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sábado, 29 de março de 2014

BEETHOVEN E O TESTAMENTO DE HEILIGENSTADT

Heiligenstadt em 1900
Heiligenstadt é um subdistrito de Viena, na Áustria, belo e arborizado como todas os vilarejos germânicos. Heiligenstadt quer dizer cidade sagrada, mas já havia indícios da religiosidade local desde o início do século 12, quando era conhecido como São Miguel, ainda antes da chegada do cristianismo.  A vila remonta a mais de cinco mil anos, e há vestígios de assentamentos romanos. Séculos depois, com um comércio de vinhos bastante próspero, passou a ser um dos assentamentos mais ricos da região.

Viena em 1900
Viena era o grande centro musical durante o período clássico, e Beethoven para lá se mudou, pois teria mais público e melhor renda. Lá, mudou-se dezenas de vezes, ora abandonando suas moradas, outras expulso pelos senhorios. Não era um inquilino muito fácil, pois era desorganizado, incomodava com seu fortepiano (precursor do piano moderno), era carrancudo, malvisto  e de poucos amigos.

Heiligenstadt em 1890
Apesar de tudo isso, era um nome famoso, coberto de glória. Prova disso é que, devido ao sem-número de mudanças de residência, um amigo, decepcionado com as cartas escritas e não recebidas, queria saber, afinal, qual seria o endereço correto, para que pudesse enviar suas cartas. O compositor: “escreva apenas ‘Beethoven, Viena’”. Em 1802, Beethoven seguiu os conselhos de seu médico e mudou-se para Heiligenstadt, lugar mais tranquilo, pastoril, diferente da capital. Lá, tentou debelar uma crescente e doentia neurose, seu drama pela perda da audição e um desejo recorrente de suicidar-se.

O testamento de Heiligenstadt
No final dessa estadia, em 6 de outubro de 1802, Beethoven escreve uma carta para seus irmãos Carl e Johann, um dos relatos mais candentes da história da humanidade. Guardou-a em sua escrivaninha, e nunca enviou aos destinatários. Foi descoberta apenas em 1827, após sua morte, e entrou para a história como o Testamento de Heiligenstadt, desabafo dramático de um ser humano no limiar do desespero final.
Confuso, o Testamento menciona o irmão Carl, mas onde deveria estar o nome de seu outro irmão, Johann, havia um espaço em branco (ver foto abaixo com a “omissão” assinalada em vermelho) – o que gerou diversas teorias, sendo que em um documento que deveria produzir efeitos legais, espelharia certas preferências familiares do compositor. Teve 19 anos para cometer a ameaça de suicídio, sem nunca fazê-lo.

O cabeçalho do testamento (detalhe do espaço em branco no círculo vermeljo)
“Ó homens que me consideram intratável, insociável, como estão equivocados! Não conhecem as razões profundas que me levam a parecer assim. (...) Vivo, há seis anos, padecendo de uma triste doença (N. do A.: a surdez), agravada pela ignorância dos médicos. Vivo na ilusão da cura deste mal, que, se for curável, ao menos levará muitos anos. Nascido com um temperamento vivo, fui sendo obrigado a me isolar em uma vida solitária”.

Artefatos de Beethoven para auxílio da audição 
E prossegue: “como aceitar esse defeito, logo um sentido que em mim deveria ser mais perfeito do que nos outros? Não me é possível dizer a todos ‘falem mais alto, gritem, estou surdo’! Devo viver em um exílio”. (...) “E que humilhação quando alguém percebia o som distante de uma flauta e eu nada conseguia ouvir! Ou quando escutavam o canto de um pastor e eu nada ouvia! Esses incidentes me levaram ao desespero e pouco faltou para que, com minhas próprias mãos, eu encerrasse minha existência. Mas pareceu-me impossível deixar este mundo sem que houvesse concluído a missão que me confiei”. 

A partir daí, Beethoven começam os pedidos: “Peço-vos, irmãos, assim que me fecharem os olhos, que o professor Schimith, se ainda estiver vivo, faça em meu nome a descrição de minha doença, e que seja juntada a isso que escrevo, para que o mundo, depois da minha morte, possa se reconciliar comigo”. E agora, vai ao testamento material propriamente dito, para que produza efeitos legais: “Eu os declaro (N. do A.: os irmãos) ambos herdeiros de minha pequena fortuna. Repartam-na com honestidade e ajudem-se um ao outro. O que fizeram contra mim, bem sabem, já foi perdoado”.

Máscara mortuária de Beethoven
Beethoven não se furtou a aconselhar seus irmãos e pediu que suas súplicas fossem extensivas aos seus sobrinhos: “Só a virtude me ergueu da desgraça, só a ela e à minha música devo não ter encerrado com o suicídio  os meus tristes dias. Adeus e me conservem em suas amizades”.  Parecendo que suas ideias e delírios se avolumavam, assim como os desenvolvimentos perfeitos de suas sinfonias, prepara-se para morrer, a “coda” (trecho que encerra o movimento ou a obra) final: “Recebo com felicidade a morte. (...) Ficarei contente pois ela me livrará deste tormento sem fim. Venha quando quiser, eu a enfrentarei com coragem! Sejam felizes! Heilingestadt, 6 de outubro de 1802. Ludwig Van Beethoven.”

Parece que o Testamento foi um gesto preparatório para uma morte natural, como aconteceu, e não para a recorrente ideia de suicídio (fato que denota a grande dúvida, a incerteza, entre tantos fantasmas que afligiam o compositor). Corto para lembrar um triste pensamento sobre a ideia do suicídio, a música “Suicide is Painless”, de Johnny Mandell, popularizada pela comédia M.A.S.H., de  Robert Altman (1970): “I realize and I can see / that suicide is painless / it brings on many changes / and I can take or leave it  / if I please” (“Eu percebo e posso ver / que o suicídio é indolor / ele traz muitas mudanças / e eu posso pegar ou largar / se eu quiser” – trad. livre. Veja e ouça abaixo com tradução).


Beethoven teve 25 anos para tentar o suicídio, após a carta, mas sua missão e a força de sua música foram maiores, para glória e júbilo de toda a humanidade. (“Abracem-se, milhões de seres, e transmitam este beijo para o mundo inteiro”, diz o poema de Schiller musicado por Beethoven em sua 9ª Sinfonia).
(Veja e ouça abaixo o magnífico Finale da 9ª Sinfonia, com o Coral “Ode à Alegria”, tendo Leonard Bernstein à Frente da Filarmônica de Viena)







sexta-feira, 21 de março de 2014

“EU NUNCA SONHEI COM VOCÊ, NUNCA FUI AO CINEMA”

Ou: no Brasil, nunca houve ditadura

Marcelo Rubens Paiva, escritor
“...não gosto de samba, não vou a Ipanema / não gosto de chuva, nem gosto de sol...” Em “Lígia”, Tom Jobim corteja sua amada em inusitada declaração, simulando uma realidade pela arte do avesso. Marcelo Rubens Paiva, ótimo cronista (cujo pai foi assassinado pela ditadura), em um artigo recente traz uma pérola: “No tempo da ditadura, a gente não podia escrever sobre o tempo da ditadura, nem qualificar o regime como uma ditadura. No tempo da ditadura, ao invés de uma análise crítica sobre a ditadura, digo, regime, neste espaço (N. do A.: coluna no Estadão) teria um poema de Camões ou uma receita de bolo, pois seria censurada”. (Veja e ouça "Lígia", abaixo).



Vernon Walters (dir) e Carlos Lacerda, apoiador de todos os golpes
A ditadura deixou-nos marcas como tatuagens, que esvanecem, mas cuja tinta é indelével. Aos 16 anos, tive uma letra censurada em um festival colegial do Rio de Janeiro: “um grito vivo de verdade, quando a cabeça queima”. Seria um slogan revolucionário? Como futuro músico, vi Caetano, Gil, Chico e Vandré (este último em estado lamentável) saírem do país, assim como uma enorme leva de brasileiros que, por cometerem o delito de opinião, eram - com certeza! - comunistas. Fui amigo de uma neta do Castello Branco, cuja casa era frequentada pelo Gen. Vernon Walters, adido militar que chegou a ser diretor geral da CIA.

José Genoíno, capturado
Hoje, relatos e documentos mostram que havia grande intimidade (ou promiscuidade?) entre programas norte-americanos como o MEC-USAID e a Aliança para o Progresso e os interesses estratégicos e econômicos dos EUA. (O resumo da ópera era o perigo comunista, via Cuba, cuja revolução começou em Sierra Maestra com apenas doze homens). Houve o fracassado Congresso da UNE - de onde José Dirceu nasceu para o país, talvez comunista no ideário, e hoje, se não estivesse preso, folgazão milionário. Fora a pífia tentativa de guerrilha ao estilo cubano no Araguaia, de onde surgiu outro José, o Genoíno. E a despreparada e juvenil guerrilha urbana de Fernando Gabeira.

Silvio Frota, comandante
Intelectuais tinham seus passos vigiados, e frequentemente eram presos e até mortos. Quem era contra o regime era comunista, esse o mote. Meu pai, já havia anos trabalhando na Justiça do Rio, recebeu a visita de um agente do SNI, que foi ter com ele com a missão de prendê-lo. O mundo dá voltas, e o policial se despediu dizendo que iria liberá-lo por causa de um grande favor concedido à sua filha, em épocas palacianas de JK. Hélio Pellegrino, psicanalista e escritor mineiro, era um quase vizinho, e frequentou minha casa até sumir. Sua esposa, Maria Urbana, conseguiu uma reunião com o Gen. Sílvio Frota, comandante da 1ª Região Militar: “general, o senhor é um homem sensível, um intelectual...” Ao que foi bruscamente interrompida pelo comandante, que desferiu um chute na cadeira ao lado e bradou: “intelectual, não, sou um homem de ação!”

Julgamento dos frades Fernando, Betto, Ivo e
Tito (que suicidou-se após tortura).
Meu primo frei Betto foi preso com mais três dominicanos, e cumpriu quatro anos, embora condenado a dois. Seguiram-se tantas prisões e mortes, como as do Vladimir Herzog e do Manuel Fiel Filho, cujas viúvas foram homenageadas por Aldir Blanc e João Bosco: “choram Marias e Clarices / no solo do Brasil”. E quantos foram enterrados em Perus por concessão de uma figura política nefasta!

O Partido Comunista Brasileiro teve seus momentos de legalidade, com Luís Carlos Prestes, e, depois, foi tolerado pelo regime: Niemeyer e Jorge Amado, comunistas, ajudavam a projetar um perfil mais permissivo do país no exterior. E aquele Jango do famoso comício da Central do Brasil, estopim do golpe, hoje seria tão social-democrata quanto qualquer discurso de Lula ou FHC. Como em 1964, hoje fala-se em reforma agrária, sindicalismo, há bandeiras vermelhas de diversos partidos ditos ou não comunistas, mas não há correlação de forças para um golpe de lá ou de cá. (Veja, abaixo o Comício da Central).


Em 1965, baixaram o AI-2, que manietou o judiciário e extinguiu os partidos. Em 1966, o AI-3 tornou as eleições indiretas. No mesmo ano, o AI-4 revogou a Constituição. Com o AI-5, em 1968, todos os direitos e garantias individuais foram suspensos, dando início a um ciclo de perseguições policiais que pareciam ataques do “Sturm und Nacht” (Tempestade e Noite) nazista.

Marx e Engels
O Brasil nunca passou do socialismo utópico dos poetas e sonhadores, não chegou ao socialismo científico do arcabouço ideológico do comunismo de Marx e Engels: a ditadura do proletariado, a divisão técnica do trabalho, e, mais do que tudo, a propriedade coletiva dos meios de produção. Já os partidos ditos comunistas de hoje assumem cadeiras nos legislativos, seus representantes eleitos pelo voto.

Convocação cinquentenária
Neste sábado, dia 22 de março, um grupo pretende reeditar a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, cuja versão de 1964 foi costurada por Ademar de Barros e Laudo Natel (então governador e vice de São Paulo) e suas esposas, entre outros, teatralizando um apoio civil ao golpe. 

O que querem os dessa marcha agora? Levantam a ameaça de que Dilma quer a revolução comunista, coisa que nem a extrema direita ousa imaginar! Querem uma intervenção militar, a extinção de partidos e o fim da corrupção. O retrocesso. Mas se esquecem de diversos mi(bi)lionários de hoje, cujos pais, ontem, saquearam os cofres públicos ante os olhos vendados da justiça, a boca amordaçada da imprensa e tanto sofrimento! As Forças Armadas hoje são guardiãs da Constituição, da democracia e da ordem, merecendo por isso nossa admiração. E a democracia, sempre digo, é como a mulher: pode ter lá seus defeitozinhos (nós homens os temos aos montes), mas ainda não foi inventado nada melhor.

(Abaixo, o link para o artigo do Marcelo Rubens Paiva)


sexta-feira, 14 de março de 2014

O SOLAR MONJOPE E A MALDIÇÃO DE BRASÍLIA

O antigo Solar Monjope
O Solar Monjope foi um dos mais belos exemplos da arquitetura neo-colonial brasileira, construído sobre a Chácara da Bica, no Rio de Janeiro, do outro lado do Parque Lage (antes Mansão Besanzoni-Lage), esquina da Rua Jardim Botânico com Tasso Fragoso. 



Dr. José Mariano, um obsessivo colecionador, recolheu peças do período e da era colonial para a decoração do imóvel, e com o Solar e outras obras passou a ser conhecido como um amante da arquitetura, historiador e urbanista de grande importância,  participando de diversas entidades e instituições e influindo na arquitetura brasileira.
Lagoa Rodrigo de Freitas vista do Solar
O renomado arquiteto Lúcio Costa detestava o Dr. Mariano, primeiro devido a uma fúria pessoal contra o ecletismo, e segundo a um certo corporativismo,  pelo seu desafeto não ser um profissional. Com sua sanha modernista, Costa, um dos gênios de Brasília, autorizou ou deixou passar, à frente do IPHAN, a derrubada de vários prédios antigos da Av. Rio Branco e casarões da Zona Sul do Rio.
Condomínio "Parque Monjope"
Assim, de canetada, fez vista grossa à derrubada do Solar nos anos 1970. Com a construção, foi derrubado também um grande número de árvores frutíferas e frondosas, um patrimônio ambiental urbano. No mesmo lugar, surgiu um conjunto de espigões chamado Condomínio Conjunto Residencial Parque Monjope, símbolo da supremacia modernista contra um patrimônio nacional.
O Plano Piloto de Lucio Costa: a nave se ergue

Corte para outra cena 14 anos antes, 1956. Coroando o Planalto Central, a noroeste do Brasil, deu-se início ao ambicioso Plano Piloto do mesmo Lucio Costa. Chamavam candangos (que era como os descendentes de escravos se referiam aos portugueses) os trabalhadores arregimentados principalmente no Nordeste, mas a terra era mesmo dos índios Xavantes, Caiapós e outras tribos menores. Começava a ser erguida uma grande cidade em forma de avião - símbolo da modernidade e praticamente o único meio de transporte para então lá se chegar a partir da capital.
Minha irmã, Inês, na sacada do "Catetinho" (2012)
Pois foi naquele ano (1956) que um histórico bimotor DC-3 levou meu pai, o escritor Autran Dourado, já Secretário de Imprensa de JK, e um grupo de jornalistas e fotógrafos, a pousar na terra vermelha e seca, para conhecerem e divulgarem a obra monumental que estava sendo erguida pelo governo. Fora construída uma pequena casa de madeira, apelidada “Catetinho” (alusão ao Palácio do Catete, no Rio), de onde JK despachava quando visitava o local – aliás, construção precária mas reformada e intacta até hoje. Os jornalistas, mal acomodados, à noite não conseguiram dormir nas redes indígenas reservadas para eles. Foram para o relento, e assim passaram algumas noites até o retorno, que foi o início de uma grande aventura.
O velho DC 3
Cheios de mimos e suvenires, utensílios indígenas trocados por objetos ‘civilizados’, o pessoal da imprensa entrou no avião. Ao ver aquele monte de cocares, lanças e flechas, o comandante da aeronave falou que com aquela traquitana ele não voaria. Entre os candangos e o povo da terra, aqueles presentes eram “coisa mandada”, davam urucubaca. E ponto. Foi chamado outro piloto, que inconformado levantou voo, para alegria de todos. Felizes com as lembranças, os viajantes logo tiveram seu primeiro sobressalto: da cabine, o piloto avisou que houve pane em um dos motores (era um bimotor...). Não sei onde pousaram, mas depois de um bom tempo no solo retomaram a viagem, provavelmente em outro aparelho.
No meio do trajeto do voo, nervosa e ansiosa para voltar, a turma resolveu improvisar uma mesinha de pôquer entre os assentos do avião. A tensão aumentou quando dois jogadores tinham certeza absoluta de poder cacifar a aposta, cada um de seu lado, cada um com um grande jogo nas mãos, gritando como loucos como qualquer apostador. Naquela altura, já teria ido no rolo um bom dinheiro. Abertas as cartas, empate! Foi um desentendimento total, que, aliás, já vindo da tensão do pouso forçado, virou briga (não sei se às vias de fato, e não vem muito ao caso).
O Aeroporto Santos Dumont, construção original
Finalmente, o DC-3 pousa no Aeroporto Santos Dumont. Todos desconfiaram ao ver uma multidão que cercava a pista de chegada, e uma das jornalistas, se não me engano a Silvia Lara Resende (cunhada do Otto), foi acudida por colegas que informavam, afoitos, que seu Jornal do Commercio – tradicionalíssimo e poderoso, na época – estava pegando fogo. Assim, todos salvos e cada um para seu canto, parecia encerrada a aventura.
Ledo engano: meu pai passou a ser atormentado por uma forte insônia e angústia à mercê de uma série de problemas que vinham lhe perturbando. Ele nunca me contou mais detalhes, mas eu o imagino como Cervantes envolto em seu imaginário, sentado na sala, quando deu com os olhos naqueles objetos: tacapes, bordunas, arco e flechas e um cesto de palha forrado com lindas penas de pequenos pássaros: umas azuis, outras vermelhas, amarelas, verdes...
Arco, flecha e borduna
Presumo que foi então que ele, ainda que descrente e nada supersticioso, pegou aquela parafernália e, de pijama e chinelo, desceu os seis lances de escada, andou uns 200 metros em plena madrugada e jogou tudo sobre o muro, no matagal do Solar. Depois do ‘descarrego’, voltou para casa, tudo agora iria melhorar, pensara com certeza. No dia seguinte, porém, logo correu a notícia: o Engenheiro Monjope, o do Solar, havia morrido naquela manhã.

Depois disso, a vida de meu pai começou a melhorar, seguiu em frente, e em 1960 a Brasília de Lucio Costa e Niemeyer foi inaugurada por JK com grande pompa e circunstância, sobre a terra vermelha que havia sido desde sempre dos Xavantes e Caiapós, talvez assentada sobre alguma enorme, maldita e inamovível mandinga. 

sábado, 8 de março de 2014

NAS ASAS DA PANAIR

BH antiga
Nasci em Belo Horizonte, quando ainda não era só um nome, antes de o por do sol ser encoberto pela selva urbana. Minha família mudou-se para o Rio de Janeiro, capital da República, quando eu tinha dois anos – meu pai, aos 27, havia sido convidado por JK para o novo cargo de Secretário de Imprensa (e foi o primeiro titular). Minhas reminiscências mineiras são um caleidoscópio, entre rasgos das memórias de férias escolares com meus avós, alternados com pedaços de minha infância e adolescência no Rio, tudo costurado por viagens na Kombi familiar ou, quando dava, pela Panair.

Comte. Juquinha (vovô, curvado, à direita)
Em BH ficávamos com meu avô, em uma casa modesta na Rua Professor Morais, perto da Avenida Afonso Pena, antes arborizada e modernizada, hoje uma via transbordante de automóveis. De meu avô, General reformado, eu gostava de ouvir as histórias da revolução de 32 (ele foi Comandante do Batalhão de Infantaria sediado na capital mineira – foto acima, último à direita), a deportação, a fuga da Ilha das Flores, e “o tiro que ele não levou” (“levei um susto imenso / nas asas da Panair”). Mas diversão mesmo era descer sorrateiro ao porão da casa e bisbilhotar a enorme coleção do “Seleções do Readers Digest”, com suas rápidas e divertidas “Piadas de Caserna”.

Ali, também, achei (e levei para o Rio) o espadim de meu avô, coisa da carreira militar, com bainha e tudo, espada sem corte que era para não matar, servia apenas à pompa e circunstância quando preciso. O protetor de mão, peça banhada a prata, embutia um cabo trabalhado com fios de ouro circundando-o, na empunhadura da arma. Tudo meio abandonado, levei botas, selos, lembranças, um pouco da memória dele que me foi permitido. E também aprontei o que não devia, que desavergonhado passo a contar.

R. Prof. Morais, com seu canal e balaustrada (esq.), cedendo à invasão do asfalto
Em uma caixa no porão havia um punhado de balas calibre 38. Peguei algumas delas, atravessei a Rua Professor Morais e apoiei-me sobre a balaustrada do canal – que hoje é uma pista de asfalto sem canal, arquitetura urbana que resta viva apenas em minha memória. Segurei uma bala com um alicate, e, martelo na mão direita, tentei detoná-la. Mas foi em vão: aqueles projéteis deveriam estar ali há décadas, pólvora estragada, bala podre. Pior: em uma dessas travessias da calçada para o canal, um lindo Ford preto avançou, sem que eu percebesse, e freou com força tal que chegou a encostar em minha bamboleante perna esquerda – o que fez pessoas se aglomerarem para ver o “acontecimento”. Como se sabe, quando crianças somos imortais, aos 25 descobrimos o perigo, e aos 40 começamos a ter medo de algum dia morrer, o fado e a eternidade infantil são apenas um sonho do futuro emoldurado no passado. (“Descobri que as coisas mudam / e que o mundo é pequeno / nas asas da Panair”).

Na casa de minha bisavó Zina, na verdade Euforzina (nome devido, diziam, a um remédio que sua mãe tomara na gravidez), eu adorava ouvir os causos de escravos, da medalha de meu bisavô na Guerra do Paraguai, que ela me deixou no final da vida, dos vinte e um filhos que teve, sem dizer quantos não sobreviveram. Tinha a história do queijo, claro, não posso escrever sobre Minas sem falar dele. Orgulhosa de seus lindos queijos frescos, quando tinha visitas pedia à empregada um café e um queijo, dizendo aos visitantes: “Qué queijo, qué queijo, qué queijo, Maria, guarda o queijo”. E dizia tão rápido que não dava tempo nem para levantar o dedo nem para dizer sim ou não: salvava-se o queijo, a joia da casa.

Lagoa Rodrigo de Freitas e o pier do Vasco da Gama
As viagens a Minas entrelaçavam-se e se confundiam com a vida no Rio, onde meus pais moravam conosco em um apartamento no terceiro andar de um prédio sem elevador, os quatro filhos em um quarto só. Meu pai era uma autoridade da República, mas aqueles foram outros tempos, o leitor sabe. O prédio ficava em frente, exatamente em frente ao ponto de ônibus onde em 2001 aconteceu o estúpido sequestro do ônibus 174. Atrás, ali perto, ficava a Lagoa Rodrigo de Freitas, onde o pier dos “outrigger” (canoa polinésia) de competição do Clube de Regatas Vasco da Gama largavam e atracavam. Ali dava para pescar, e às vezes, mesmo aconselhado por todos a não fazê-lo naquela água meio escura e nada confiável, caía bem um mergulho para refrescar. (Será por isso que, fora doenças infantis e uma maior, que descreverei adiante, não sei o que é dor de cabeça ou mesmo uma gripe?) “E lá vai menino, lambendo o podre-delícia / e lá vai menino, senhor de todo o fruto / sem nenhum pecado, sem rancor / o medo em minha vida nasceu muito depois”. Não posso recomendar o remédio, mas penso nos índios, que conviviam com a terra, os rios, as matas e só conheceram nossas doenças e vícios após sua aculturação pelos dominadores brancos.

Mansão Besanzoni-Lage
Do outro lado, atravessando a Rua Jardim Botânico, um muro longuíssimo cercava de mistério uma mansão abandonada, um monumental terreno onde havia cavernas com estalactites artificiais, mato fechado, árvores frutíferas, pau-brasil, riachos e mistérios, fantasias e quimeras. A mansão havia sido dada como mimo pelo milionário Henrique Lage à sua amada, a soprano italiana Gabriella Bensanzoni, de carreira em ascensão, para que viesse morar no Brasil. (Qualquer semelhança com o romance Onassis-Maria Callas é mera coincidência, sim, pois a tórrida paixão Lage-Besanzoni acontecera bem antes). Nas cavernas, sonhávamos veredas nunca dantes desbravadas, um outro mundo, um “Mito da Caverna”, de Platão, às avessas (o filósofo grego fez uma alegoria sobre a escuridão de uma gruta, o desconhecimento e o risco de se conhecer a luz e voltar aos que nasceram e cresceram dentro da caverna).

Guilherme Tell
Nossos sonhos de Indiana Jones, décadas antes de o herói hollywoodiano ser criado, tornavam-se realidade: um mecânico nos construiu uma besta, daquelas do Guilherme Tell, cujo arco era uma barra de torção de Kombi, e a corda um cabo de aço puro. Difícil mesmo era ter força para vergar a barra, mas dois de nós o fazíamos, e uma vez logrado sucesso era só prender o cabo de aço ao gatilho e depois depositar a seta na canaleta da arma. Em seguida, era sair para achar qualquer animal para caçar – felizmente, os micos e esquilos eram bastante espertos e nos sumiam da frente em um átimo. Flechávamos jacas por diversão, ou cortávamos com canivete um alvo na casca de uma árvore  pelo prazer de cravar a seta com força, de ponta no coração do inimigo imaginário. Ah, e a primeira invasão da sede na mansão!

A diva Besanzoni
Lanternas na mão, não foi difícil abrir um dos vitrôs e explorar aquela bagunça imunda, digo, aquela bela cena cinematográfica. Uma sala de banho enorme, com louças negras e uma banheira com grandes torneiras banhadas a ouro – pena que a super-hidromassagem ainda não existia na época da madame Besanzoni. (Henrique Lage ficou com a imensa propriedade após uma disputa pelo espólio familiar. Hoje, tombado e depois reformado, chama-se Parque Lage, e oferece passeios abertos ao público, shows, exposições, aulas de arte e cenários de filmes – como “Macunaíma”, do Joaquim  Pedro de Andrade – e novelas da TV).

Das cavernas trouxe uma lembrança: adoeci, fui levado a não sei quantos médicos, e nada de diagnóstico. Minha mãe me levou ao grande da pneumologia no Rio, um certo Dr. Aluísio, é só o que a memória me concede. Em via crucis médica, quem achou o caminho foi meu tio Marcelo, médico formado poucos anos antes. Lembro-me dele com um livro enorme aberto sobre a mesa, como uma bíblia, e me parecia mesmo a Escritura Sagrada, de onde a verdade começou a surgir: A vacina-teste chegou dos EUA (a doença no Brasil era rara e praticamente desconhecida), e, uma vez aplicada, positivou. Histoplasmose, doença cultivada por morcegos e pombos das benditas, digo, malditas cavernas! Sim, malditas benditas cavernas de minha adolescência! Curado, levo desde então um pequeno nódulo calcificado inativo no pulmão esquerdo, espécie de medalha de desbravador de matas ao pé do morro do Corcovado, aventura em plena Zona Sul carioca.

Roy Rogers e Trigger
Mais novo ainda eu era, quando veio o encontro inimaginável do menino com seu mito, o imbatível Roy Rogers, dono do cavalo Trigger e do fiel cão Bullet, estrelas de mais de 100 filmes da TV. Foi em um avião no Brasil (da Panair, claro), eu criança estava com a família no voo, quando, umas duas fileiras mais à frente, vi sentado um gringo legítimo, chapéu de caubói branco sobre o colo, e exclamei: “É o Roy Rogers!” (“A maior das maravilhas foi / voando pelo mundo / nas asas da Panair”). Não podia me confundir, era ele, era ele, mas queriam me fazer sentar, não me lembro quem -  mas segurar um menino a dois metros de um super-herói é missão impossível.

Levantei-me e fui lá, perguntando “você é o Roy Rogers?, e, ante a afirmativa do tradutor, sentado ao lado do ídolo, este passou um papel em que Roy Rogers me escreveu uma dedicatória. Voltei como um veterano de guerra, trazendo a vitoriosa bandeira nacional. “Descobri que a minha arma é / o que a memória guarda / dos tempos da Panair”.


[todas as citações de versos entre aspas são da música “Conversando no Bar”, de Milton Nascimento. Abaixo, na gravação imortal de Elis Regina na Inauguração do Teatro Bandeirantes, em 1974]


(Publicado originalmente na Revista O PROGRESSO, ed. fevereiro de 2014)