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sábado, 27 de abril de 2019

A MÚSICA DOS MEUS PRIMITIVOS MODERNISTAS

O  jardim "do seo Francisco"

Francisco de Souza mora em Petrópolis. Negro, magro, idade não sabida, jardineiro por profissão. Caprichoso, cuidava do jardim da casa dos meus pais e de outras no entorno do bairro. Perfeccionista, apegava-se ao trabalho com carinho, mas talvez antes de jardineiro fosse verdadeiro artista. Depois que meus pais se foram, a casa foi vendida e Francisco não quis saber de continuar, desistiu. Talvez até da pintura, sua vocação nas horas de descanso.
Uma de suas telas, de 60 x 40cm em tinta acrílica, adorna a entrada da minha casa. É um assombro. Primitivista? Talvez, mas certo surrealismo não é estudado, saía de dentro dele naturalmente. No quadro, descrevia o jardim do jeito que o via: plantas e flores enormes, maiores algumas vezes do que as pessoas (insignificantes diante do poder da natureza que ele conhecia). No canto esquerdo, a pequena figura de um clarinetista sentado sobre uma raiz. Ainda menor, perto dele, um violinista que lembra um duende sentado dentro de uma vagem seca de fava. Ao centro, diminuta, uma flautista, e à direita dela, um homem toca um enorme violão na vertical exatamente como eu segurava o contrabaixo. Surrealista? Mas com certeza nunca ouviu de Salvador Dali, Max Ernst ou Joan Miró. Surreais em Francisco eram os olhos com que ele via a natureza, imponente, poderosa e plena de mistérios e fantasias.
Eu lecionava na ECA/USP quando conheci Jonas, um porteiro do prédio central. Certo dia, descobri que ele também cultivava o hábito de pintar. Encomendei-lhe uma tela que retratasse um violoncelista. Quando a vi, fiquei fascinado com a paisagem campestre, um céu bem azul encimando o verde, pinceladas de certo sotaque francês. Mais à frente, uma cerca baixa a separar essa visão pastoral de um estranho violoncelista e seu instrumento, meio que se apoiando sobre o joelho direito. Pernas e braços avantajados e algo distorcidos, de longe me remete ao magnífico Abaporu, da Tarsila do Amaral, mas não imagino que Jonas tenha visto alguma reprodução da obra-prima modernista em algum lugar. O braço direito e o arco descrevem uma curva, quase um grande finale à maneira do virtuose Mstislav Rostropovich (este tenho certeza de que ele não conhecia. Ou penso eu que não). No canto, assinou ADJonas, sem data, presumo que por volta de 1996.
Tanto gostei que lhe pedi outra obra, sugeri que fosse mais uma vez sobre um violoncelo. Prazo falado, prazo cumprido, e lá estava meu outro instrumentista, de incrível semelhança com o primeiro, até na cabeça, abaixada e em proporção menor em relação ao resto do corpo, parece que em súplica e submissão (à natureza, tal como Francisco). Só que agora essa versão basicamente transforma a paisagem campestre em ondas do mar que, músico ao centro, se derrama sobre um piso quadriculado, azulejos cor de tijolo e azul. À direita do violoncelista, as ondas avançavam mais do que as do lado esquerdo, num deslocamento curioso sobre onde que deveria ser areia, uma espécie de tabuleiro bem à maneira da op-art (Arte Óptica), lembrando o húngaro Victor Vasarelli. A água do mar tem o músico como seu Moisés, divide-se e faz dele seu costado para rebentação. Essas obras preciosas de Jonas merecem estar vizinhas, e o lugar ideal, pensei, seria a escada de madeira que leva ao mezanino. A subida é uma promenade, um passeio como o de Viktor Hatmann em Quadros em uma Exposição, descrito musicalmente por Mussorgsky.

Henrique Boliani, figura querida, também era porteiro, mas na Escola Municipal de Música do Theatro Municipal de São Paulo (fundada em 1969), onde fui diretor. Apesar de às vezes resmungão e ranheta, escusável por difíceis problemas familiares, era sempre amigo, era o meu faz-tudo em casa, nas horas vagas. Descobri que também tinha um grande talento como artista plástico: sobre um antigo LP, bolachão de baquelita de 78 rpm, pintou-me tocando um violino que eu não tocava, baseou-se em uma foto de uma matéria do Estadão em que posei a pedido do repórter, instrumento ao ombro.
Boliani pintou para mim a obra-prima que terminou virando capa do meu livro O Arco (Ed. Vitale), escrito a partir de minha tese de doutorado na USP. Toque cubista, cores fortes, expressava talvez músicos que costumava ver pela escola. Uma obra tão bela que o profissional que fotografou a capa do livro teve medo de leva-la para o estúdio, poderia até ser roubado, disse. As cores fortes em manchas no violoncelo se repetem no fundo, projetando-o para a frente em plano. Assina HBoliani, data pouco clara.
Henri Rousseau
Ora, falei de um jardineiro e dois porteiros fazendo o que se chama arte naïve, embora de ingênuo neles eu não veja nada. Nem primitivistas, coisa mais para os flamengos, os italianos do século 15, ou o autodidata Henri Rousseau, do séc. 19. Ou espontâneos como Van Gogh. Mas quando a pintura tem uma história por trás, como as minhas, há um valor intrínseco, inestimável por quem a possui.

PARA CALAR UMA ORQUESTRA

Corredor do Palácio

Princípio de 2007, após a posse de Serra como governador. Eu e mais cinco músicos fomos convidados para uma conversa informal no Palácio dos Bandeirantes, regada a bom vinho até tarde. Foi lá que conheci o Serra e o João Sayad, secretário de cultura. Conversa vai e vem, o governador até solfejou, disse ter estudado Canto Orfeônico na escola, cantarolou uns trechos de árias de óperas italianas, come si deve, e brincou: contem aos jornalistas que gosto de música, sim.
Sinfonia Cultura: Concertos para Jovens (programa)
Dois anos antes, eu havia atuado na luta pela manutenção da Sinfonia Cultura, uma orquestra ligada à Fundação Padre Anchieta (Rádio e TV Cultura). Em dado momento, perguntei de supetão por que acabaram com a orquestra. Serra olha para Sayad e repete a pergunta, o secretário se vira e nos indaga a mesma coisa. Sem nada concluirmos, lembrei o título de uma obra de Charles Ives, Pergunta sem Reposta (Unanswered Question).
Na época da grande coda da orquestra, escrevi um texto  bilíngue (The folding of an Orchestra), que, tornado lista de apoio, obteve milhares de assinaturas no Brasil e no exterior – com apelos até de organismos internacionais como o Sindicato das Orquestras Alemãs (DOV) e a Federação Americana de Músicos (AFM). Ninguém se sensibilizou, e a orquestra foi extinta naquele 2005 – isso, apesar do orçamento reduzido, coisa de 3 milhões anuais, na época, cobertos com sobra por concertos nas escolas: um repasse de 7 milhões da Secretaria de Educação para coisa de 70 concertos anuais (os programas impressos eram de minha autoria). Aquela pergunta nunca terá resposta. Sob a batuta do Lutero Rodrigues, era a única dedicada prioritariamente à execução da música brasileira de concerto.
BSESP
Em 2016 chega a hora e a vez da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, criada em 1989. Com cerca de 82 músicos, a BSESP executava de transcrições de música clássica ao vastíssimo repertório da formação, escrito por compositores do mundo inteiro. Fora MPB, jazz, trilhas de filmes e o cancioneiro do Brasil. A formação existe aos milhares no mundo, especialmente nos EUA (as bandas sinfônicas tiveram início ainda no século 19). Infelizmente, o Brasil possui pouquíssimas bandas/ensembles e similares, sendo raras delas profissionais. O impacto sonoro de uma Banda Sinfônica é enorme para o público em geral, atrai leigos para a boa música. E ao ar livre, em geral, pode prescindir de amplificação. Por motivos não sabidos, veio a degola.
Filarmônica de Viena (HarrisonParrot)
No exterior, orquestras já sofreram crises. Na Europa, com todos os grupos estatais, são o orgulho de Berlim, Stuttgart, Hamburgo, Viena, Londres, Paris e Praga. Não que não tenha havido impasses. Um grande embate aconteceu na Filarmônica de Viena já em 1847, mas, com esforço e a visão de prioridade da Cultura entre os povos germânicos ela foi mantida, e reavivado o orgulho austríaco.
Berlim, com Benjamin Bilse
Na Filarmônica de Berlim, aclamada como a melhor do mundo, houve diversas crises, mas o povo e o Estado não sucumbiram à moeda fácil das obras políticas de visibilidade física. Já aconteceu nos idos de 1882, quando era regente Benjamin Bilse, e partiu dos músicos, inconformados com os salários irrisórios. Mais adiante, um acordo com o Conservatório Real, dirigido pelo lendário violinista Joseph Joachim, garantiu a continuidade do grupo. As orquestras fazem parte da história e da cultura alemã de tal forma que Hitler, na iminência de um ataque dos aliados, ordenou que a música não parasse um dia sequer. O nefasto ditador nazista era um aficionado por ópera desde a adolescência, mas, acima de tudo, a música era para ele um símbolo do poderio alemão.
Grupo amador de ópera inglês : de 50 a 1.000 libras
Nos EUA, o Estado praticamente não reconhece as orquestras. Com um repasse pífio, quando existente, do NEA (National Endowment for the Arts), os grandes conjuntos sobrevivem graças a ingressos (coisa absolutamente impossível no Brasil), campanhas de arrecadação e doações de organizações privadas ou pessoas físicas: os boards (conselhos das orquestras) e programas de concertos agradecem essa generosidade dando-lhes títulos como patrons, sponsors, donors. Orquestras enfrentaram crises, como as mundialmente famosas Filarmônica de Nova Iorque, San Francisco e Minneapolis, ou simplesmente fecharam, como as da Florida, Syracuse e Honolulu. Popularizar o repertório tem sido a salvação para muitas delas, mesmo que com prejuízos à sua linha de trabalho.
OSB (créd.: Glamurama)
No Brasil, a Orquestra Sinfônica Brasileira, fundação de direto privado, passou por várias crises, e há alguns anos demissões em massa. Era presidente da FOSB o banqueiro Eleazar de Carvalho Filho, que recebeu o nome paterno, grande maestro. Usei de minha afinidade com o saudoso pai dele, enviei bilhetes pessoais trocados entre o ‘velho’ e eu até nos derradeiros dias dele, para sensibilizar o administrador (revelo aqui aos que não sabiam dessas tratativas...). Não sei se ajudou, a crise foi contornada, mas é recidiva: não tem havido, segundo li, a contribuição vital da Prefeitura. Em São Paulo, a OSESP não corre riscos, mas tem tido seguidos cortes no orçamento, com óbvio impacto em suas atividades.  Trata-se de uma organização modelo, paradigma, gerida por uma fundação de direito privado (Organização Social), cuja venda de ingressos por si, ainda mais em tempos de crise, não suportaria sequer parte do custeio.
OSR e Marlos Nobre (Teatro Santa Isabel)
Lutam também a Filarmônica de Minas Gerais, com Fábio Mechetti, a do Recife, sob a batuta de um dos maiores compositores de nossa história, Marlos Nobre, a da Paraíba, com Luiz Carlos Durier e outros Quixotes que insistem em manter nossa cultura viva. Uma luta longa e inglória.
Picasso, 1955


sábado, 20 de abril de 2019

BREVE MEMÓRIA DAS MINHAS CRISES ECONÔMICAS


Descrevo como cidadão, claro que não-especialista, um passeio pelos espinhos das crises que conheci, em cada etapa da vida. Afinal, foram tantos reveses financeiros e políticos, angústias pouco conhecidas nos países desenvolvidos! A partida é de até eu sair do Brasil, em 1977: números nada confiáveis, índices de inflação maquiados pelo expurgo dos itens chamados sazonais ou que imporiam danos à mentira oficial. Cifras embelezadas por fórmulas magistrais, mas a coisa não ia bem. Já entre o 1968 do AI-5 e 1974, houve um estratosférico investimento em infraestrutura que abriu um imenso rombo no Tesouro, camuflado por benefícios indiretos ao povo, o “milagre brasileiro”. Como disse Tom Jobim, ‘o Brasil não é para principiantes’. Todos têm de ser um pouco de tudo, de médico e de louco, de técnico de futebol e economista.
Deixei o país naquele obscuro cenário, governo Geisel. Nos anos de exterior as rádios de ondas curtas ironicamente me informavam bem mais do que a censura permitia no Brasil. O gen. Golbery, eminência parda um pouco mais esclarecida do regime, passou ao Médici o contraste entre os números oficiais e a pobreza: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. Já o ex-ministro Delfim Netto escancarou a prática concentradora de renda vigente: “Vamos primeiro fazer o bolo crescer, para depois repartir”. 

Sacco e Vanzetti (ao centro)
Nos EUA, um dia recebi de minha mãe, pelo correio, exemplar de um semanário com o Lula na capa, um sindicalista liderando a massa em greve, como no filme Sacco e Vanzetti. Era um sinal de que já começava a abertura ‘lenta, gradual e irrestrita’. De volta ao Brasil, a posse do Sarney, opção simpática aos militares criada para fazer média na dobradinha com Tancredo, que preferia ter como vice o Antonio Ermírio de Moraes. Mas o plano Ermírio vazou e o maranhense dos ‘marimbondos de fogo’ foi para o banco de reserva. Tancredo morreu e tomou posse Sarney, parte daquele bem-bolado com o ‘antigo regime’. O governo, ao ‘entregar a rapadura’, deixou nas mãos de Sarney uma inflação que chegaria a 84,3% ao mês.
Maestro Eleazar de Carvalho
Eu guardava as minhas contas mensais em uma pasta dividida como um calendário, para pagá-las apenas no dia de cada vencimento: deixava minha conta corrente quase zerada, mas a aplicação no overnight dava fácil 1% ou mais ao dia! Eu tinha um bom emprego, mas e o futuro? Preocupado, perguntei ao maestro Eleazar de Carvalho, mestre dos mestres, o que ele achava. Ele cravou uma lapidar, sempre rebobinada em minha cabeça como fosse um filme: “professor, nunca vi um país fechar, mas pode sempre haver uma primeira vez”. Era 1985.
Posse de Collor: empáfia e prepotência 
O Brasil não fechou, e Sarney passou a criar factoides, como os seus ‘fiscais’, insuflando o povo com o questionável instinto policialesco de denunciar remarcações de preços no comércio. Em 1990, o país votou pela primeira vez em 26 anos por pleito direto, elegendo um dândi, Fernando Collor, um moralista ‘contra a corrupção’, eterno discurso  que seduz as massas desiludidas e cansadas. O ‘caçador de marajás’ mais adiante cairia na rede que fingira armar na caça aos lapinas do dinheiro público. Com apenas três meses de governo, a ministra Zélia Cardoso de Mello lançou um plano (que deveria se chamar “Merlin”) a fim de salvar a economia. Deixou perplexo até o Fidel Castro, ao sequestrar uma quantia de cada conta bancária acima de 50 mil NCz$ (cruzados novos), hoje R$ 17 mil, às vezes poupança de vida. Esse valor foi decidido por sorteio, regado a bom uísque na proa de um iate em Angra, no Rio. Alea jacta est, como disse Júlio César, enfrentando a correnteza e o inimigo, para chegar a Roma e ser sagrado imperador. Mas o alea (do grego: dado de jogar, sorte) de Collor foi aleatório, imprevisível e inconsequente. Eu tinha dinheiro confiscado na poupança mas havia autorização para sacar quem comprovasse dívidas: salvaram-me dois talões de boletos para pagar um terreno.
Descíamos a ladeira aos trancos e barrancos, tiraram três zeros aqui, outros três depois, ilusão de que mais as moedas valem quanto menor for o número de dígitos. E, jogada de mestres cogitada já no tempo de Itamar, concretizou-se o Plano Real (mérito do FHC!). Com riscos calculados e a paridade entre a nova moeda forte e o dólar, sossegaram a besta-fera da inflação.
A Sagração da Primavera: Constituição Federal, outubro de 1988
Hoje, fala-se outra língua: um desemprego que já vinha de antes, as finanças do país afundando nos lodos abissais da Previdência, dos enormes juros da dívida pública e dos gastos descontrolados da máquina administrativa. A Previdência tem de mudar, e rápido, mas não como gestada nos gabinetes palacianos. Uma reforma que não sacrifique ainda mais os pobres, idosos e o povo em geral. Só que a lábia corporativista e eleitoreira de bancadas do Congresso haverá, fatalmente, de criar obstáculos e piorar qualquer texto, à maneira (mas sem o discurso e o charme) da Constituição de 88, uma vistosa colcha de retalhos.
Reformar a Previdência parece o canto da sereia, panaceia para todos os males. Porém, maiores são os juros da dívida pública, assunto por demais intricado para os mortais, e o urgente freio nos gastos públicos, na máquina administrativa dos três poderes e das Forças Armadas, mordomias e privilégios que deverão resguardar a qualquer custo: os que detêm o poder político estão de mãos dadas com os mandachuvas do poder econômico.
Um dia chamarei meus netinhos, quando puderem entender, para explicar o árduo caminho do sucesso da nossa economia. Ou seu retumbante fracasso.

sábado, 6 de abril de 2019

“...E UM CIGARRO PRA ESPANTAR MOSQUITO

Noel Rosa

/ vá dizer ao charuteiro / que me empreste uma revista / um isqueiro e um cinzeiro”. Noel Rosa (em parceria de 1935 com Vadico), embora médico de formação, era um fumante inveterado. Fumava tocando e até mesmo cantando, com o cigarro no canto da boca ou entre os dedos anelar e médio da mão direita. Neste samba, Conversa de Botequim, fala um exigente freguês de um ambiente que Noel conhecia bastante bem, o boteco. Sempre um cigarro e a caixinha de fósforos à guisa de instrumento de percussão na roda da mesa pelas mãos de muitos sambistas, como Cyro Monteiro.
Jean-Paul Belmondo
Frida Kahlo, Jean-Paul Belmondo, Cid Charisse, Marlon Brando, James Dean, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, uma legião de artistas e intelectuais carregava o charme nada discreto do cigarro sempre à boca ou às mãos. Clarice por pouco não morreu, em 1967, quando caiu dormindo, como de costume. Jogou-se sobre a cama, cigarro na mão, e logo veio o fogo nos lençóis. Queimaduras na mão e pelo corpo lhe deixaram marcas, mais uma cicatriz da memória já flagelada daquela menina judia ucraniana que terminou no Brasil para tornar-se uma brilhante e amada escritora e intelectual brasileira.  
O cigarro era acessório tão charmant que, em 1970, Gérson, estrela do tricampeonato mundial de futebol, foi convidado para atuar em um comercial, hoje de triste memória. Na TV, ele afirmava que “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo”. Propaganda cujo lema, para infelicidade do tricampeão, virou sinônimo de pilantragem, falcatrua – a Lei de Gérson. Foi péssimo para a imagem do jogador, o estigma nunca o abandonou.
No final daquela década, outra propaganda de uma marca famosa de cigarros, dessa vez trazida dos EUA, mostrava um caubói-galã, ‘o homem de Virgínia’, fumando montado em um lindo cavalo. Associava o cigarro à virilidade, e de tabela a um certo prazer fálico. Em outro anúncio americano, uma linda mulher, encostada em um carro e fumando com uma piteira, fazia bico e soltava baforadas enquanto lá no fundo, meio nebuloso, meio sfumato à Michelangelo, a imagem de uma senhora às vezes carregando um carrinho com feno, outras tirando a neve da calçada com uma pá. Em miúdos, aquela linda mulher fumando em primeiro plano era a modernidade, contra o fundo de um passado de submissão. Encimando o anúncio do cigarro slims feminino, a frase you’ve come a long way, baby (você vem de longe, garota).
Fumódromo em aeroporto
Mas o apelo do cigarro foi declinando no mundo. Nos EUA, não se fuma senão em lugares como ‘fumódromos’, feitos para isso em locais como aeroportos. Salas lacradas, com má ventilação, de fora dá para se ver a estufa do veneno, todos baforando sem parar. No enorme campus Universidade de Richmond, em lugar algum se fuma. Em NY, jogar bituca na rua dá multa e as pessoas quando se conhecem costumam perguntar: are you a smoking person? (você é fumante?), o que pode encerrar ali mesmo qualquer conversa ou futura relação, caso uma delas seja fumante.  Fumar passou a ser um vício caríssimo: a média nacional do preço de um maço nos estados chega a US$ 8.50, ou R$ 33,00. Em NY, US$ 10.85, ou R$ 42,31 cada (e há quem fume dois ou três por dia!). É para frear mesmo o tabagismo. Até estancar.
Portal:  drauziovarella.uol.com.br
Um conhecido artista e figura notável cujo nome prefiro guardar por não ter a matéria comigo, disse que de todos os vícios o do cigarro é o pior. Mata, mas não traz sequer prazer ou ilusão como outras drogas, a exemplo da heroína. Curto e grosso. O Dr. Dráuzio Varella alertou que já teve pacientes de enfisema que fumavam pelo orifício da traqueotomia no pescoço, tamanha a angústia da abstinência. E também já viu muitos morrerem por tabagismo, mas maconha, nunca, sempre bem embasando suas opiniões. Conheci um senhor, músico, que estava fazendo radioterapia, o câncer havia tomado os dois pulmões. Só tinha um desejo, disse, doutor, quero fumar, nem que seja a última vez. O médico comprou-lhe um maço, fechou a varanda do quarto para não entrar fumaça e deixou-o lá fora, entregue ao prazer do vício, à sombra da morte.
Foto de  Proibindo o Proibidão (créd.: veja.com)
Escrevi há dois anos um artigo de três páginas sobre o funk, Proibindo o Proibidão, para uma revista de circulação nacional. O senador Romário seria o relator (e era voto contra) de um projeto de lei ridículo que visava a proibir bailes funk, pois neles que corriam soltos drogas, sexo livre, prostituição de menores e todos os males de que o mundo padece. Ou seja, queriam proibir o efeito apenas, o sintoma, sem atacar a doença. O projeto foi engavetado e nem entrou em pauta de votação.
Agora, o país se vê na iminência de ver baixarem o valor do IPI, imposto que encarece o cigarro em 80%, a pretexto de combater os terríveis contrabandeados. Não é preciso ser especialista para vislumbrar que o ilícito continuará, os contrabandistas também baixarão o preço, a margem de lucro dos envolvidos já é enorme. Mais barato, o apelo do cigarro será maior, e fumar será mais acessível para adolescentes. A medida é um presente bilionário que engordará as grandes indústrias e o agronegócio do ramo, são 16 bilhões anuais em vendas contra 57 bilhões gastos direta e indiretamente em saúde. Termino este artigo da mesma forma que concluí o texto sobre o funk. Há uns 20 anos, um congressista tentou lançar um projeto de Lei para lacrar os porta-malas de carros, pois era ali que trancavam sequestrados. Como querer acabar com o crime proibindo bailes funk, ou o contrabando de cigarros reduzindo o IPI. Seria dourar a pílula sem curar os males.