um dia percebi que observava tudo a Sra. Abigail Izquierdo Ferreira (a mãe dela, Aída, era argentina, e tinha esse sugestivo prenome operístico). Meio franzina, baixinha, mal saída dos 50 anos. Modesta, simpática, logo fez amizades, armada apenas com seu carisma. Bibi Ferreira, atriz com formação em Londres, cantora, diretora, artista vinte vezes premiada, musicista e dona de uma simpatia que conspirava com sua luz natural e estelar. Dia daqueles, sentou-se ao piano, nem tinha tempo de estudar mas sabia muito bem do teclado. Cabelos escorridos, braços magros, um corpo que não escondia a idade (nem se incomodava com isso, haveria de colecionar tantas décadas de vida). O palco luzindo à presença dela.
Chico e Paulo
Chico e Paulo Pontes, marido de Bibi na época, escreveram o texto como se ela fosse a única. Cantava muito bem, exprimia na face e no corpo um drama para lá de intenso. As juras de vingar Jasão, marido e traíra, traidor com o beneplácito do chefão canalha, Creonte: “pra mim / basta um dia / não mais que um dia / um meio dia”. A plateia seria conduzida à tragédia, um crescendo enorme, como em uma sinfonia do romantismo tardio. Medeia envenena os filhos e se mata. No longo monólogo final, apenas um canhão, aquele pequeno foco redondo e intenso de luz circundando Bibi, já atirada no chão, o resto era breu, silêncio. Logo nas primeiras récitas não resisti, fui fazendo um coração da corda mais grave abafada, tum-tum, tum-tum. Daí esmorecendo, como se a vida fosse desvanecer na pulsação audível, logo suave até sumir, logo estancada em silêncio. Havia sido a gota d’água.
Momentos divertidos, papos de bastidor, molecagens de músicos. Certa vez, com apenas uma longa camisa social masculina, Bibi chegou para nós músicos com a delicadeza de sempre. Vim lhes pedir um favor (diabo, o que seria? Tocar mais baixo?). Disse que estava meio afônica, não conseguiria chegar aos agudos com a garganta ruim, se a gente poderia baixar em um semitom a tonalidade da música. Pânico. Era impossível, havia 2 saxes, instrumentos transpositores, baixar todos um meio tom de lá menor, loucura tentar, estava tudo escrito, ia desarranjar os arranjos do Caymmi, tudo escritinho com esmero.
Resolvemos encarar a fera, enganar a Bibi. E haveria de ser só entre nós e na cara de pau. Vamos tocar a música como está, decidimos. Hora da cena, canta a Bibi “...se tritura, se atura e se cura a dor / na orgia”. Uma voz gutural, uterina, em desespero, sangue nos olhos, cravou todos os agudos. Na hora dos aplausos, ao final, do proscênio Bibi fez um gesto elegante para nós seis, talvez já sete, talvez já fôssemos sete, talvez Bibi tivesse percebido e nos fosse cúmplice. Guardando os instrumentos, a peça havia terminado outra vez, o Teatro Tereza Rachel apinhado, já íamos saindo, chega a Bibi, o que ela ia fazer, ralhar conosco, dar um pito de mãe, xingar? Não, ela veio agradecer e me lembro bem das palavras, obrigada, meninos, vocês são uns amores, disse. Assoprou um beijo sem batom de rosto lavado, sem maquiagem, linda.
Tum-tum, tum-tum do coração, e sai da cena Bibi, sem termos tido a chance de explicar o ocorrido, nossa consciência já pesava como um tijolo. Mas estrela é estrela, estava acima disso, receberia tudo de coração, com um sorriso, pensamos. Se um dia nos encontrarmos, Bibi, ou seja, a Medeia, Joana, com que roupa for (a vida de todos os papeis era dela mesma), My Fair Lady, se nos encontrarmos eu conto, se é que você não sabe. Você, que além de todo o já dito e redito é e sempre será magnânima, nos perdoará (mas será que percebera  a travessura?).
Nesses últimos dias publicaram tantas biografias, reportagens, não me caberia acrescentar nada. Só este depoimento e a prazenteira confissão póstuma da traquinagem.  

domingo, 17 de fevereiro de 2019

VIOLA, MINHAS VIOLAS


Meia volta e volta e meia, instrumentos musicais surgem com nomes diversos, a depender da origem, do lugar onde vivem e até de seus formatos e construção, como fossem pessoas. Daí vários nomes para cada um, como um sujeito com vários apelidos. (E há também instrumentos com o mesmo nome, como Joões ou Marias musicais). Na bem desenhada ascendência dos instrumentos, eles adquirem personalidades, vozes e roupagens nos conformes da época ou região em que foram adotados (ou são dados por nascidos).  
Andrea Amati, professor de Stradivari
Às clássicas, tocadas com arco: a viola das orquestras e quartetos de cordas é um instrumento semelhado a um violino, pouco maior. No séc. 16 o luthier Andrea Amati organizou a família dos então recentes instrumentos, a viola ocupando o lugar que seria o da voz contralto (por isso, ‘alto’ em algumas partituras), segunda voz feminina no coral - soprano, contralto, tenor e baixo. O som flui doce como voz de mulher, só que grave e encorpado como a aparência do instrumento, é mais voix de poitrine (voz de peito) do que o violino, primeira voz e geralmente a estrela condutora da melodia-rainha.
Viola Bastarda
A antiga viola que deu origem a essa família é um instrumento com finos trastes de tripa animal espaçados ao longo do braço, e teria se espalhado pela Europa via Espanha, durante o Renascimento, ao final da ocupação mourisca na Península. A viola da braccio (braço) e a da gamba (perna) trazem suas variantes, como a viola d’amore, a arciviola e o violone, de voz mais grave e quase um contrabaixo, o popular rabecão, grande rabeca. Mas pobre da viola bastarda, surgida na Itália barroca, ainda nascitura já sofria com esse nome, embora de belo e virtuoso som!
Viola d'amore: por baixo das cordas dedilhadas, as cordas simpáticas
A viola d’amore era uma prima da viola da braccio. Tinha seis cordas dedilhadas à esquerda e até sete de simpatia, ou seja, vibravam soltas ao som das primeiras. Daí o som cheio, harmonioso, simpatias tornando-se quase amor, o d’amore já diz. A viola da spalla (ombro, em italiano), do tamanho de um pequeno violoncelo, era tocada com apoio no ombro do executante, e não raro amarrada ao cinturão do músico, para que pudesse participar de marcha, desfile ou honra pública. A viola di fagotto foi uma das inúmeras invenções dos artesãos da época. Algumas de suas cordas de tripa eram recobertas por metal, daí um som mais rasgado, que achavam assemelhar-se ao do fagote da época, que lhe deu o nome de pia.
Haydn, por J. F. Rigaud
A viola pomposa, final do período barroco, possuía cinco cordas e também era prima da viola da braccio, mas mesmo com alcunha de pompa não deu de vingar. A viola paradone italiana (séc. 17-18) tinha um irmão, baryton, tocado como a viola da gamba entre as pernas do músico. Eram seis ou sete cordas arqueadas e doze a vinte que oscilavam por simpatia, soltas, ao ressoar das que eram tocadas pelos dedos da mão esquerda e arco do músico. Haydn escreveu mais de 150 trios com o instrumento, dever de ofício de servo da arte da corte: o mecenas do compositor, o príncipe Esterhàzy, tinha no baryton/paradone seu instrumento favorito, e por missão de apadrinhado o próprio Haydn tocava junto com ele, trazendo o tcheco Antonín Kraft ao violoncelo - por prazer, um pouco de ouro ou puxassaquismo. Já havia tantas novidades a escolher, algumas invencionices duravam mais e outras, mais doidivanas, não.
Arpeggione (Strings Magazine)
Com o classicismo, essas invenções ameaçavam a escassear, mas no romantismo decolou o arpeggione, parecido com o violoncelo mas com seis cordas e trastes ao longo do braço. Schubert dedicou-lhe uma brilhante sonata que leva o nome do instrumento, peça hoje tocada por dez entre dez bons violoncelistas e os melhores contrabaixos e violas.
Viola de arame (Escola M-Arte)
Saltando no tempo e no mundo, interessa de coração a nossa riquíssima viola de arame ou caipira, tão popular no Brasil, às vezes também dita bandurra ou machete, ou ainda viola brasileira, buriti, cabocla, cantadeira, de bambu, de cabaça, de cacho, chorona, de dez cordas, ligina, de feira, de Queluz (proximidades de Lisboa!), nordestina ou sertaneja.  
Braga, Portugal, linda.
Em cada lugar há variantes de cinco ou seis ordens duplas de cordas, filhotes locais gestados ao longo de tantas jornadas, as origens convergindo à viola braguesa (de Braga, norte lusitano). Essa viola chegou, ainda rudimentar, à terra de Camões, na enorme bagagem cultural dos invasores mouros, cresceu e tomou corpo durante os 711 anos de ocupação da Península Ibérica.  Por aqui, a descendente dessa braguesa pé-vermeio é a estrela da moda de viola, do cururu, da música caipira, do sertanejo real e de um mundaréu de outros gêneros. 
Grupo Violas de Arame
Dita em geral viola de arame pelos diferentes rincões do país com todos esses nomes e apelidos, ela se utiliza, a depender do lugar e do estilo, de afinações diferentes, ao sabor do executante - dono da viola em cada região é como fosse dono da bola. Sempre com o número possível de cordas soltas e a sensibilidade e parcimônia dos dedos da mão esquerda, seduz pelo prazer de sua ressonância especial, as cordas duplas quase como dois instrumentos soando perfeitamente juntos. Algumas dessas afinações são chamadas cebolinha, cebolão, guitarra, natural, boiadeira, rio-abaixo e maxabomba, podendo ser alteradas ao prazer do bem tocar, do jeito almejado e do cantar ao calor ou ao frio de onde fez sua morada.
[Viola Minha Viola é um programa já de uns 40 anos da TV Cultura, e foi comandado pela insubstituível Inezita Barroso (1925-2015), caipira com os dois pés fincados no chão. Todos os nomes da música de raiz brasileira por lá passaram uma, duas ou dez vezes. Com a viola e os caipiras, o programa é patrimônio de nossa cultura mais verdadeira.]


domingo, 10 de fevereiro de 2019

UNIVERSIDADE OU FACULDADE?

A Academia de Platão (Rafael Sanzio, 1.510)

Para não nos alongarmos voltando a Platão (387 a.C.) e todo o longo caminho percorrido até hoje, vale recorrer ao Houaiss, muito confiável para breves consultas. Diz o verbete universidade: “Instituição de ensino e pesquisa constituída por um conjunto de faculdades”. E sobre faculdade, esclarece: “Instituição de ensino superior (isolada ou integrante de uma universidade”). A exemplo, na USP há quase trinta Faculdades, Escolas e Institutos, cada um com número considerável de cursos.
Mais de uma vez ouvi referências a alguma ‘universidade de música’. Trata-se de algo inexistente, pois por definição vimos que uma universidade engloba diversas áreas do conhecimento. Faculdades às vezes agrupam mais de uma área, e parecem sonhar a ampliação rumo a um patamar maior, a universidade. Exemplo é um curso de música que criei e dirigi em SP, trabalho extenuante iniciado em 2005, hoje referência entre as particulares. Essa faculdade também congrega cursos de agronomia, direito e administração.
exame.abril.com
Criar um curso com o aval do MEC é como um trabalho de Hércules. Mínimo de doutores, mestres e, enfim, bacharéis, as classes seguindo um modelo padrão para todas as áreas e a pouca compreensão do ministério sobre a especificidade musical. Há entraves como aulas individuais de instrumento em um quadro de classes e horários a ser preenchido dentro de certas regras fixas; faz-se de conta que todos os alunos do curso terão aulas sozinhos na mesma hora. Após a formatura da 1ª turma, outra visita do MEC autorizará ou não o curso – no caso mencionado, foi nota máxima.
Universidade de São Paulo (Jorge Maruta/USP imagens)
Na esfera pública, conheço os meandros da USP, da qual me aposento em breve,  onde há uma ligeiramente maior autonomia. Mas a Fuvest... Bom, a adequação da Música às regras da Fuvest teve, na medida do possível, algumas poucas melhoras, mas é nonsense pensar a música inserida em um universo tão multifacetado e hermético. O problema maior hoje ainda não é só o do ingresso de alunos, mas o de professores. Eu havia chegado com um diploma de peso dos EUA, mas após poucos tempo houve uma publicação da reitoria no Diário Oficial, em nome do ‘interesse acadêmico’, dando-me prazo para fazer o mestrado.
Prof. Emérito Sábato Magaldi (arquivo pessoal)
Mas qual mestrado? Não havia tal curso em música! Como alguns colegas, pensei, escolhi e fui aceito em Artes Plásticas. Confesso que aproveitei, mas quando o Departamento de Música emplacou seus três doutores e abriu o curso de mestrado foi lá que eu concluí o título. O mesmo se deu com o doutorado: não havia ainda tal curso em música. Lá fui eu me preparar, recuperar o francês (o inglês já tinha sido o idioma no mestrado), e a sorte de ter como orientador o saudoso e imortal da ABL Sábato Magaldi. Quando chegou a vez do doutorado, foi como a forma musical ‘variações sobre um tema’: repeti a dose do mestrado, e quando o curso foi estabelecido no Departamento de Música mudei-me outra vez para lá.
(Fondazione Stauffer)
Hoje, o título de doutor é pré-requisito para ingresso nas públicas. Isso traz maior peso aos Departamentos, mas tolhe o ingresso de alguns dos melhores profissionais das Artes: sequer poderiam se inscrever estrelas internacionais como Nelson Freire e Antonio Meneses, só para citar dois nomes reverenciados internacionalmente, sem falar em tantos excelentes músicos brasileiros ou estrangeiros que residem aqui. Um hipotético aluno, ‘encadeando’ diplomas, mesmo sem ter feito apresentações de porte ou tocado em orquestra de primeira no currículo, logo se torna apto a disputar uma vaga. Essa rotina de títulos é desconhecida no exterior: meu professor de instrumento mal se formou bacharel e já era o orientador mais procurado, como solista do naipe na Sinfônica de Boston. Isso, aos 23 anos de idade.
Eleazar de Carvalho com Marguerite Long: Légion d'Honneur
Eleazar de Carvalho, nosso maestro maior, foi titular da famosa Yale University tendo apenas um bacharelado. Recebido com todas as honras e a presença do presidente brasileiro, chegou agraciado com sua cátedra e o título de doutor honoris causa da própria Yale.  

Harvard University
O renomado educador Caio Moura Castro publicou na Veja (fev. 2005) “Harvard, quem diria, Acabou no Irajá”, parodiando a peça “Greta Garbo, quem diria...”, de Fernando Melo. Disse ele que certo dia Larry Summers, presidente de Harvard University, teria assistido a um desfile da Beija-Flor e se apaixonado. Logo trouxe mala e cuia, comprou casa em Nilópolis, convidou os melhores professores, criou ali uma Harvard tropical. Mas o MEC, ao inspecionar, acabou com o curso por estar em desacordo com as ‘regras’. Essa alegoria de Moura Castro não é cômica, é trágica.

Prova escrita da Fuvest
Agora, o pior de tudo: nas escolas superiores dos EUA - conheço mais de 30 delas -, a prova maior, decisiva, não é uma Fuvest, e sim tocar para uma banca. No Brasil, ao equiparar um vestibular de Música ao de Engenharia, perde a primeira: ao contrário dos candidatos aos outros cursos, que quase nada sabem de suas profissões almejadas, alunos de música devem chegar prontos, ou seja, tocando bem. Não se faz um violinista ou um pianista em quatro anos, a universidade apenas lapida o aluno que já tem bom desempenho. Daí a necessidade dos bons conservatórios, escolas de música ou ótimas escolas preparatórias, como as de algumas instituições americanas.
Jordan Hall, New England Conservatory
As melhores escolas superiores de música dos EUA têm 250 (Curtis), 800 (New England) ou 1.000 alunos, às vezes um pouco mais. E cômputo geral são muitas, de todos os níveis. A diferença se sente na hora da duríssima competição, que tem princípio com o ingresso no curso até uma boa colocação como músico profissional. Aos jovens músicos brasileiros, digo sempre que devem escolher bem seu professor, e uma boa universidade ou faculdade. Diploma só pelo diploma serve para começar a galgar etapas para um dia chegar a doutor e prestar concurso para lecionar em uma boa universidade. Ou para ter direito a prisão especial.


sábado, 2 de fevereiro de 2019

APERTEM OS CINTOS, O IDIOMA ENCOLHEU!


O filme Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu! (Airplane!), com Lloyd Bridges (Aventura Submarina), Leslie Nielsen (O Destino do Poseidon) e outros, lançado em 1980, foi um enorme sucesso. Aquele humor tipicamente americano da Paramount, gags e esquetes de praxe. Mas em alguns momentos não dava para segurar a gargalhada, como no esquete em que dois jovens negros conversavam naquele ‘dialeto’ bem Bronx. Ao lado deles, duas freiras, uma intrigada com o idioma em que os vizinhos estariam conversando e outra, a quem a primeira indagou: do you speak jive? (jive seria aquele dialeto, também sinônimo de curtição). A segunda respondeu yes, e passou a ‘traduzir’ a conversa para o inglês.  
Rua do Harlem, NY
O dialeto complicado dos viajantes nova-iorquinos ia ao extremo de quase não se entender o que estavam dizendo. Mas ao andar e ouvir o que se fala pelo Bronx ou o Harlem de NY, ou ainda o Roxbury de Boston e outros bairros ou distritos com cultura própria pode não ser lá muito diferente. Nem vale tentar aqueles tradutorezinhos eletrônicos, o aparelho pode dar um tilt (apresentar problema eletrônico), palavra que também pode significar algo como ‘me deu um troço’, ou 'confundi-me'.
As redes sociais e programas de mensagens do mundo inteiro, como o Facebook e o WhatsApp, se encarregam de disseminar dialetos, slangs (gírias) e corruptelas, do inglês ao português. No celular, cuja tela e teclado são mínimos, os jovens usuários tornam-se  virtuoses em escrever rápido. E curto. (Disseram-me que os menores de 25 usam os dois polegares para digitar, e os mais velhos costumam ser mais lerdos, usam um indicador). Palavras são encolhidas, por força de uma desconhecida urgência, e abreviaturas são formadas aos borbotões, como vdd (verdade), fora aglutinações de palavras, como em ‘talquei?’ (está ok?). Eis uma brevíssima lista dessas curiosidades minimalistas, elaborada com a ajuda dos universitários, meus filhos:

agr, agora
asap, as soon as possible, o mais rápido possível
bj, beijo
blz, beleza
DIY, do it yourself, faça você mesmo
ctz, certeza
dms, demais
dmr, ‘demorô’
fds, fim de semana
gnt, gente
hj, hoje
Idk, I don’t know, eu não sei;
lol, laughing out loud, rindo alto
mds, meu Deus
omg, oh, my God, oh, meu Deus
pdc, pode crer
pls, please
plmdd, pelo amor de Deus
pq, por que
qdo, quando
qq, qualquer
sry, sorry, desculpe
tlg, tá ligado?
tbm, também
tc, falar com
U R, you are, você é, você está
ur, your, seu
U2, you too, você também
vdd, verdade
wtf, what the fuck (não publicável)
wth, what the heck, que diabo.

Miguel Oniga, Regina Casé e eu (Jornal do Brasil, 1971)
Lembrei-me de um episódio da época de colégio. Não, claro que não havia essas traquitanas eletrônicas, existia apenas o mundo para inventar. Eu e um amigo, Miguel Oniga, músico e dublê de ator com uma passagem pela Globo e do qual nunca mais ouvi falar, inventamos uma brincadeira, à qual demos o nome de ‘neobabelismo’ – brincando com Babel, cidade da Mesopotâmia onde, segundo o Gênesis, 11, foi construída uma torre alta a se perder de vista, para que seu cume tocasse os Céus. Detalhe: toda a humanidade – leia-se: os povos conhecidos na região – falava um único idioma. Deus confundiu suas línguas, a construção da torre foi embargada e espalhou os homens por toda a face da Terra. Diz a lenda popular que aquela construção era tão alta que começou a desmoronar, e todos rolaram e tiveram suas línguas torcidas na queda, daí a multiplicação de idiomas e dialetos.
Street dance: hip-hop
À parte a beleza do Gênesis, voltemos ao neobabelismo. A nossa brincadeira era tornar a compreensão de um texto impossível, ou escrever muitas linhas e não dizer quase ou absolutamente nada. Ou ainda pegar um texto e complica-lo de tal forma que só nós o entenderíamos, combinando palavras inventadas. “A conspurcação etológica é uma oclusão hiperbólica da ontologia meridiana”. No caso, nada.  
Cena de rua: Bronx
Os dialetos tribais, como os dos guetos de NY, são uma forma de os grupos se organizarem em núcleos fechados para se defenderem. É claro que falar só slang (gíria), como no episódio das freirinhas do filme, não é para qualquer um. A tribo do hip-hop (‘salta-quadril’, algo assim) e seu dialeto, surgidos no South Bronx, formam uma cultura à parte: MCing e DJing, graffiti, danças como o b-boying e body-popping. Ali tudo é hive – colmeia, agrupamento de pessoas, dizem all hive, no jive. Esta última, palavra surgida na origem de certo tipo de blues dos anos 1940.

Sly & The Family Stone. Radio City Music Hall, 1974
Um cidadão não se insere em uma comunidade dessas sem conhecer-lhe o dialeto. São grupos enormes, e hoje bem espalhados, com linguagem e sotaques próprios, formando núcleos bem coesos. No início dos anos 1970, em NY, fui assistir a um show do histórico Sly & the Family Stone, ícone do funk real. Escoltado por Yinca, um baixista negro do Harlem, senti-me à vontade. Mas não entendia nada do que falavam ao meu redor, às vezes uma ou outra palavra, mas o meu vizinho de poltrona me ajudava. Parece que entre o Bronx e o dialeto da estenografia eletrônica de hoje ergue-se de uma outra torre de Babel mundial, tudo em nome da modernidade e da globalização – embora o mundo desde que existe seja um globo. 

Mudou a velocidade de transmissão de informações e com ela o que anda nas cabecinhas dos usuários desses gadgets ou gizmos. Globalização, palavra tão desgastada, está em voga na TV, nas universidades e nos bares, e chegou com os economistas a Davos 2019. Globalizemos. Mas querida, não encolha nossos idiomas, parodiando outro título.