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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

UMBERTO E O ECO DE SUA OBRA ABERTA

O pêndulo de Foulcault
O trabalho que marcou em minha vida o nome de Umberto Eco, nascido na Itália em 1932, não foram seus belos romances e escritos literários mais conhecidos, como o romance O Nome da Rosa e sua incursão no ocultismo, na cabala e nos templários, “O Pêndulo de Foulcault”. Foi, sim, sua “Obra Aberta” (1962), que me iniciou, ainda novo, na liberdade de interpretar minhas leituras, músicas e a arte em geral, longe das amarras impostas pelos (ou aos) artistas em formas conclusivas e “definitivas”.

O indeterminado, o imprevisível, o duplo ou múltiplo sentido passaram às vezes a ser a parte mais rica nas minhas observações sobre a arte. A ideia de que uma obra se abre a bem mais do que uma única interpretação me deu uma ferramenta importante até mesmo para a revisão de conceitos e conhecimentos já adquiridos.

(filmow.com)
Machado de Assis criou sua Capitu, do romance Dom Casmurro, de 1899, que conta dos olhos de cigana, “oblíquos e dissimulados” da meiga jovem. Ao correr da trama, Machado cuidou de semear aqui e ali coisas que, a partir de certo ponto da leitura, se unem não em uma conclusão – pelo contrário, abrem uma rica dúvida. Afinal, Capitu traíra ou não Bentinho? O mestre não quis fechar uma conclusão em nosso nome. Pelo contrário, deixou que os leitores concluíssem – ou não.

A riqueza machadiana é tão grande e importante em nossa literatura que a dúvida em Dom Casmurro serviu a um inteligente trabalho (2008), oportuníssimo nos cem anos de morte do autor, “Capitu mandou flores” organizado por Rinaldo de Fernandes. Nessa obra, diversos autores brasileiros consagrados dão sua versão, cada um em seu breve conto, ao chamado enigma de Capitu.  Meu pai, Autran Dourado, escreveu uma variação sobre o tema “Missa do Galo”, outro conto de Machado, pródigo em segredos, suspeitas e traições.

Os móbiles do norte-americano Alexander Calder (1898-1976), que se compõem e se transformam livremente ao sabor das correntes de ar, as séries musicais móveis e permutáveis do belga Henri Pousseur (1929-2009) e a música aleatória são momentos mais recentes dessa liberdade. Mas Haydn (1732-1809) já havia composto sua Sinfonia nº 45, “Sinfonia do Adeus”, uma obra cujo final apenas se dissolve, esmaece-se tal qual as velas que os músicos vão apagando antes de se retirarem gradativamente, uma tentativa de convencer seu mecenas, o príncipe Esterhàzy, a abandonar seu longo retiro de verão em que arrastava compositor e orquestra inteira, para que logo pudessem retornar aos seus lares. (Veja e ouça, abaixo, o “finale” da Sinfonia do Adeus, Farewell, regida por Igor Gruppman, com canoplas - spots - no lugar de velas)


Eleazar de Carvalho usou essa sinfonia quando foi convidado para ser professor na Universidade de Yale (EUA), em plena crise com a então secretária de cultura, deixando no ar a expectativa de volta ou não. Retirou-se no meio e a cena das chamas se repetiu, até que o saudoso Aírton Pinto, spalla da Osesp, extinguisse sozinho a última, encerrando no escuro o concerto. Uma forma sem a coda (final, conclusão) clássica, apenas uma lenta transmutação dos sons, cada vez mais suaves, em silêncio. E foi a obra aberta de Eleazar: despedida? (Talvez. Mas não foi embora, acabou com um pé aqui e outro lá).
O velho amigo e grande spalla Aírton Pinto

Assim é (se lhe parece). "Isto não é um cachimbo"
Franz Schubert (1797-1828) compôs sua 8ª Sinfonia, que ficou conhecida como “Inacabada” por ter apenas dois movimentos, fugindo à tradição romântica. Schubert simplesmente a deixou assim, e não há, além de meras suposições, razões para se crer que ela não teria sido concluída. O dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867-1936) escreveu “Assim é se lhe parece”, um exercício sobre a ambiguidade, realidade versus aparência, peça teatral em que exercita o paradoxo, as múltiplas visões, contraste com o rigor do chamado “realismo socialista”, que viria a ser gestado exatamente a partir daquele mesmo ano (1917) pela revolução russa; a “estética” comunista impunha à arte uma só visão, suposto retrato fiel da verdade única, a serviço da causa soviética. Ao avesso, em 1952, ocaso do stalinismo, John Cage apresentou sua obra 4’33”, na qual um ou mais instrumentistas sobem ao palco e não executam sequer uma nota durante quatro minutos e trinta e três segundos cravados. Propõe ao público não um silêncio, mas o refletir, a percepção dos ruídos, sejam eles da própria respiração ou movimentos da plateia, pensamentos, uma construção abstrata e ao acaso.

A “Obra aberta”, como disse, foi a luz para minha compreensão – ou seria “descompreensão”? - da arte através dos tempos. Um autor como ele, que desfrutou de influências díspares como James Joyce e Kant, lidava com a obra de arte de todas as formas e se sentia livre para descobrir significados múltiplos, aliando-se à teoria da arte de massas pensada por Marshall McLuhan (1911-1980) em The medium is the massage. (Título traduzido como “O meio é a mensagem”, que perde a riqueza de dois belos triquestroques – ou trocadilhos, no popular -, massage, massagem, no lugar de message, e mass-age, “era das massas”).



A versatilidade de Umberto Eco, seu trânsito com grande erudição por tantos caminhos, seu histórico de professor nas universidades de Bologna (It.), Columbia, Harvard e Yale (EUA), Toronto (Ca.) e no Collège de France fazem dele um baluarte da cultura dos séculos 20 e 21. Sua contribuição assume proporções únicas, especialmente pensando no amplo leque de áreas em que se aprofundou com grande sabedoria. Ainda é cedo para o mundo perceber que suas concepções prosseguirão muito além do que concluiu e encerrou no dia 19 de fevereiro deste ano, quando fechou seu ciclo de vida - mas deixou-nos sua fértil produção, verdadeira obra aberta. 


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

WALTER SMETAK, SUÍÇO BAIANO - O bruxo musical que sacudiu o Brasil

Walter Smetak (bateia.com.br)
Nascido em 1913, em Zurich, Suíça, filho de pais imigrantes da Checoslováquia, teve formação no afamado Mozarteum de Salzburg, com ênfase especial no violoncelo. Tinha tudo para ser um bom músico. Aos 24 anos, veio para o Brasil e tentou emprego em uma das poucas orquestras existentes, em Porto Alegre, mas o grupo encerrou suas atividades. Passou a tocar em dancings, casamentos, rádios e até no Cassino da Urca, no Rio.


Dulcimer
Essa experiência foi marcante em seu ecletismo musical, temperado ainda pelos sons que seu pai, músico amador, tocava no dulcimer do folclore checo. Descobriu que o universo dos sons ia muito além daquele que havia conhecido em Salzburg e Viena, a música chamada universal do ocidente.   

Instrumentos de Smetak (Sec. Cult. Bahia)
Em 1957, foi lecionar na Universidade Federal da Bahia, onde fervilhavam novas ideias. Lá, dividiu seus conhecimentos e investiu na música que gostava de fazer, mistura geral de culturas, melting pot que haveria de deixar profundas marcas no Brasil. Criou diversos instrumentos, entre os feitos de PVC e outros com cocos e cabaças (grandes frutos que, secos, ficam rijos como madeira) que serviam de caixa de ressonância, tocados à maneira do Ravanastron indiano, com o arco empunhado por trás (underhand).

Ravanastron
Envolveu-se com o universo dos microtons, intervalos menores do que meios-tons (as doze teclas brancas e pretas da escala do piano), coisa comum entre povos asiáticos. Já o movimento microtonal acadêmico do mexicano Julián Carrillo chegou a influenciar Bloch e Ives.

Joe Maneri: outra lenda
Em Boston, eu tive a oportunidade de ter aulas com Joe Maneri, que havia sido aluno de Alban Berg, expoente da segunda escola de Viena de Schönberg. Não apenas conheci o universo que este último desenvolvera, o dodecafonismo (construção quase matemática de séries de doze sons e suas variações programadas), mas também o microtonalismo. Nada a ver com o indiano ou as inflexões naturais do blues: era um sistema rígido para se lidar com partículas menores do que meios tons, ou seja, um quarto, um oitavo, um doze avos (ou ainda menos) de tom.

Monocórdio
Nesses experimentos, para se trabalhar uma curta obra era necessário o tempo de uma aula inteira, utilizando como guia um monocórdio, artefato empregado por Pitágoras (c. 570-495 a.C.) em seus estudos acústicos. Como o nome diz, o monocórdio tinha apenas uma corda, e em seu corpo era colada uma espécie de fita métrica com as distâncias exatas onde deveria se colocar um anteparo que tocava a corda e produzia diferentes microtons.

Uákti (Foto Jefferson Oliveira)
Smetak não empregava essas partículas sonoras como os teóricos, ele as usava livremente, à maneira asiática. Criou um time de fiéis seguidores, como Tuzé de Abreu, Tom Zé e Marco Antonio Guimarães, responsável pela criação do grupo mineiro Uakti (1978), descendente direto das criações do mestre, além de influenciar Gil e Caetano.

Este último assumiu de vez o experimentalismo no LP Araçá Azul, incursão que veio não para fazer sucesso, claro, era biscoito fino, mas foi marco do limite a que havia chegado aquilo que Augusto de Campos, em seu livro “Balanço da Bossa” (SP: Ed. Perspectiva, 1968), chamou “linha evolutiva da MPB”.

No Rio, seduziu e foi seduzido pela bela cantora Diana Strella, filha de um dos integrantes do Bando da Lua de Carmen Miranda nos EUA, que despontara em um dos Festivais da Canção no Maracanãzinho, com “Campos de Arroz” (“My name is Mary K., noiva da América / ruiva de Robin-Holywood / a ruiva noitenoiva de Mary Pickford / a pic-nic noiva de Mary Pickford”)

MAM: Miguel Oniga, e eu, violões. Ao centro, Regina Casé
 (foto Jornal do Brasil)
Em 1975, no Rio, fui convidado para participar de uma série de apresentações da peça “A Caverna”, de Smetak, no MAM (Museu de Arte Moderna), local em cujo entorno acontecia de tudo nos fins de semana: Hélio Oiticica, Capinam e Naná Vasconcelos - uma feira livre de arte gratuita, onde também me apresentei com amigos. Tendo adotado o Brasil definitivamente, Smetak apaixonou-se por uma mulata baiana e rodava para lá e para cá sua velha moto Harley Davidson, que apelidara “Prostituta da Babilônia”.

Musicalmente, ele “organizava o caos” segundo sua ótica particular. Na peça, havia cinco bailarinas seminuas e cinco músicos: além de mim, lembro-me do violonista ítalo-argentino Gaetano Galifi e do percussionista Joca Moraes. O diretor Jesus Chediak, paralelamente aos ensaios musicais, fazia diariamente preleções sobre ocultismo, cabala, orixás, óvnis e tudo o mais que pudesse sincretizar em nossas cabeças – naqueles tempos já bem feitas, aliás. A direção do MAM não permitiu uma das ideias mirabolantes do Smetak, potes com maconha ardendo em cada canto do teatro, por mais que o gênio tentasse explicar com aquele seu sotaque inconfundível que “ninguém iria fumar”.

Terminou aceitando incenso no lugar da erva. Depois, quis que os músicos raspassem a cabeça, mas eram tempos de longas melenas, o símbolo da força contestatória dos nossos tempos, que estavam para nossa filosofia como os cachos que davam força para Sansão. Já com a estreia próxima, acabou aceitando toucas cor da pele, como os collants com que nos vestimos.

Caverna em São Tomé das Letras (MG)
Entre artefatos acústicos (como um kinder-ovo gigante aberto ao meio), recitativos de “O Mito da Caverna”, de Platão, relatos de Óvnis e ETs na mítica São Tomé das Letras (MG), usávamos aqueles instrumentos maravilhosos que pacientemente aprendemos a tocar – e “não afinar, por favor”, tendo o misterioso órgão de Smetak ao fundo. Havia ainda um sujeito que descia a rampa da plateia em uma possante moto e fazia discursos em francês.

Era um misto de liberdade cênico-musical e uma saudável transcendência sobre o real e os cânones tradicionais, aventura que ultrapassou o limiar do rompimento com o conhecimento adquirido, celebração de um rito mágico. Aos 71, em 1984, o mago nos deixou. 

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

GILBERT KAPLAN, O MAESTRO

...que só regia uma peça e não lia partitura

Nascido Gilbert Edmund Kaplan em 1941, em NY, era um poderoso empresário, jornalista (um “tycoon”, à maneira do Cidadão Kane, do Welles), e tinha uma paixão: reger. Conto logo a seguir, meio a algumas explicações, a história é muito saborosa. Ainda bem jovem, aos 26, Kaplan fundou a revista “Institutional Investor”. Vendeu-a 17 anos depois por 75 milhões de dólares – US$ 171 milhões, em dinheiro de hoje, ou R$ 684 milhões.

Como hobby e paixão obcecada longe dos negócios, passou a ouvir incessantemente a 2ª Sinfonia ("Ressurreição") de Gustav Mahler (1860-1911), uma das maiores obras de todos os tempos, e começou a fazê-lo vinte anos antes de regê-la! Como adorava desafios, pagava aulas particulares a um professor da afamada Juilliard School de NY, mas não queria estudar teoria, solfejo, contraponto, harmonia, essas coisas chatas de escola: só queria aprender a reger a 2ª de Mahler!

Avery Fisher Hall
Alugava o afamado Avery Fisher Hall, casa da Filarmônica de NY, e pagava músicos para que pudesse treinar a batuta no comando de sua peça, a única, a “sua” sinfonia. Com muito dinheiro, criou a Fundação Kaplan, que dava bolsas de estudos e promovia a música de Mahler. Estreou em público em 1982, regendo a obra, e apenas cinco anos depois a gravava, sob sua direção, com a Sinfônica de Londres. Três anos após, a afamada Filarmônica de Viena.

Publicação de Kaplan
Adquiriu partituras e manuscritos de Mahler, que estão sob a custódia da Morgan Library & Museum de NY. Deu aulas na Juilliard School em curso noturno para aficionados – por Mahler. E girou o mundo, regendo a sinfonia mais de 100 vezes, incluindo orquestras estelares como as filarmônicas de Nova Iorque, São Petersburgo e Los Angeles, a Royal Philarmonic de Londres e o La Scala. Após sua performance à frente da orquestra de Melbourne, foi saudado em jantar por um discurso de ninguém menos do que o primeiro-ministro da Austrália, Paul Keating, também mahleriano.

Crítica e músicos se dividiam. Membros da Filarmônica de Nova Iorque faziam coro contra Kaplan (coisa nada incomum, tratando-se de orquestra refinada), enquanto o rigoroso The New York Times publicou uma avaliação espetacular, comentando sobre a precisão, os detalhes, a clareza do regente. Por essas e outras, ele foi convidado a reger a Philarmonia Orchestra de Londres com o coro da Ópera Estatal de Viena na abertura do festival de Salzburg, um Panteão da música. Ao final, dez minutos de aplausos de pé, já era uma grande atração musical.

Joseph Brooks (nascido Kaplan) e seu Oscar
A paixão de Kaplan pela música veio de seu irmão mais velho, Joseph Brooks, compositor que levou o primeiro prêmio da Academy Award de 1977, com a canção You light up my life, e suicidou-se antes de julgamento por 11 estupros de jovens atrizes e 82 denúncias de abuso sexual. Antes da perda, mesmo atormentado pelos problemas que demonizavam o irmão, Kaplan levou adiante sua obsessão, publicando livros sobre a própria interpretação de Gustav Mahler para a segunda sinfonia, entre vários outros. Bancou a edição do manuscrito original da “Ressurreição” e gravou a obra mais de cinco vezes com grandes orquestras do mundo.

Mahler compôs o primeiro movimento desta sinfonia em 1888, como poema sinfônico à parte, chamado Totenfeier, celebração funeral. Em 1897, a obra completa teve sua primeira edição impressa pela Hoffmeister. A orquestração é tão monumental quanto a obra: 4 flautas, 4 oboés, 4 clarinetas, 4 fagotes, 1 contrafagote, 10 trompas, 10 trompetes, 4 trombones, sete percussionistas, sendo dois deles timpanistas, com um enorme arsenal de teclados e instrumental miscelâneo, mais tuba, conjunto offstage (atrás do palco), órgão, vozes soprano, contralto e enorme coro misto, 2 harpas, cordas em grande número, com primeiros e segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, alguns com uma 5ª corda grave. Ou seja, um palco cravejado de músicos.

Em 1986, com tudo isso na cabeça, Gilbert Kaplan veio ao Brasil, onde regeria nossa orquestra, a Osesp, à época comandada pelo grande Eleazar de Carvalho, em concerto do Teatro Sérgio Cardoso, sede temporária do conjunto. Trouxe consigo uma equipe enorme, e para tanto reservou um andar inteiro de um hotel de luxo em São Paulo para acomodá-la, sem falar em restaurantes finíssimos e aluguel de vans de primeira. Veio também com sua equipe de filmagens e equipamentos, coisa para ninguém botar defeito.

A apresentação foi um sucesso, embora Kaplan não pudesse responder a perguntas básicas dos músicos. No intervalo do primeiro ensaio, alguns de nós, eu entre eles, subimos ao pódio para ver, na partitura, que diabos Kaplan lia. Surpresa: vários stick-ons, aqueles papeizinhos autocolantes, na partitura dele, diziam: “entrada à direita, violoncelos”, em azul; “entrada à esquerda, violinos”, em verde, e por aí vai. Ninguém do meu tempo de Osesp se esquece desse concerto, especialmente os colegas com quem ainda mantenho contato, como o Edmilson Nery, clarinetista, e Ozéas Arantes, trompista, Jed Barahal, violoncelista, Beth Del Grande, percussionista, Joel Gisiger, oboé, José Ananias e Rogério Wolf, flautas, entre tantos outros.

Foi uma bela experiência, a despeito de Kaplan não ser, exatamente, um maestro, mas provou que para se tornar um regente é preciso antes de tudo conhecer profundamente a música que se deve reger, entender sua história, ter o controle da batuta, mais do que se aprofundar em erudições acadêmicas. Estudo, claro, é indispensável, mas sem música antes, nada feito. Dedico este texto a essa figura, que faleceu há pouco mais de um mês, dia primeiro passado, pouco antes de completar 75 anos. Deixa um exemplo de obsessão e paixão musical que pode mover montanhas.

(Ouça, abaixo, o 5º movimento - "Reerga-se" - da 2ª de Mahler, com Gilbert Kaplan à frente da Filarmônica de Viena, gravado para a Deutsche Grammophon)



sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

A SANGRIA DOS IMPOSTOS EM DUAS CRISES BRASILEIRAS


Marquês de Pombal (Jean-Michel van Loo e Claude Vernet - 1766)
A Capitação (de capita, cabeça) foi um tributo instituído pela Coroa Portuguesa em 1734, para acabar com a “ociosidade dos negros e vadios em geral” (sic). Recaía sobre cada cabeça de escravo de qualquer raça, e mesmo homens “pobres ou vadios”. Porém, a Coroa achava pouco, e, conforme o Marquês de Pombal (1699-1782), “ou se extinguia a Capitação ou Portugal perderia não só Minas, mas a própria Colônia”. 
Degredados
No final do século XVIII, o Brasil sofria com os abusos das autoridades e a cobrança de impostos, como a taxação do quinto (1/5) do ouro extraído, que já vinha desde 1534. Passaram a cobrar 100 arrobas, algo como 1.500 quilos anuais sobre o ouro obtido. As tentativas de burla à cobrança eram severamente punidas e chegavam ao degredo, ou seja, uma espécie de deportação violenta para algum território português na África. Claro que, a uma certa altura do Ciclo do Ouro, a diminuição da quantidade do metal extraído e a consequente perda na arrecadação já despertavam a ira de Portugal. 
Tapeçaria de tecelagem portuguesa
Como o ouro passou a escassear e a cobrança não atingia mais tal enorme volume, soldados foram autorizados a invadir as casas do povo de uma região e retirar tudo o que fosse de algum valor. A Inconfidência Mineira de 1789 foi uma rebelião contra a Coroa Portuguesa e a cobrança de impostos e confiscos. Mas a extorsão oficial já vinha de antes, 1785, quando a fabricação de tecidos em todo o território da Colônia fora proibida, de forma a coibir a competição com as indústrias portuguesas. 
Grupo Globo
Criar impostos, taxas e tributos sempre foi uma maneira de cobrir os monumentais gastos da máquina pública, e mesmo com as gritas contra supostas eventuais bitributações (cobranças em dobro) aqui e ali, eles persistem. O fantasma da CPMF, guardado insepulto no armário e vivo como nunca, surge no afã de arrecadar um volume enorme de recursos, 32 bilhões, pouco mais de 1% do orçamento anual do país para 2016, de 3,05 trilhões.  
Pezão, governador do Rio
Houve até dança de tributos e números às vésperas do badalado réveillon carioca, dia 29 de dezembro passado: o governo do estado do Rio de Janeiro sancionou a lei 7.174/15, que aumenta a alíquota do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) que é cobrado sobre o bem herdado ou recebido em doação. Antes, eram 2,5%, depois, avançaram para 4%, e agora saltam para 4,5%, ou 5%, conforme o caso. Os preços dos imóveis no mercado do Rio são altíssimos, e até os de outras grandes cidades, como Niterói, Campos de Goytacazes, São Gonçalo e Duque de Caxias, além de estâncias como Petrópolis e Teresópolis. A sangria da Colônia se repete, e como disse um economista e pensador do passado, desta vez como farsa.  
Evolução do ITCMD
Tomemos um exemplo prático, o do herdeiro de um imóvel no valor de R$ 1,3 mi: ele teria de desembolsar R$ 91.000,00 de ITCMD, já somados os 2% de Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), da esfera municipal, para ter direito ao bem recebido por direito. Pior ainda, o imposto devido pelo usufrutuário – que não é proprietário, mas tem ‘usos e frutos’ de um imóvel por ele doado passou a 100% do valor, contra os 50% anteriores. Isso quer dizer também que, no caso de falecimento do doador que tem o usufruto do imóvel, o ônus recairá integralmente sobre os herdeiros, se o ITCMD já não tiver sido pago no ato da transmissão por doação em cartório. Recebe-se um imóvel, mas para tê-lo pagam-se impostos enormes. 
(marioquintanaresidencial.com)
Considerando a média do preço do metro quadrado na cidade do Rio, R$ 8.514,00, conforme pesquisa com quase 69 mil unidades feita pela Agente Imóvel, um apartamento básico de 100 m² valeria R$ 851 mil. E isso é a média. Já na região de Ipanema, onde o preço às vezes supera em muito os 20 mil/metro, um apartamento de 150 m², metragem nada exuberante para a área, vai custar mais de 3 milhões, e os impostos (ITCMD e ITBI) chegarão a 210 mil. 
Um apartamento antigo em Ipanema, daquele sobre pilotis, com 107m², a cinco quadras da praia, mais perto da Lagoa Rodrigo de Freitas, chega a custar 1.850 mil (R$ 129.500 de imposto), enquanto um na aprazível Vieira Souto, na orla da praia, coisa de 25 milhões (1,75 milhões para os mesmos tributos).
Prédios de apartamentos na Av. Vieira Souto


Nessa profusão de siglas e percentuais crescentes, temos a tributação “causa mortis” no Rio recaindo também sobre direitos relativos a planos de previdência (PGBL) ou ainda o Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL). A criação de novos impostos, tributos e taxas é uma bola de neve, já que, uma vez bem sucedida, todos tendem a copiar, na frente o governo federal, campeão na prática da taxação. 
STF no julgamento da ADI 1923 (OS): 17 anos
Uma vez aprovados por lei, a tentativa de contestação dos impostos poderá ser feita por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF, um processo excessivamente moroso e complicado, dado o imenso acúmulo de ações no Supremo – coisa de uns bons anos. Sei que é cansativo, sim, ouvir falar de cifras, mas minha consciência de cidadão deve estar acima de minhas preferências pessoais. 

Afastado o risco da violência física ao estilo da derrama colonial e suas invasões, o que vemos hoje é um enorme achatamento de todas as classes e reflexos no já alto custo de vida dos mais pobres, a reboque do aumento das alíquotas e mesmo criação de mais e mais impostos. Nossas casas são invadidas não pela derrubada de portas e intrusões como na época da Colônia, mas sim pela nossa entrada principal e sem boas-vindas ou pedir licença, contas da novena nossa de cada dia, esse rosário sem fim.