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quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

REFLEXÕES SOBRE UM ANO ATÍPICO

 


Ao se fecharem as cortinas deste ano turbulento, é bom nos prepararmos para a descoberta de novos e melhores horizontes. Hoje, veio-me à memória uma cena passada que me caiu à mente como se fosse agora. Passo a descrevê-la. Já viajei de avião incontáveis vezes, do e para o exterior, e percursos internos pelo país. Nunca tive qualquer medo nas minhas viagens (talvez o tenha perdido, quem sabe?). O medo de voar nada mais é do que o temor de se sentir um Ícaro e seu invento fracassado, porque todos sabemos que os riscos, hoje, de se viajar no alto em aparelho mais pesado do que o ar são ínfimos, estatisticamente. Houve uma certa vez, porém, que um fato especial me provocou algo diferente, uma brevíssima sensação de close call (em aviação, em inglês, escapada de um acidente).


Isso foi há muitos anos, em um voo SP-Rio que não existe mais, em um pequeno Bandeirante de 20 lugares, modelo que hoje parece aposentado. A turbulência era tão forte, trancados naquela pequena nave, que parecíamos estar em um daqueles terríveis aparelhos de parque de diversões. Senhoras dedilhando novenas nas contas de seus terços, senhores com expressões tensas e suores nos rostos, mas como de costume eu me sentia seguro. Até que olhei para trás e vi as duas aeromoças sentadas em banquetas escamoteáveis em frente ao banheiro, cintos de segurança duplos, os olhos bem maquiados, olhar fixo em algum ponto na parede. E tinham as mãos dadas, como se orassem em comunhão de pânico.


Nessa hora, senti o medo tentando se apossar de mim, mas, como pai de uma família apavorada, precisaria estar sob controle, fosse o que viesse, suportando os violentos sacolejos. Agora, ao virarmos a última página de 2020, é um pouco como me sinto. Tivemos um ano terrível, com a chegada da Covid-19 ao país, mas, em tempo recorde, ao vislumbrarmos o novo ano se aproximando, já enxergamos a luz das vacinas que brevemente irão nos redimir; se não houver um freio sólido da doença já em alguns meses, ele será consolidado nos seguintes. O tempo universal é eterno, portanto não medido por relógios ou calendários, está muito além e existe apesar de nós. (Hora de dizer ‘nada como a tintura do tempo’ para citar desta vez um ditado britânico: "nothing like time’s tinturing”).


Não me sinto hoje como naquele Bandeirantes, soçobrando qual um barco à deriva com seus passageiros, ou como as noviças comissárias de bordo de mãos dadas e menos ainda aqueles que se apegaram às novenas com os olhos fechados na hora do perigo, esperando o átimo mortal chegar. Não que aqueles passageiros que observei não pudessem ter motivações pessoais mais fortes, sabe-se lá, mas lembro-me daquela experiência como uma ‘alegoria real’, pensando que é preciso estarmos firmes e otimistas para os novos tempos que se aproximam: “É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte” (Caetano, em “Divino Maravilhoso”). Mais ainda: "ed io soi uno / m’aparecchiava para sostener la guerra”, disse Dante, no Canto I do Inferno, na Divina Comédia: “e eu sou um, me preparava para empreender a guerra”.


Não será um combate insano contra inimigos imaginários, como o do fidalgo Don Quixote e seu fiel escudeiro contra moinhos, será uma luta bem real, com grandes avanços e conquistas nas mãos, ‘com lenço e com documento’, a ciência mundial acelerando recordes de sucessos, ‘tudo no bolso e nas mãos’, brinco com os versos de Caetano. Não há lugar para desespero, como em minha crônica verídica sobre “O rato de Boston”, na qual conto que um camundongo caiu dentro da lixeira, e após incontáveis tentativas de saltar da lata noite adentro em inúteis saltos para escapar, acabou sucumbindo ao desespero e se entregando ao destino. Era um ruído repetitivo, “flap, zip, pá” - salto, escorregada e tombo - naquela noite insone, sem que eu soubesse de onde vinha  aquela cansativa e tosca percussão em ostinato.


Seremos mais fortes neste ano de 2021, e agora mais bem aparelhados para novas batalhas e vitórias, novas lutas e conquistas, com a certeza de que iremos prosseguir e vencer. Quanto à crise econômica, pode ser este que chega o ano em que ela não nos dará trégua, mais do que já nos atormentou em 2020. Mas suportaremos as pedras do caminho e estenderemos a mão a quem pudermos da melhor forma, o quanto possível. Inspirados pelo vislumbre da derrocada final do vírus, como já aconteceu outras vezes no país em endemias, epidemias e pandemias, teremos nessa luz a bandeira da empreitada por melhores tempos e boa saúde, e um novo espírito de solidariedade e altruísmo.


Encerrar aqui com simples votos de paz e felicidade, os lugares-comuns de sempre, não seria minha função, como a tenho desempenhado. Porém, pessoalmente confesso que também faço desses votos desejos taquigráficos: um gesto social, reza a praxe da boa educação. Contudo, tenho certeza de que com fé no espírito de Natal a distância de muitas pessoas queridas – e a ausência de outras - não vai nos arrebatar, o bem prevalecerá entre os homens. E que a palavra ódio, uma constante nos dias de hoje, esteja banida de nosso cotidiano, porque 2021 será período de felicidade pelas conquistas, pelos sucessos nas lutas e empreitadas. Dizia um cartão de Boas Festas que recebi há muitos, longos e duros anos: “Paz e felicidade para o ano que entra. Mas não a paz dos que se acomodam, não a felicidade dos traidores e vendidos”. A paz nos obriga à mente centrada em dias melhores, como a esperança dos escravos hebreus no coro Va, Pensiero, da ópera Nabuco, de Verdi: “Vá, pensamento, sobre asas douradas”.



 

sábado, 19 de dezembro de 2020

A LETARGIA ARTÍSTICA E O MERCADO DE ARTE NA CRISE

 


Sempre procuro a etimologia, a origem e o significado das palavras para melhor aplicá-las. Busquei no Houaiss uma breve definição para letargia (do grego lethargía): ”estado de profunda inconsciência, semelhante ao sono profundo, do qual a pessoa pode ser despertada, mas ao qual retorna logo a seguir”. É exatamente o que penso do estado atual das artes de qualidade, principalmente as chamadas performáticas - que acontecem com a presença de público, tais como a música, o teatro e a dança. Em tempos de pandemia, as não-performáticas, como literatura, poesia, composição, pintura, encontram terreno fértil para criação: isolamento, introspecção, neurose e uma espécie de introjeção, reflexo de acontecimentos externos como vindos do interior de cada um.


As artes performáticas – além dos artistas, os profissionais de apoio, técnicos e, claro, o ensino – estão seriamente prejudicadas e algumas em risco. O isolamento as perturba, e apesar de soluções heterodoxas felizes como salas de concerto e shows preparadas, espaçamento entre as pessoas, isolamento dos artistas, ainda se busca soluções criativas para manter vivas essas manifestações, mesclando técnicas online e lives com hora marcada, como se estivéssemos assistindo aos eventos em nossas casas. Mas sem o calor, a presença, a respiração do espectador vizinho, as palmas em efeito coro, os eventuais gritos de “bravo”, “bis”, ou mesmo algum “iuhu”, é inegável que muito se perde.


Nem se fale na óbvia queda de qualidade, uma vez que o público é parte das as manifestações artísticas desde seu surgimento - o ‘fazer arte’ -, e nunca houve um filtro à boa apresentação, algo entre artista e o público, que interagem entre si. Quem já se apresentou cantando, atuando, tocando ou dançando sabe do que estou falando. Aquela curiosidade que vem antes de se entrar no palco (tem público? Casa cheia?) até os naturais sorrisos ao pisar no tablado, a adrenalina, bom hormônio em doses certas que, al punto, acelera os  batimentos cardíacos. Tudo serve para criar um ambiente propício, mesmo com os olhos enevoando a plateia com a chamada “quarta parede”, para que a sensação de ver os rostos do público não invada com tanta força o espaço que é território e domínio do artista.


No final, perde toda a cadeia de profissionais envolvidos nas performances. Mas e as artes não-performáticas? Creia, sobrevivem em plena crise e, em alguns casos, muito bem, obrigado! Matéria de O Estado de SP (11/12) menciona uma análise do mercado de arte em plena Covid-19 em países latino-americanos. Foram consultados marchands, galerias e leiloeiros de pequena estatura, com movimentações de até R$ 500 mil ao ano. Mesmo com a Covid atuando na cena em 2020, as vendas foram bem mais significativas do que no ano anterior. O estudo foi dirigido pela Além Consultoria em Cultura, com a Associação Brasileira de Arte Contemporânea e a Agência Brasileira de Promoção Apex-Brasil.


O mercado brasileiro, pródigo em excelentes autores na área das artes plásticas, teve 78 marchands consultados, e entre eles os que movimentaram além de R$ 10 milhões em 2019, mantendo ou superando as vendas em plenos tempos de Covid. Os negócios chegaram a subir 58% neste ano nos três primeiros meses, de abril a junho sofreram alguma variação negativa e de julho a setembro registraram um crescimento de 55%. O desaparecimento dos leilões ao vivo, devido à pandemia, fez surgirem formas alternativas: visitas presenciais para análise dos objetos à venda com hora marcada, para evitar aglomerações, e pregões virtuais para lances nas obras desejadas. A disputa não sofreu, cresceu. Falamos de um mercado que tem nomes como Di Cavalcanti, Portinari, Guignard, Lígia Clark, Iberê Camargo, Krajcberg, Weissman, Tarsila e Segall, que disputam lances nas vendas da Christie’s e Sotheby’s em NY e Londres.


O que há por trás dessa aparente contradição no mundo artístico? Pura questão financeira,  investimentos mesmo. Ora, vejamos: com as Bolsas em sucessivas quedas, perdas no mercado de capital – as aplicações são frequentemente deficitárias -, o dólar, que já encostou nos R$ 6,00 e hoje descansa sobre os R$ 5,00, o rumo errático da economia do governo, investir em quê? Ora, com a Selic congelada nos 2% a.a., segurando à unha as taxas de financiamento para atrair o consumidor, principalmente o de menor renda na expectativa de aquecer um mercado de trabalho em plena recessão, o investidor abastado e mais esclarecido dispõe de um mercado de que sempre participou, e que agora lhe oferece bons frutos: obras de arte. E não é sempre por amor: um quadro na parede pode guardar em si altos valores, ocupando pequenos espaços e adornando as residências das elites.


Não é um santuário de castas virgens; não raro, é  desvio de dinheiro público e negociatas emoldurado até ser possível usá-lo de forma nem sempre lícita. Entre as ações da operação Lava-Jato e de juízes como Fausto de Sanctis, que ‘grampeou’ o banqueiro Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos, foram milhões de dólares em objetos de arte (foto).


O artista não escolhe quem frui de sua arte. O problema é que, entre as chamadas artes plásticas e performáticas, as primeiras são também investimento financeiro, e as de palco são subvencionadas pelo poder público. O capital privado brasileiro, assim como os governos, não veem retorno político ou financeiro que os recompense, exceção feita aos estereotipados “famosos” da TV e seus clones.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A CAVALGADA DAS VACINAS

 


Vale
citar um trecho da famosa A Cavalgada das Valquírias, da ópera Die Walküre, de Wagner, mais conhecida do grande público pelo aterrorizante ataque aos vietcongs por uma revoada de helicópteros, no filme Apocalypse Now, de Francis Coppola (1979). No Brasil, ensaiamos a batalha, enquanto quase 200 centros do mundo pesquisam vacinas, com cerca de oito já em conclusão. As mais adiantadas trabalham sobre dois princípios, o RNA (material genético) modificado ou o próprio vírus atenuado (explicação simplificada da pesquisadora Isabela Autran, da Fapesp/USP). Em São Paulo, a chinesa CoronaVac já descarregou um bom número de vacinas prontas e 600 litros para serem envasados. A americana Pfizer, associada à BioTechnet/FioCruz, espera até 95% de eficácia nos testes realizados, e já fez acordos com a União Europeia, os EUA e países latinos como Chile, Peru e México. Mas nossa burocracia anda em marcha lenta, apesar da urgência. 


Há outros empecilhos à negociação com a Pfizer, principalmente a necessidade de se armazenar o produto a uma temperatura de absurdos -70ºC, o que provavelmente descarta a totalidade das geladeiras dos postos de saúde, quase todos os SUS e afins. O país tem 5.570 municípios, muitos deles bastante pequenos, e várias metrópoles, como São Paulo e Rio, sem falar no campo e nas aldeias indígenas, que ficariam de lado. A Bahia já se adiantou e comprou certo número de freezers especiais, mas parece que será suficiente para pouco além da capital, Salvador. Se para os menores municípios do país três ou cinco deles poderiam servir, quantos, somente na área urbana da capital paulista, seriam necessários?


O mundo corre 'no vácuo’ do Reino Unido, que já enviou por ferrovias vacinas para centros estratégicos para começar a imunização em massa no dia 8 de dezembro, após aprovação que o assessor para saúde norte-americano Anthony Fauci (foto) – cuja permanência no cargo já foi anunciada por Biden, declarou apressada e perigosa. Os valores em real mencionados no parágrafo anterior mostram que esta vacina seria para uma abastada elite urbana e ‘ungidos’: a US$ 40 (R$ 210) pelas duas doses, mais transporte e freezers para armazenamento de milhões delas, chega-se a um custo estratosférico.


O tipo de freezer que a vacina da Pfizer requer existe em centros de pesquisa, como o Butantan, a Fiocruz e outros, e já são utilizados para experimentos, guarda de órgãos destinados a transplantes, fora as instituições privadas de reprodução assistida, ou seja, congelamento de esperma, óvulos ou embriões (foto), ‘hospedagem’ ridiculamente cara, acessível apenas a uma casta muito rica. Se vários centros não poderiam esvaziar suas geladeiras, outros não abririam mão das fortunas que auferem privadamente, portanto deve haver apenas mais alguns centros, como o HC, o Emílio Ribas e outros públicos, além de Hospitais como o A. Einstein e alguns laboratórios, que também não podem simplesmente esvaziar seus conteúdos.


Cada freezer desses custa US$ 20 mil (mais de R$ 85 mil), fora o transporte, o que lançaria as cifras a níveis exorbitantes. Existe a possibilidade de se adquirir maletas especiais para até 15 dias de transporte, o que somado ao preço total seria impagável. Enquanto isso, a celebrada AstraZeneca/Oxford teve de suspender seus testes e recomeçar devido a uma falha de protocolo, o que atrasa ainda mais nossa batalha particular.


Correndo por fora, a chinesa da Sinovac, CoronaVac/Butantan, que tem custo dez vezes menor e funciona em dose que esperamos única, com eficácia a ser numericamente comprovada, e pode ser armazenada entre 2 e 8ºC em simples geladeiras de postos de saúde ou do SUS. O governo do estado de São Paulo comprou e já recebeu um lote pronto e insumos para envase pelo Instituto Butantan, ficando grandes volumes para mais adiante. O Butantan sofreu uma reforma (foto acima) e se prepara com a ajuda da Fapesp e do Todos pela Saúde (Itaú-Unibanco).


Contudo, aparentemente, há um impasse. O presidente da República já reiterou que não comprará a vacina chinesa, pura e simplesmente, não se sabe se por questão ideológica ou outro motivo desconhecido. Técnico-científico, sabemos que não é, fora bravatas como a do ministro da Economia, sobre “evidências empíricas” (sic), coisa desprovida de sentido cientifico (Estadão, 3/12). E a Anvisa, a ser dirigida por Jorge Luiz Kormann (foto), um tenente-coronel olavista nomeado pelo presidente cujo nome deverá ser ratificado pelo Congresso no dia 19 de dezembro, já vem obstruindo e procrastinando o ingresso da vacina chinesa há tempos.


Porém, um fato recente parece esquecido: Em 6 de fevereiro deste ano o presidente sancionou lei nº 13.979, decretada pelo Congresso, ante a iminência da catástrofe anunciada. Diz o preâmbulo: “Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública (...) decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019” (sic). E, no caput do Art. 3º: “poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas”. Entre elas, diz o inciso VIII: “autorização excepcional (...) para a aprovação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que: a) registrados por autoridade sanitária estrangeira”.

Em tempo: cavalgada ou cavalhada vem de cavalgata, um desfile que representa o duelo de lanças e espadas entre azuis e vermelhos, cristãos e mouros, do sul do Brasil a Minas e Bahia, tradicional folguedo introduzido no país, como tantos outros, por influência da ocupação mourisca da Península Ibérica.




sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A GUERRA DAS VACINAS

 


Era o ano de 1904. Presidente da República, Rodrigues Alves ainda enfrentava os ranços da ditadura de Floriano Peixoto, que já vinha de Deodoro, tempos eivados pelo forte estigma positivista de Comte e Durkheim. O grande médico sanitarista Oswaldo Cruz liderava uma campanha de vacinação em massa contra o vírus da varíola, doença que matava em 30% dos casos e deixava os sobreviventes com sequelas como cegueira e bolhas, feridas e cicatrizes pelo corpo. Houve campanha mundial de vacinação em massa, mas a OMS somente veio a declarar a doença extinta em 1980.


Por trás do movimento que ocasionou uma rebelião popular, chamada Revolta da Vacina, havia uma trama dos velhos positivistas para deflagrar um golpe de Estado, estimulando o movimento na capital da República, Rio de Janeiro. O povo, insuflado, não se conteve e foi às ruas: uma lei imporia aos cidadãos não-vacinados uma série de restrições, tais como viagens, empregos, matrículas em escolas e até casamentos. O país já estava assolado pela febre amarela e a peste bubônica, e o medo da vacina antivariólica balançava sobre a cabeça do povo como a espada de Dâmocles. O golpe de Estado aconteceu, levou 30 vidas, centenas à prisão e deportou outros tantos. Mas teve vida curta: oito dias.


Um século e quinze anos depois, sobre um outro vírus, o SARS-CoV-2, ou Covid-19, no dia 25 de novembro de 2020 o conceituado jornal norte-americano The New York Times publicou matéria intitulada “Depois de admitir erro, AstraZeneca enfrenta difíceis questões sobre sua vacina”, e disse que “alguns dos participantes do experimento somente receberam uma dose parcial da vacina”. E mais: “especialistas disseram que a divulgação irregular pela farmacêutica comprometeu a confiança”. Importante lembrar que o NY Times é um jornal americano e que a vacina da AstraZeneca uma parceria privada com a Universidade de Oxford, menina dos olhos dos ingleses na pesquisa contra o vírus.

Sir John Bell

No dia seguinte, 26 de novembro, foi a vez do jornal britânico The Guardian noticiar: “Vacina Oxford/AstraZeneca será submetida a novo teste global”, e, completando, “críticos questionam a informação de que ela poderia proteger até 90% das pessoas contra o coronavírus”. Sir John Bell, assessor do governo para assuntos de saúde e professor emérito de medicina, segundo o jornal, desmentiu as informações de que o teste anterior não havia sido corretamente aplicado ou reportado, e disse, literalmente, que “nós não estaríamos ‘cozinhando’ isso enquanto seguíamos em frente”, e que esperava que informações completas e abalizadas por analistas seriam publicadas no jornal de medicina Lancet, no fim de semana”.

Instituto de Ciências Biológicas/USP

Logo no dia seguinte, 27 de novembro, o The Times noticiou: “Antivacinas exploram confusão sobre a vacina de Oxford”: “militantes antivacinação apegam-se à crítica feita à AstraZeneca para respaldar teorias não fundamentadas sobre segurança, e argumentaram que falhas nos experimentos poderiam causar prejuízo à ciência”. De um lado, um noticiário mais azedo do americano NYT, e do outro uma velada defesa da vacina de Oxford pelo britânico The Times. Enquanto isso, entrava um tertius na briga, o grupo antivacina. No Brasil, a microbiologista Natália Pasternak, do ICB/USP e presidente do IQC, apresentou, no Estadão de 27 de novembro,  uma opinião mais técnica, não-política, dizendo que os voluntários a que se refere a suposta falha do consórcio deveriam ter sido simplesmente excluídos da experiência (o que nos induz a crer que a falha ainda poderia ser corrigida).

Sputnik 5

Enquanto a Rússia mantém sob um véu sua vacina, a Sputnik-5 (nome do primeiro satélite a levar animais ao espaço), a China entra em estágio de finalização para a fase 3 da CoronaVac. Enquanto o mundo avança e o que se vê é uma “guerra mundial das vacinas” e uma corrida pela cura, por aqui há uma queda de braço entre os governos federal, via Anvisa, e do estado de São Paulo, que tem o modelo chinês como seu futuro grande trunfo político. Trata-se de uma guerra particular, talvez uma batalha intestina dentro de um conflito de ampla escala, uma disputa estratégica em que os dois governantes travam um embate cujo maior prejudicado será o povo, caso haja obstruções, impedimento ou procrastinação sem motivos científicos de rigor que embasem a Agência de Vigilância.

Sede da Pfizer nos EUA

Enquanto isso, seguem em paz a Johnson & Johnson e a Pfizer americanas, esta última com uma das maiores farmacêuticas do mundo, com sede em NY, receita anual de US$ 51,75 bilhões e ativos de US$ 167,489 bilhões em 2019 (perto de um trilhão de Reais). Em 1987, Gilberto Gil profetizava em uma música, coincidentemente batizada Lunik-9: “Guerra diferente / das tradicionais / guerra de astronautas / nos espaços siderais”. Não, ainda não chegamos a esta modalidade, mas sim a outra, uma espécie de guerra fria do capital, do poder, do lucro e das ambições de governantes, da disputa pela prevalência de um país sobre o outro, uma Guerra Mundial das Vacinas.

Oswaldo Cruz

A disputa de âmbito nacional torna-se uma questão política, talvez uma Batalha das vacinas. E o célebre Oswaldo Cruz, herói brasileiro na campanha de 1904, que dá nome à FioCruz, sede brasileira da AstraZeneca/Oxford e um dos dois maiores centros de pesquisa sobre Covid no país, amargaria ver tanta disputa, tanta ganância e tanta política, e, entrando em campo pela linha de fundo, os velhos antivacinas – e não mais os positivistas do início do século 20, mas os novos donos de outras bandeiras tão retrógradas quanto as deles.