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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

O ARCO: ELO PERFEITO ENTRE FORMA E FUNÇÃO

Ponte medieval em Plön, perto de Lübeck, Alemanha

O arco teve, desde sua origem, uma aura de simbolismo, mistérios e virtudes que remontam à antiguidade. Nas construções, a forma em arco evita o estresse em um ponto só, a força de sustentação é distribuída por toda a estrutura do vão, haja vista inúmeras obras que resistem ao passar dos séculos. Fator de grande importância na sustentação de pontes, às vezes até mesmo sem uso de qualquer tipo de massa ou cola entre as peças, quer sejam elas de pedra ou produzidas com outro material, aproveitam-se da gravidade, todas as forças convergindo, distribuídas em direção ao centro.
Mstislav Rostropovich (The Telegraph)
(Nas aulas de música, era pensando nisso que eu mostrava que os dedos dos instrumentistas de cordas devem trabalhar arqueados como se a mão estivesse em repouso. Assim, eles se movimentam com a tensão bem dividida entre os músculos, ao invés de quando os dedos estão retos ou se curvam para trás, esforço concentrado que dificulta o relaxamento).
(Sobre o arco desde os longínquos tempos no extremo Oriente, para todas as áreas de interesse, da filosofia à música e relaxamento físico e espiritual,  recomendo a leitura de um sábio livrinho, "A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen", de Eugen Herriger , Ed. Pensamento)

Não há como deixar de falar no Arco do Triunfo, de Paris, um dos mais famosos monumentos do mundo. Erguido em homenagem aos heróis da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas, sua construção abriga, também, a tumba do soldado desconhecido da I Grande Guerra. Inspirado no Arco de Titus (ano I d.C.), de Roma, o de Paris fez história: outros o seguiram, como o Monumento à Revolução Mexicana (início do séc. 20) e o Arco do Triunfo de Pyongyang, Coreia do norte (1982), entre muitos.
No Brasil, os belos Arcos da Lapa, no centro do Rio, são a maior obra de arquitetura dos tempos da colônia. Na verdade, trata-se um empreendimento a priori não  urbanístico: servia para sustentar um aqueduto para trazer água do Rio Carioca. Foi planejado no início do séc. 17, e as obras se arrastaram de 1660 até a conclusão, em 1723. O aqueduto dos Arcos sofreu diversos problemas ao longo dos anos; com a República, novas formas de abastecer o Rio de Janeiro foram sendo encontradas e, por feliz iniciativa, cinco anos após a Proclamação aqueles Arcos, já um símbolo da cidade, foram destinados aos bondes da Cia. de Carris Urbanos, levando passageiros à aprazível Santa Teresa, hoje bairro simples mas badalado e sempre na moda – uma espécie de Greenwich Village de Manhattan ou Vila Madalena em São Paulo. Com lindas vistas chacoalhando na subida do bonde, é cartão-postal e faz parte do roteiro turístico da cidade.
Um ravanastron e seu arco
Na música, arte em que é personagem fundamental, o arco dos instrumentos de cordas nos primórdios em tudo se assemelhava ao seu homônimo usado para arremessar flechas: vareta curvada em forma de meia-lua entre cujas extremidades era atada algum tipo de corda ou cerda retorcida. Há 2.500 anos, os nômades do Mar Cáspio já tocavam o rebab, ancestral da nossa rabeca, mas o ravanastron (tributo ao rei Ravana, de Lanka) da Índia e Sri- Lanka, é o que guarda mais semelhanças com a diversidade de instrumentos atuais.
Arcos barrocos
Com o tempo, o arco sofreu diversas transformações: das grandes curvaturas côncavas passou por uma silhueta quase retilínea até chegar ao formato atual, ligeiramente convexo. A família das antigas violas de arco era grande: a partir das chamadas da braccio, tocadas como violinos, passando pelas da gamba, entre as pernas, como no violoncelo, e o violone, que deu origem ao contrabaixo.
Giuseppe Tartini
No século 18, o relojoeiro e depois grande archetier (fabricante de arcos) François Tourte concluiu que o pau-brasil ou uma de suas variedades, como o Pernambuco, seria a madeira ideal, dada sua flexibilidade, densidade (afunda n’água) e pelos veios perfeitos, sem nós. E assim permanece até hoje. Depois, Tourte curvou a antiga vareta ligeiramente côncava ao contrário, em suave forma convexa, dotando-a de um tipo de flexibilidade que possibilitou muitos novos golpes técnicos e arcadas. O virtuose Giuseppe Tartini (1692-1770) idealizou o parafuso interno à vareta que serve para puxar uma peça de madeira chamada talão e retesar um feixe de crina de cavalo, esticada entre a ponta e a extremidade inferior. O arco passou a ser uma ferramenta até mais importante para o músico do que o próprio instrumento. Ouvi grandes solistas dizerem que preferem um violino mediano e um ótimo arco do que um ótimo instrumento e um arco ruim.
Por Debret
Poderíamos continuar a discorrer interminavelmente sobre o arco, sua importância e vasta utilização na música, abrir o leque para as centenas de instrumentos de arco e suas peculiaridades, do passado longínquo ao presente.  Poderíamos falar no arco (ou verga) do berimbau, que, por isso mesmo vergado por um fino cabo de aço e percutido com uma vareta, usa uma cabaça na parte inferior como caixa de ressonância – instrumento da capoeira: música, dança e esporte que devemos aos africanos que para cá vieram escravizados. (Recomendo de coração a leitura de um livrinho mágico, A Arte cavalheiresca do Arqueiro Zen, de Heinz Herriger). 
Violeta Parra (1917-1967)
Além de tudo, a forma do arco também é poesia, e como letra também serve à criação musical, como na linda canção de protesto “Volver a los 17”, da chilena Violeta Parra: “...el arco de las alianzas / ha penetrado em mi nido / (...) se ha paseado por mis venas / y hasta las duras cadenas / con que nos ata el destino” – música gravada por uma infinidade de artistas, de Mercedes Sosa a Joan Baez.
Falando de um arco, Chico Buarque descreve a saudade com uma imagem brilhante em “Pedaço de Mim”: um sentimento a um só tempo doce e perverso, lindo e doloroso, de alguém que nunca voltará: “Ó, pedaço de mim / Ó, metade exilada de mim / leva os teus sinais / que a saudade dói como um barco...” Para concluir: “que aos poucos descreve um arco / e evita atracar no cais”
(Com Chico Buarque e a linda e melancólica voz de Zizi Possi)



sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O FUNDAMENTALISMO POLÍTICO E RELIGIOSO


O Estadão publicou, no dia 12/11, matéria que acende a luz vermelha: “Até que ponto chega o ódio cego e visceral, quando não patológico” (link da TVT logo abaixo). Palavras do ministro do STF Celso de Mello, indignado com a alucinada incitação de uma advogada gaúcha: “estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF”.  Ela protestava contra a decisão da Suprema Corte pela inadmissibilidade da prisão em segunda instância, antes de esgotados todos os recursos e o trânsito em julgado. A advogada se referia, claramente, à decisão que teve como consequência a soltura do ex-presidente Lula. Sem entrar no mérito da questão, que é coisa julgada, sirvo-me desse gravíssimo incidente de possíveis desdobramentos penais para uma digressão a partir do que Mello chamou “fundamentalismo político”.

O então deputado Moreira Alves, em seu pronunciamento
Para mim, foi imediata a associação das palavras da advogada a um discurso do passado, guardadas as proporções e o contexto histórico. Em setembro de 1968, em Brasília, o então deputado Márcio Moreira Alves fez um pronunciamento, no Congresso, com teor naïve se comparado ao tom da advogada contra o STF. Longe de ser uma ameaça criminosa, a fala de Alves foi uma atitude até pueril naquele momento crítico do país.
UnB, 1968
A Polícia Militar do Distrito Federal havia invadido a Universidade de Brasília (UnB) e Alves subira à tribuna para pedir o boicote ao desfile de 7 de setembro, que seria um artifício para incutir no povo um “falso instinto patriótico”. E estendeu o pedido “às moças, aquelas que dançam com cadetes e namoram oficiais”. O governo Costa e Silva, via STF, exigiu do Congresso a cassação de Alves, que terminou rejeitada. Foi o estopim: em dezembro, três meses depois do discurso e seus desdobramentos, era baixado o hediondo AI-5; Alves fugiu do país, retornando somente com a anistia, em 1979.
Karen Armstrong
A inglesa Karen Armstrong (1945), formada em Oxford e ex-professora da Universidade de Londres, conseguiu uma façanha: chegou a ser freira durante sete anos, no Sagrado Coração de Jesus, hoje leciona Judaísmo e Treinamento para Rabinos na escola superior Leo Baeck e é membro honorário da Associação de Estudos Sociais Muçulmanos. Seu precioso livro “Em Nome de Deus¹” remete a 1492, ano em que, segundo ela, aconteceram três fatos de suma importância para Cristãos, Judeus e Muçulmanos: “a descoberta da América, a conquista de Granada e a expulsão dos Judeus da Espanha”, quatro décadas após a queda de Constantinopla.
Muhammad XII se rende aos "reis católicos" (F. Pradilla)

Baruch Spinoza
Com seu cabedal e ecletismo, Karen tornou-se uma das maiores especialistas sobre o fundamentalismo nas três grandes religiões monoteístas. O livro traz uma caudalosa bibliografia como suporte, incluindo textos de Nietzsche e os teológico-filosóficos de Spinoza, e é primordial para quem quer compreender o fundamentalismo político ou religioso (ou ainda ambos em convergência) nos dias de hoje.
Embaixada da Venezuela invadida
Dias após a investida afrontosa da advogada contra as filhas dos ministros, um grupo de 30 militantes favoráveis a Juan Guaidó, autoproclamado presidente da Venezuela, invade a embaixada de seu país em Brasília. Segundo declarou à Revista Forum o deputado Paulo Pimenta, que lá esteve, não lhe parece que o governo brasileiro tenha relação com o episódio em si, mas foi notório o acirramento de ânimos após o declarado apoio do Brasil a Guaidó contra o presidente Maduro. Detalhe importante: todos os invasores venezuelanos portavam mochilas com celulares, carregadores, baterias e... uma bíblia - o que nos leva à certeza de que o fenômeno que acontece no Brasil não nos é exclusivo, está presente em vários outros lugares. Além de cristãos de diversas ordens e seitas, incluindo as obscurantistas como os católicos “Arautos do Evangelho” e “Opus Dei”, são tão fundamentalistas quanto alguns núcleos ortodoxos judeus e muçulmanos, seguindo a ótica equidistante e imparcial de Karen Armstrong.
Sempre em nome de Deus, é inegável que o fundamentalismo político e religioso vem avançando no Brasil. Sem qualquer nexo, a ministra Damares Alves (também  já alvo de críticas do ministro), em um seminário sobre a “cura gay” (Estadão, 12 de novembro), disse que “o Estado é laico, mas não é laicista”. No dia 2 de janeiro já havia declarado ao mesmo jornal: “O Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã”. Laicista é um termo que não está no VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) nem no Houaiss, há uma referência  no Priberam . Damares na verdade quis contrapor-se a quem compreende a laicidade, “qualidade do que é laico ou leigo”. Todas essas palavras que remetem à mesma coisa. Ou seja, têm a ver com o antigo secularismo e o lema revolucionário francês “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” identificado, em 1905, com a lei que determina a separação entre Igreja e Estado. Hoje, políticos tentam seduzir certas correntes religiosas que, além de lhes proporcionarem o apelo hoje sedutor do extremo conservadorismo, representam números bastante significativos na contabilidade eleitoral.
A indignação do ministro Celso de Mello com a provocação da advogada não é só dele, que de pronto resolveu manifestar-se à luz de sua vasta cultura jurídica e universal, à parte das possíveis consequências de uma denúncia criminal. Na verdade, ele representou todos os brasileiros que pensam um país mais justo, mais digno e sob plena democracia. Quem diria, o discurso de Moreira Alves virou história da carochinha.

[¹AMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus (O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo). Trad. Hildegard Feist. SP: Ed. Schwarcz,  2001]

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

OS BICHOS E A MÚSICA


Seja em  nosso folclore, no de outras regiões ou países, seja na música clássica, popular ou de vanguarda, a fauna sempre está presente. A associação entre animais e música surge tanto pelo som quanto pela aparência de um instrumento, pela forma da obra ou pela técnica de composição. Caranguejo, do latim cancer, o crustáceo, dá nome a uma dança do fandango do sudeste brasileiro. E é também um tipo de composição canônica – também do latim, canon, que quer dizer regra, e é forma que vem de meados do século 13. Vozes de uma mesma curta melodia vão ingressando em compassos diferentes, até que elas se entrelaçam em uma cantilena sem-fim, como na conhecida brincadeira infantil Frère Jacques.
Serpentão
Cobra é uma dança do fandango paulista em que homens e mulheres, organizados em sinuosas filas (de onde o nome da festa), dançam, sempre acompanhados por violas caipiras e violões. Gilberto Gil canta Procissão em sua religiosidade sincrética - ora católica, ora umbandista, como bom baiano -, lembrando o andar sinuoso do réptil: “Olha, lá vai passando a procissão / se arrastando que nem cobra pelo chão / e as pessoas que nela vão passando / acreditam nas coisas lá do céu”. O serpentão (em francês, basson serpent, ou basse-cor), é um instrumento de sopro derivado do corneto, criado na França do final do século 16. Tinha voz grave e formato de “S”, e reforçava a voz dos baixos nos coros das igrejas. Caiu em desuso no séc. 19.
Pedro e o Lobo é uma obra sinfônica brincalhona e didática de Sergei Prokofiev (1891-1953) cujos personagens são Pedro (violino), seu avô (fagote), o ágil gato (clarineta), o passarinho (flauta) e o pato (oboé). E os caprinos? No Brasil, bode não é coisa boa, pode ser a ressaca de um porre, um azar ou coisa ruim, como cantou Macalé nos anos 1970: “Se amarrar algum bode eu mato / se amarrar algum bode eu morro / mas eu volto pra curtir”.
Depois de crustáceo e réptil, um aracnídeo. A tarântula, ou caranguejeira, é uma aranha peluda que desperta medo, mas seu veneno, no século 19, era usado para fins medicinais. Tarantulismo seria um distúrbio mental, compulsão frenética para dançar, mazela atribuída à picada do bicho. Dança em agitado compasso 6/8 originária de Taranto, na Itália, à tarantela, no século 17, eram atribuídos poderes de neutralizar o veneno daqueles bichos peçonhentos. Pelo velocíssimo andamento, requerem virtuosismo do instrumentista, como nas tarantelas de Liszt, Glière, Saint-Saëns, Sarasate, Bottesini e vários outros.
A divertida tarantella (Brittanica)

Cavalo marinho
Ah, os equinos! Na capoeira, cavalaria é um toque que serve para avisar os jogadores quando a polícia se aproxima. A cavalgata, ou cavalhada, tradição que vai do sul do Brasil à Bahia, é algo entre cena de dança com espadas e duelo com lanças sobre cavalos, representando a luta entre mouros e cristãos durante a ocupação da Península Ibérica. O cavalo-marinho é um festejo pernambucano das comemorações natalinas que vão até o dia dos Reis Magos. Acompanhado por rabeca e percussão, perfila com bovinos: boi-bumbá, o bumba-meu-boi maranhense, ou o boi-calemba do Recife. Mas muito cuidado! Nunca diga boi com abóbora perto de um carnavalesco, a expressão se refere a samba ruim, mal-ajambrado.
Cavalo marinho, o bicho.

Falando em bovinos, cabe lembrar o boi voador, animal empalhado a mando de Maurício de Nassau, governador da colônia (séc. 17), que deu troco  à negativa da coroa holandesa de financiar uma ponte sobre o Capiberibe, entre Maurícia e Recife (o reino neerlandês advertira: verba para ponte “só no dia em que boi voar”). Às suas próprias expensas, Nassau fez  a ponte, mas encomendou um boi empalhado, sob roldanas, que atravessou o rio, na inauguração, como um teleférico. Inspirou Chico Buarque na divertida “Boi Voador”, que liga a anedota de Nassau com o período em que a censura havia proibido falar do boi gordo retido no pasto, retardando o abate: “Quem foi, quem foi / que falou no boi voador / manda prender esse boi, seja esse boi o que for”.
Besouro (Fiocruz)
Há também insetos como o besouro, um coleóptero pesado para as finas asas traseiras que o fazem voar (as dianteiras servem apenas de carcaça). Elas têm de se agitar com muita velocidade para alçar o bicho a voo, fazendo zumbido. O compositor russo Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908) é autor de uma ópera, A Lenda do Czar Saltan, em cujo terceiro ato o príncipe Gvidon, filho do monarca, pede a um pássaro mágico que o transforme em um besouro, para que possa ir ter com seu pai - a música descreve o voo errático e agitado do inseto. Mas o “Voo” descolou-se da ópera e passou a ser mais conhecido como peça de concerto de grande dificuldade, tendo sido gravado por boa parte de nossos virtuoses do piano e violino. O lendário flautista James Galway usa a técnica da respiração circular (circle breathing), para que o “voo” não sofra interrupção – ele inspira pelo nariz enquanto assopra no bocal o ar armazenado.
(worldwide.org)
O Elefante dá nome a  um solo dos contrabaixos em O Carnaval dos Animais, do francês Camile Saint-Saëns (1835-1921), o quinto dos catorze movimentos que representam diversos bichos. O 13º, O Cisne, é repertório de dez entre dez violoncelistas, em cuja versão para balé a fenomenal Anna Pavlova fez um cisne inspiradíssimo (1905), sublime dança de luta contra a morte até o momento derradeiro. Assista:


Uma tese sobre bichos e música seria um trabalho interminável. Busquei apenas homenagear os animais, nossos companheiros e inspiração. E os melhores amigos!

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A ARTE POPULAR EM TRANSPOSIÇÃO ERUDITA

Tanguinho e maxixe
Troquei algumas ideias com minha filha Marta Autran acerca de sua tese de PHD, em vias de ser defendida em Londres, e fiz algumas reflexões além do tema, as sonatas para violoncelo de Camargo Guarnieri.  Mencionei-lhe o maxixe, o ponteio, as danças e até o tango brasileiro (tanguinho) de Ernesto Nazareth na música do tieteense, como fonte de inspiração ou influência. (Na verdade, o tango brasileiro – ou tanguinho - nada ou quase nada tem a ver com o original argentino, título que veio na garupa do sucesso portenho: o “nosso” tango era uma mescla de maxixe, habanera e polca surgida no final do século 19).
Mário de Andrade
Mario de Andrade advogava uma “transposição erudita” da música popular à música de concerto. Mas de forma alguma disse que o compositor clássico deveria fazer “arranjos” de música popular. Falou em transpor a arte de raiz com elaborada erudição - no sentido de profundo saber e técnica apurada (nada contra o fazer música popular com a formação que bem se entender, seja sinfônica, coro ou quarteto).
Flávio Silva (foto Funarte)
Isso me lembrou uma breve e salutar divergência que tive com o pesquisador Flávio Silva (falecido em 8/10/2019) na Concerto, revista de circulação nacional, e faço-lhe aqui um mea culpa. Debitei apenas na conta do Rio de Janeiro a responsabilidade pela invenção do termo “música erudita”, quando da primeira turma de professores da área na Universidade do Brasil - forma de justificar a falta de diploma superior entre os musicistas ingressantes. Chancelaram-lhes o título de detentores de profunda “erudição”(fora da música popular), perfilando-os com os colegas de direito, por sua vez inspirados na beca, toga e capelo dos acadêmicos d’além-mar, os colegas de Coimbra.
Universidade do Brasil (hoje UFRJ)
Se conferi aos acadêmicos da Universidade do Brasil no Rio a origem do termo “música erudita”– que nem os cariocas usam mais, diz-se “música clássica” ou “música de concerto”, como fazia o maestro Eleazar -, por outro lado o saudoso Flávio Silva creditou a origem da expressão a São Paulo, com Mário de Andrade. Não me lembro de Andrade ter utilizado o termo completo – música erudita -, que, de passagem, sequer existe em outros idiomas. Tudo, caro Flávio, pode ter sido uma feliz divergência que nós, sobre a origem da expressão nesse semi-árido mundo da música de concerto, terminamos por convergir, em cumplicidade, entre Rio e São Paulo.
O jovem Camargo Guarnieri
A “transposição” a que se refere Mário de Andrade é a de Marlos Nobre, compositor pernambucano, como foram as de Guarnieri, Villa-Lobos, José Siqueira, Guerra-Peixe, e como faz o jovem conterrâneo petropolitano dele, o meu amigo Ernani Aguiar, entre diversos outros. Uma das sonatas de Guarnieri analisadas por minha filha data de 1931 e soaria contemporânea e ímpar nos dias de hoje. Não é mero acaso senti-la, nessa contemporaneidade quase precoce em relação ao presente, remetendo aos ponteios de viola e violão, às danças e maxixes. Afinal, até os 17 anos Guarnieri foi “pé-vermeio” menino do interior paulista que travou contato com gêneros e ritmos populares. Costume que cedo, inoculado na pele, é benigno e prazeroso, acompanha qualquer artista por toda a vida.
O Lavrador, de Portinari (1939)
Nas artes plásticas, remeto a Cândido Portinari (1903/1962), que nasceu em uma fazenda em Brodowski, São Paulo, e ainda jovem foi estudar na Escola de Belas Artes, do Rio. Esperto, chegou a pintar (de nariz torcido, claro) um óleo acadêmico só para ganhar medalha de ouro e uma estada de dois anos em Paris, período que lhe resultou fundamental na vida. Mas a ótica pessoal de Portinari era moderna, e seu coração brasileiro. Ele retratava o homem do campo, o sertanejo, o retirante, sempre com os olhos com que os via: os rostos carregados de sofrimento, os pés descalços inchados de tanto caminhar no barro seco e nas pedras – “nos intervalos de pedra plantava palha”, disse João Cabral em “Morte e Vida Severina”; as mãos, calejadas pelo peso da enxada, e dilatadas pela tinta carregada do artista. Penso que a “transposição erudita” de Portinari – das raízes profundas à sua visão técnica modernista - se dá por um virtuosismo pessoal, distante da academia, sofisticação que ele transforma dentro de si próprio, tal e qual Guarnieri.
João Cabral
Um pouco antes, neste texto, citei o premiadíssimo João Cabral de Melo Neto (1920-1999), um dos  nossos maiores poetas, ou o maior da língua portuguesa para muitos, como o festejado Mia Couto. Teve formação intelectual exemplar e grande erudição, lia e conhecia de tudo, foi diplomata de carreira. Mas entre a prosa escorreita do Itamaraty e a livre poesia ficou com a segunda, versos sofisticados que lembram um livro de cordel, e mesmo com frequentes rimas simples, pobres ou repetidas apegou-se à tecelagem barroca das palavras, rendendo-se ao surreal por vezes como Portinari no pincel, sem nunca se esquecer dos pés arraigados na terra brasileira.
Capa da primeira edição: como cordel
Vale ler com atenção: “Esse que andando planta / os rebolos de cana / nada é do Semeador / que se sonetizou. / É o seu menos um gesto / de amor que de comércio / e a cana, como a joga (N.do A.: pedra de rio), não planta: joga fora” (em “A cana dos outros”).  A armação intricada de palavras simples dentro de uma confecção muito elaborada, preciosista, vai compondo sobre um ritmo que o leitor precisa acompanhar, às vezes retrocedendo um verso para avançar dois no encadeamento do estilo do autor.
Bom nordestino, João Cabral transpõe à sofisticada poesia a aridez da caatinga, a fome, o desespero. Como em “Morte e Vida”, “fazendo dos dedos isca pra pescar camarão”). 
[homenagem a Flávio Silva]
Foto: Stock


sexta-feira, 1 de novembro de 2019

OS ESCRAVOS HEBREUS E OS CORTES NA CULTURA ITALIANA

O jovem Verdi, por Victoria Francisco

Verdi não teve muita sorte desde que nasceu, em 1813, em Roncole (hoje Roncole-Verdi), na província de Parma, Itália, ocupada por Napoleão - por coincidência, o mesmo ano em que veio à luz Richard Wagner. Um, para glória dos italianos, o outro para júbilo dos alemães. Carlo, pai de Verdi, e Luiza, a mãe, por medo batizaram-no Joseph Fortunin François Verdi, prenomes bem franceses. Passou a assinar Giuseppe apenas mais tarde, assumindo de peito aberto sua nação. Estudava e tocava órgão na Igreja de Roncole desde os 12 anos de idade, mas não estava preparado o suficiente para, alguns anos depois, conseguir ingressar no disputado Conservatório de Milão. Continuou a estudar e compor, e aos vinte anos escreveu a ópera Oberdo, Conde de San Bonifacio, um rotundo fracasso.
Igreja de Roncole, em frente à casa de Verdi

Em 1840, Verdi amargou o infortúnio da encefalite viral que vitimou sua mulher e dois filhos. Agarrando-se ao que lhe restava, a música, compôs Um Giorno di Regno (“Um Dia de Reinado”), melodramma giocoso que igualmente não vingou – sinal de que o gênero não coadunava com seu perfil de patriota e humanista, cheio de ideias. Não desistiu, e finalmente alcançou seu momento de glória com Nabucco (1841), ópera em quatro atos sobre um libreto que lhe caíra às mãos como uma bênção: Nabuchodonosor, de Temistocle Solera. Com o texto, partiu para Milão imbuído de verdadeiro espírito patriótico, chegando a engajar-se no Risorgimento de Giuseppe Garibaldi, líder do movimento pela unificação e independência da Itália. Entre outras óperas, alcançou grande fama com Rigoletto, Macbeth (que o fez merecer o apelido de O Shakespeare da Ópera), Il Trovatore, Aída e La Traviatta, além de uma ópera cômica, Falstaff, e o grandioso Requiem. Mas é com Nabucco que vou desenvolver este texto.
La Scala
Verdi estreou parceria musical e se apaixonou por Giuseppina Streppone, soprano do La Scala que viria a  atuar no papel de Abigaille, então já casada com o compositor, na estreia de sua ópera Nabucco. É um drama de sentido claramente político, passado em 487 a.C., na Babilônia e Jerusalém, inspirado no Salmo 137 (“Pelos Rios da Babilônia”) e textos bíblicos de Jeremias e Daniel.
Nabucco, vestimenta para a estreia
Os hebreus faziam suas preces, enquanto as forças babilônicas atacavam. Fenena (mezzo-soprano), filha mais nova do rei Nabucco, é tornada refém. Abigaille, suposta filha mais velha de Nabucco, invade o Templo com soldados da Babilônia, mas Zaccaria (baixo), rabino líder dos judeus, ameaça de morte a prisioneira Fenena, filha caçula do rei.
No terceiro ato (“A Profecia”), Abigaille, já rainha da Babilônia, vê Nabucco chegar para reassumir o trono, dizendo ter provas de que ela na verdade não era filha dele, e sim uma escrava. Em “Às Margens do Rio Eufrates”, segunda cena do ato, o rabino Zaccaria exorta os hebreus a terem fé porque Deus destruiria o inimigo, a Babilônia, e eles enfim rumariam à sua terra. Nesta cena acontece um dos coros mais lindos e emocionantes da história da música: os escravos hebreus entoam Va pensiero, sull’ali dorate (“Vá, pensamento, sobre as asas douradas”), logo um segundo hino nacional italiano, cantado em ocasiões especiais.
Mario Zaccaro (foto: Papo Cult)
(E até aqui entre nós: certa vez, em 1992, na Câmara de SP, em votação de interesse dos Corpos Estáveis do Theatro Municipal, o maestro e amigo do coração Mario Zaccaro, da plateia, ergueu os cantores presentes para um lindo Va pensiero”. Levantou também o plenário, parlamentares voltados para a plateia admirando a cena, até que, ao final da apresentação, todos - vereadores, coro e plateia - aplaudiram com vigor. A lei passou por unanimidade).
Vá, pensamento, sobre as asas douradas
 vá, e pousa sobre as encostas e colinas
 onde os ares são tépidos e suaves
com a doce fragrância do solo natal!

(...) Ó, minha pátria, tão bela e perdida!
Ó, lembrança, tão cara e fatal!
  (...) Reacende a memória no nosso peito
 fale-nos do tempo que passou!
 (...) Traga-nos um ar de lamentação triste
ou que o Senhor inspire harmonias
que nos incutam a força para suportar o sofrimento.

Riccardo Muti, em sua fala
Um outro brilhante fato recente, eivado da vocação política dos italianos, aconteceu na Ópera de Roma em 12 de março de 2011. O grande maestro Riccardo Muti regia a ópera Nabucco, quando, terminado o Va pensiero, fez gestos para que plateia, orquestra e coro silenciassem. Fato inusitado durante apresentações de óperas, Muti virou-se para o público, e depois de ouvir um solitário viva l’Italia!, repetiu a frase, encadeando uma digressão sobre o quanto toda a vasta cultura italiana era importante. Lembrou os versos “minha pátria, tão bela e perdida”. Com elegância, referia-se aos cortes na área cultural que estavam sendo impingidos pelo governo de Silvio Berlusconi – uma gestão permeada de escândalos, subornos, corrupção e até pornografia, cenas com uma adolescente de apelido Ruby: o “affair Rubygate”.
Mas as cortinas do grande drama da noite ainda estavam por ser descerradas. Depois do discurso, Muti anunciou um bis de Va pensiero, e pediu aos presentes que cantassem junto. Inflamada por intensa emoção, a plateia, de pé, irmanou-se ao coro, e atirando seus programas de concerto do alto da última galeria e balcões, abriu-se em festa esvoaçante e cheia de lágrimas, tanta emoção que nem o coro se conteve.
Pressionado pela sucessão de escândalos, o primeiro-ministro Berlusconi renunciou em 16 de novembro de 2011, oito meses após aquele Va, Pensiero (discurso e bis logo abaixo).