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sábado, 23 de fevereiro de 2013

CANTOS, CANTIGAS E CANÇÕES DE TRABALHO

Ilustração: Debret

“Trabalha, trabalha, trabalha, nego / trabalha, trabalha, trabalha, nego...” O canto lamentoso dos escravos servia de marcação para o compasso correto e entrosado nos engenhos e moendas, canto de apenas três notas sobre pulsação bem marcada. (E não era assim também que com cantigas a mãe na cadeira de balanço ninava o bebê, no ritmo do screc-screc para frente e para trás: “Boi, boi, boi, ô boi da cara preta...”?). Talvez desde sempre tenha existido essa associação da fala, dos sons guturais associados aos movimentos - os lutadores de judô e artes marciais em geral não gritam ao desferir um golpe, aquele famoso “kiai”?
Salina
Ao ver flertar com a moça saindo da fábrica, Noel Rosa compôs um belo samba-canção, mais para canção do que samba: “quando o apito / da fábrica de tecidos / vem ferir os meus ouvidos / eu me lembro de você (...) / você que atende ao apito / de uma chaminé de barro / por que não atende ao grito / tão aflito / da buzina / do meu carro”.  Milton Nascimento entoa um lamento vivo, a jornada dilaceradora de quem trabalha na salina e lembra a mulher que espera em casa e o filho que quer ver crescer longe de sua labuta: “Trabalhando o sal / pra ver a mulher se vestir / e ao chegar em casa encontrar a família a sorrir / filho vir da escola, problema maior, estudar / que é pra não ter meu trabalho / e vida de gente levar”.
O cineasta Leon Hirzman fez um importante documentário - aliás, são três filmes - sobre canções de trabalho (também título da obra) da zona rural nordestina. Já naquela época, meados dos anos 1970, esses cantos estavam em extinção, dado o avanço do maquinário sobre as colheitas manuais. O material da trilogia versa sobre um tema diferente cada um: cana de açúcar, cacau e mutirão, sendo que o primeiro é sempre apresentado por um puxador, que canta mais alto e com voz estridente, resquício da tradição da escravatura. (Veja e ouça abaixo Cantos de Trabalho – cana de Acúcar, de Leon Hirzman).

 

A narração é do poeta Ferreira Gullar, o que reveste a obra de conteúdo ainda mais sedutor. E são tantos gêneros dessa cantoria da mão de obra de nossas origens que o selo SESC lançou o CD Cantos de Trabalho: fiandeiras, colhedoras de arroz, destaladeiras de tabaco, os que peneiram com bateias nos rios. São monotemáticos, monofônicos, sempre com compassos bem marcados para estabelecer o pulsar do corpo trabalhando, até mesmo para que o cansaço não deixe esmorecer, mantendo assim o ritmo da produção. Minha bisavó entoava uma velha cantiga mineira de escravos, entre as histórias que costumava contar para a bisnetada, que a ouvia sempre curiosa: “Batuque na cozinha / sinhá não qué / por causa do batuque / eu queimei meu pé”, repetido “ad nauseum” com um andamento movido, deixando entrever que esse trabalho devia ser um de gestos rápidos (talvez em panelões de comida), as sílabas das palavras marcadas como o toque de ganzás e atabaques africanos.
Ilustração: Les Miserables
Esse costume, porém, não é privilégio da riqueza negra de nosso passado “Brasil brasileiro”. Nos EUA, cantos de escravos também existiram, especialmente no sul, nas colheitas de algodão, região onde mais tarde veio a nascer o blues, gênero que foi o pai de todos, do jazz ao rock. “Push it along / work, work, work / push it along / to make it work” (“Vai empurrando / trabalha, trabalha, trabalha / pra fazer o trabalho andar”, em tradução bastante livre dado o sentido poético). Ou “Well I’m hidin’ my eyes / from the mornin’ sun / and I keep workin’ / ‘till the work is all done” (“Bem, estou escondendo meus olhos / do sol da manhã / e continuo trabalhando / até que o trabalho esteja todo terminado”). Os lamentos, frequentemente, rememoram a família, os filhos que esperam o trabalhador retornar: “Sometimes it may seem, boy / I’m neglecting you / but I’d love to spend more time / but I got so much to do” (“Às vezes pode parecer, garoto / que estou te rejeitando / e eu adoraria passar mais tempo [com você] / mas eu tenho muito pra fazer”).  E também na França: no caso, em Toulon, em 1815, a “gangue da corrente” trabalhava sob o sol: “Prisioneiros, olhem pra baixo / não os olhe nos olhos / olhem pra baixo / está quente como o inferno lá embaixo / olhem pra baixo / ainda têm vinte anos pela frente”. Texto da peça Les Miserables, originalmente de Victor Hugo (1802-1886). Já na Espanha, as campesinas trabalhavam movidas ao canto das “labradoras”, arrastando a colheita ao passo das mulas, cantando e acompanhando o ritmo dos animais.
E há o protesto do trabalhador, a canção dos oprimidos. Uma obra-prima sobre apenas dois acordes – seguindo a regrinha básica ‘letra de fácil comunicação, música simples’ - foi criada por John Lennon em seus tempos revolucionários: “Desde que você nasce / eles te fazem se sentir pequeno / ao lhe dar tempo algum / ao invés do tempo todo / um herói da classe operária é algo para ser” (trad. livre de trecho da letra de “A working class hero is something to be”). (Veja e ouça abaixo com o próprio Lennon).

 

Assim também virou brado de guerra a toada do nosso Geraldo Vandré, cantado e marchado nas manifestações estudantis e populares (o andamento é o de marchar a pé, um andante, para usar o termo musical). Além dos festivais da canção, “Pra não dizer que não falei de flores” foi o hino dos que caminhavam e cantavam: “...somos todos iguais / braços dados ou não / nas escolas, nas ruas, campos, construções / caminhando e cantando e seguindo a canção”.  Assim como Lennon, Vandré se serviu de dois acordes e melodia simples que o povo grava na memória logo na primeira vez, a multidão em coro pacifista e libertário. Com todo seu lirismo, a argentina Mercedes Sosa cantava, em “Volver a los 17” (Voltar aos 17 anos), linda canção de Violetta Parra que conquistou Milton Nascimento e o mundo: “O arco das alianças / penetrou em meu ninho / com todo seu colorido / passeou por minhas veias / e até a dura corrente / com que nos ata o destino / é como um diamante fino / que ilumina minh’alma serena”. (Abaixo, gravação histórica de Sosa com Gal, Caetano, Chico e Milton).

 

O homem se realiza por meio do trabalho. E a música, hoje, serve para glorificá-lo, entre os povos livres do mundo. Mas quando a labuta é imposta, forçada, sob a chibata que transforma povos subjugados em servis animais, é a música a verdade e a proteção que não permitem ao homem cair: ela é o lamento que sai das vísceras, o auto de fé, de resistência, como cantou David no belo Salmo 91 (3-4): “Porque Ele te cobrirá com as suas penas / e debaixo das suas asas te confiará / a sua verdade será teu escudo e broquel”. 

domingo, 17 de fevereiro de 2013

O CARNAVAL LONGE DO TRÁFICO, DO JOGO, DA NUDEZ E NA RESSACA DA REPRESSÃO – I



Não sou, de forma alguma, um sujeito que se possa dizer carnavalesco. O único baile de carnaval a que me lembro de ter ido foi coisa de meus dezesseis, dezessete anos. Fui jurado de desfiles no Sambódromo de SP (1995) e Tatuí (2010), e confino meu conhecimento sobre o samba das escolas ao Rio de Janeiro onde morei por muitos anos, à condição de dicionarista e de apreciador dos bons sambas de enredo e marchinhas do passado.

O Mardi-Gras de New Orleans

O carnaval (do latim carne levare, suspensão da carne) é a maior festa pagã do mundo. Podemos buscar raízes há mais de 2.500 anos, na Grécia antiga, e sua passagem a festividade cristã, até o famoso carnaval de Veneza, com suas máscaras deslumbrantes. Na França, há o mardi-gras (quarta-feira gorda), e é em Nice que acontece uma das grandes festas carnavalescas (Alemanha e Bélgica também têm suas versões). Os colonizadores franceses levaram para New Orleans, nos EUA, a tradição do mardi-gras, com suas tradicionais alegorias e passos característicos. Porém, nada se compara ao carnaval brasileiro, seja em beleza ou luxo. Infelizmente, o destino, o fado do nosso carnaval é sua deturpação e encolhimento. Zeca Pagodinho, quem diria, deu sobre isso preciosos depoimentos.
Com o tráfico de drogas praticamente fora dos morros no Rio e o jogo do bicho ausente, resta às escolas o merchandising velado.  A Mangueira aderiu a uma grande multinacional de agronegócios (pela bagatela de 8 milhões), e  prestigia um setor muito próspero no Brasil: cavalos manga-larga. Estariam as escolas a salvo da insolvência? Luiz Fernando Vianna, do Instituto Moreira Salles e autor de quatro livros sobre samba, é pessimista e acha que as agremiações estão caminhando para o inevitável, a estagnação. Pelo seu raciocínio, se em 2014 os desfiles ficarem como neste ano, já está muito bom, mas a tendência é piorar.
Entrudo, por Debret
Para não perder o fio da história, pensando no futuro, nada melhor do que rever o passado. O entrudo (do latim introitus) surgiu na Idade Média e chegou ao Brasil já no princípio da colonização, trazido pelos portugueses. No final do século 19, o povo se fantasiava, embriagava-se e cheirava éter, fazendo brincadeiras às vezes violentas contra os passantes, jogando farinha, bexigas cheias d’água suja e até urina. Autoridades e famílias acionaram governos e polícias para coibir os atos de grosseria, o que acabou levando à extinção do entrudo e ao surgimento dos inocentes cordões, no início do século 20, origem do carnaval de rua.
A primeira escola de samba surgiu no bairro do Estácio (o grupo ensaiava em uma escola pública, daí o nome “escola”); a espetacularização dos desfiles começou a partir do ingresso da Rede Globo na folia, em meados da década de 1960, que passou a cobrir os desfiles – hoje, segundo o já citado Vianna, “para serem vistos de cima”, tamanha a multidão colorida de pessoas e monumentais carros alegóricos, como mostram as filmagens aéreas de TV tomadas com aquelas enormes gruas que se movimentam como parte do espetáculo.
Mas vamos pensar as escolas de samba e o próprio carnaval nos dias de hoje. O Governo comemora (e nós também) a queda de mais de 25% no número de mortos em acidentes durante a folia. A “tolerância zero ao álcool” e, novidade, aparelhos para detectar também o uso de substâncias psicoativas (como se o próprio álcool também não fosse uma), jogaram no chão o número de carnavalescos bêbados dirigindo. A solução é pedir à esposa para dirigir a fim de poder virar o caneco? Mas e se ela também gosta de beber? A imposição de Lei Seca doméstica é absurdamente machista e submissora. 

O CARNAVAL LONGE DO TRÁFICO, DO JOGO, DA NUDEZ E NA RESSACA DA REPRESSÃO – II




Há algumas décadas, o lança-perfume, tolerado pelas autoridades, povoava os bailes de clubes e de rua. Mistura sob pressão de éter e outras substâncias em um frasco de vidro, era esguichado na foliã, provocando-lhe uma reação ao gelado, momento em que o folião fazia a abordagem para abraçá-la, e, cheirando-lhe o ombro e ela ao seu,  saía pulando de um mundo fechado e rotineiro para outro, o da fantasia, do erotismo e da desinibição. A festa, associada ao álcool, ao lança-perfume e outros estupefacientes, passou a ser uma grande catarse (na filosofia grega, a purificação pela liberação emocional) descontrolada e louca, e terminava frequentemente com os pares de folia sem saber exatamente quem eram um e outro, e muitas vezes até onde acordavam. Hoje, até a nudez dos desfiles, se não castigada, vem sendo gradualmente banida. Os arroubos orgiásticos de Joãosinho Trinta há 20 anos são coisas do passado – e arrisco dizer que indiretamente pela enorme penetração e avanço das igrejas evangélicas nas favelas. O nu está coberto – com ornamentos, mas está. 

O distanciamento do jogo do bicho,  do tráfico e agora o duro cerco aos motoristas que sob efeito de ínfima quantidade de álcool ou droga podem receber voz de prisão levarão as escolas, agora com os olhos no marketing, à ruptura com seu passado. (Longe de mim defender esse passado, muito pelo contrário, neste ano muitas vidas foram salvas neste país, e isso que fique bem claro). Porém, o tema aqui é a festa, à parte leis, religiões e posições pessoais. O fato de uma cultura popular ter estado ligada a um passado de ilicitudes não justifica que para recuperá-la deva-se voltar a andar à margem da lei, mas a ligação do carnaval com a alucinação provocada artificialmente é coisa que vem de suas raízes. Os foliões agora haverão de conviver com essa nova realidade, temendo a prisão, os pontos na carteira e a apreensão de veículos, além das altas multas, estragando-lhes de vez a festa (e o ano). Pena que outras leis que não a Lei Seca não sejam aplicadas também com o mesmo rigor a muitos dos próprios legisladores, em seus desmandos.
2014 virá. Não estranhe se os desfiles das escolas vierem com as agremiações ligeiramente mais murchas, mais encolhidas, e os decadentes sambas de enredo sinalizarem ou deixarem explícito o nome do patrocinador da escola. Ou, ainda, em poucos anos, se as fantasias trouxerem em algum lugar, como nos pilotos de Fórmula I e jogadores de futebol, os logos das empresas patrocinadoras. Quem sabe, no futuro, os carros alegóricos não ostentarão, iluminados por lâmpadas led, os nomes de companhias aéreas, automontadoras, construtoras e bancos privados, seus futuros parceiros? Viver para ver.




sábado, 9 de fevereiro de 2013


MACHADO DE ASSIS, O CONSERVATÓRIO E A ÓPERA DE SATANÁS I
Machado de Assis
Meu pai volta e meia dizia que se todo mundo lesse Machado de Assis menos mortes aconteceriam nas mesas de cirurgia, menos viadutos e prédios cairiam e menos burocracia teríamos no país. Ora, diria o leitor, por quê? Porque a escrita de Machado, a maneira de arquitetar os mínimos detalhes, de envolver quem lê, ensinando-o a participar de suas tramas e mistérios, exigem mais do que uma mera leitura de frases. Mesmo simples e direta, requer raciocínio e organização mental para compreender a ourivesaria do autor, e mesmo sob essa aparente simplicidade, por mais contraditório que possa parecer, não é  uma literatura para se engolir sem bem mastigar.
Kindle
Rever os clássicos é fundamental. Beber o que é de melhor na fonte, sair da rotina dos jornais, dos novos lançamentos e dos livros técnicos. Voltar a Machado é mergulhar no que melhor se escreveu em nossa língua, um seletíssimo grupo de autores. A ideia de começar uma releitura de Machado veio com um presente que recebi de minha filha Marta: um Kindle, essa maravilha de livro eletrônico que permite ao cidadão carregar uma biblioteca em um aparelho do tamanho de uma caixa de DVD - e baixar livros em poucos minutos a preços muito abaixo dos exemplares impressos. Logo, agreguei à minha coleção móvel o imortal Dom Casmurro, e pus-me a ler. No consultório médico, no descanso, na fila de espera do banco.
Romulo, Remo e Capitolina
O livro, da segunda fase de Machado, desnuda a influência que o autor recebeu do pessimismo e das reflexões sobre a loucura de Schoppenhauer (1788-1860). São características que transparecem nas elucubrações mentais de Bentinho, jovem personagem do livro, e sua ida a contragosto para o seminário, por promessa e voto de sua mãe – preparação para o sacerdócio que ia contra sua paixão ciumentíssima e quase louca pela adolescente Capitu (a bela “dos olhos de cigana, oblíquos e dissimulados”). Aliás, apelido de Capitolina, que é também o nome da loba que amamentou os gêmeos Rômulo e Remo, segundo a mitologia, sendo o primeiro o fundador de Roma (anagrama de Amor). Capitolina, a que amamentou dois ao mesmo tempo, é toda sinal de onde ia a cabeça de Machado em um dos mais belos textos em que dúvida e traição (pairando no ar) jamais foram escritos. E Machado deixa a intuição para o leitor.
Pois foi assim que, envolvendo-me na leitura, pude rever um capítulo curiosíssimo do livro, que Machado inseriu com intenção de provocar o leitor a entrever no drama de Bentinho (diminutivo de “bento”) e Capitu (seu oposto) suas reflexões teológicas por meio do capítulo “A Ópera”. Vamos a um trecho, em que fala um personagem fortuito do livro, o velho tenor italiano: “A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e das comprimárias (N. do A.: papeis secundários), quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e das mesmas comprimárias”. Já naquele tempo, Machado antecipava a anedota comum entre os músicos de hoje: a ópera é o tenor tentando cantar a diva (soprano), e o baixo e o barítono fazendo de tudo para atrapalhar.
A expulsão de Satanás (Leandro Quadros)
E continua o velho tenor: “Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. (...) Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, sendo expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. (...) Compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno. (...) Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos”.

MACHADO DE ASSIS, O CONSERVATÓRIO E A ÓPERA DE SATANÁS II
Capitu (Fernando Lago)
Essa alegoria da ópera em Dom Casmurro nada mais é do que uma reflexão machadiana sobre a Criação. Apesar das imposições maternas para se tornar padre, Bentinho amargava um conflito enorme em seu coração, que pertencia à sua amada menina, Capitu - e nada de seminário. Fica claro certo distanciamento do cristianismo que tinha Machado, mais especificamente da tradição católica do Rio de Janeiro da transição Império-República. É marcante também a influência de outro autor sobre ele: Blaise Pascal (1622-1662), mestre da ironia e da sátira. A única grande certeza do livro é a dúvida, a ironia da dúvida maior, o chamado enigma de Capitu.
Machado, ao usar a fala de um personagem fortuito introduzido no livro Dom Casmurro, um velho tenor italiano, brinca que Deus, já enfastiado, permitiu a Satanás que encenasse um libreto (texto de uma ópera), desde que longe do Céu – na terra, teatro especial, obviamente sob a regência do capeta. O escritor carioca faz essa introspecção no momento em que a dúvida, personagem virtual, vai sendo armada até o desfecho, perdendo-se nos olhos dissimulados de Capitu.
Tenore
Uma descrição de Deus como o criador que entregou seu “palco” a Satanás, maestro das coisas ruins do mundo, não era exatamente o que a fé católica pregava naqueles tempos. Tudo deveria estar nas mãos do Criador. Porém, muitos duvidaram da existência Dele porque, se Ele tudo pode, por que então o dilúvio, as perdas em família? (ou, atualizando, por que tragédias como a de Santa Maria aconteceram e continuarão acontecendo?). Se ele é bom, pensa o incrédulo, por que então não evita todos os males? Lembrando o velho tenor de Machado, parece que a ópera tem a  partitura composta e regida pelo mal. Deus apenas criou o libreto.
Dom Casmurro, de Machado de Assis, é muito mais do que um simples livro. Machado é o mestre da pena e do tinteiro, mas vai muito além deles. Perdi a conta de quantas e quantas vezes vi meu pai, na cadeira de balanço, relendo a obra completa de Machado, livro após livro, parecia-me que pela undécima vez. É possível lê-lo e relê-lo, aprofundar-se, pensar, aprender sempre mais. A cada leitura, coisas novas, ideias novas. É viver lendo, relendo e aprendendo. 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

SANTA MARIA, MÃE DE DEUS!

Teatro Procópio Ferreira

Quando cheguei em Tatuí, há cinco anos, uma das primeiras coisas que fizemos foi dotar o Teatro Procópio Ferreira de todas as necessidades relativas à segurança: porta de “pânico” do saguão para a rua (acionada por barra horizontal com passagem para muitas pessoas de uma vez), as quatro folhas das duas portas que dão para fora do auditório também dotadas do mesmo sistema, assim como as duas portas laterais, para uso em caso de emergência. Novos extintores, um hidrante de parede com um alarme de incêndio em cada um dos três andares, luzes de emergência, detectores de fumaça, filme explicativo projetado em telão antes dos eventos, tudo realizado em curto espaço de tempo. Houve também treinamento de pessoal para caso de acidentes: um ônibus levou uma caravana de 30 futuros brigadistas de incêndio para um curso com especialistas em Itapevi.

Spot de led
Depois, começamos a troca dos velhos spots com lâmpadas de cilindros de vidro. Eles raramente estouram, mas pode acontecer, e caem ainda incandescentes, partindo-se e trazendo perigo de cortes e queimaduras em músicos e primeiras filas da plateia. Os velhos spots estão sendo gradualmente substituídos por novos, de led, que projetam luz mais clara e com menor consumo, sem aquecimento e sem riscos. São precauções que nos deixam dormir tranquilos; têm custo alto, mas são primordiais, nada no mundo vale um acidente, nem todo o dinheiro do mundo paga uma vida.

Claro, estou falando da estúpida, insana e cruel tragédia que fez mais de 230 mortos e acima de uma centena de feridos na aprazível Santa Maria, RS, durante uma balada de jovens na madrugada de domingo, 27 de janeiro. A boate Kiss estava sem alvará, não tinha preparação alguma contra incêndio ou mesmo saídas de emergência e tampouco as autoridades se preocuparam com esse foco de encrencas que são eventos de multidões em recintos fechados. Pior: o isolamento acústico foi feito com material sintético de espuma inflamável (eu nem sou a favor da lã de vidro, prefiro a lã de rocha). Como se não bastasse, o sufocamento que matou essas mais de duas centenas de jovens poderia ter feito menos vítimas se os seguranças, no início do pânico, não tivessem tentado recolher as comandas – leia-se aqui o dinheiro, e entenda-se, cercando a saída do inferno sob ordens ou de “moto proprio”, tentando cobrar as despesas.

Boate Kiss, antes da tragédia 
Não vamos procurar um bode expiatório para despejar-lhe a culpa, todos são culpados. E chega de “vamos aguardar os laudos para afirmar...”, ladainha tão típica de autoridades ganhando tempo para arrumar explicações que não os comprometam politicamente. O que todos viram cruelmente nas TVs e jornais por si basta, cada que tire suas conclusões. Houve erros absurdos, omissão, negligência, descaso, imprudência, e fome de dinheiro – a casa tinha mil jovens, quando a lotação máxima era 600. Administração pública, proprietários, seguranças... Mas vamos ao estopim (literalmente) da tragédia, que me trouxe à luz uma reflexão sobre o momento cultural por que passamos. Um dos músicos, acostumado a efeitos de pirotecnia, estoura um sinalizador que emite fagulhas, como parte do show. Pois foi exatamente o que provocou o fogo, cuja fumaça tóxica tomou a vida de mais de 230 jovens, todos com um futuro pela frente, em uma cidade agradável com uma universidade federal de muito boa reputação, inclusive na música.

Mário Vargas Llosa
Mário Vargas Llosa, escritor, crítico, pensador e dramaturgo peruano premiadíssimo, acaba de publicar um novo livro, La Civilización Del Espetáculo (Ed. Alfaguara, Espanha, em vias de ser lançado no Brasil). Diz a sinopse: “A banalização das artes e da literatura, o triunfo do jornalismo (N. do A.: incluindo aí a TV) sensacionalista (...), a ideia temerária de converter em bem supremo nossa natural propensão à diversão”. Em entrevista a Laura Revuelta, do jornal ABC, de Madri, Llosa continua: “contentam-se com que a literatura cumpra uma função mais ou menos imediata, e seja uma literatura de consumo”. Trocando em miúdos: que não obrigue a pensar, não traga exigências para o público a não ser engolir sem precisar mastigar (e isso, claro, se aplica a todas as manifestações artísticas nesses tempos recentes). Adiante, Llosa deixa clara a omissão da classe intelectual, que passou a segundo plano.

Supershow
Abre-se espaço para o espetáculo, luzes, muitas luzes, volume altíssimo, grandes concentrações de pessoas, luxúria, espetáculo, espetáculo, espetáculo, não interessa quem são os artistas, o povo quer espetáculo. Daí, efeitos especiais, fogos e artefatos como o sinalizador que apontou àquela juventude sadia e alegre o caminho da morte. Não interessa se é Claudia Leitte, Ivete Sangalo, Michel Teló, se canta ou grita, se a música é ruim. O povo quer em primeiro lugar o “big show”. O espetáculo é o fim, o artista apenas o meio. Sem espetáculo a maioria desses artistas não se sustentam: que seria deles se usassem um violão, um piano, um pequeno “combo” para acompanhá-los? Sem esses monumentais aparatos que convidam o inconsciente coletivo a aflorar em orgias sensoriais e sensuais de pouquíssimo conteúdo? Nada. Apenas mulheres lindas, às vezes afinadas, cantores bocós, mas a música deles é de função imediata, como disse Llosa, e de muito pouco ou nenhum significado. Sem alma nenhuma, só foguetório.

Roda Viva, 1968
Chico Buarque, em sua peça teatral Roda Viva (1968), parece ter antevisto até onde chegaria a espetacularização (essa palavra vai pegar) da mídia: na cena, os ídolos eram devorados, e carne viva era mostrada para os espectadores para provocar repugnância. Só que a mídia de hoje tem mostrado isso, no episódio Santa Maria, e o povo, embasbacado, parece que tem algum desejo inconsciente de desfrutar dias inteiros dessa banalização da morbidez. É o show da vida!