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sexta-feira, 25 de março de 2022

NÃO DESANIMEIS, ANIMAIS


Garoto, sempre que ouvia meu pai dizendo essas palavras
com duplo sentido, eu ria. Coisa de cujo autor ignoro o nome mas pensada e repensada, tinha lá seus truques. A frase talvez surja em um poema só para lhe aproveitar a ironia; ou em um estudo acadêmico de título homônimo, como o do professor da UnB Luiz Martins da Silva, ao contar uma saborosa história. Disse ele, em seu artigo, que o eminente advogado Sobral Pinto, após visita a Luis Carlos Prestes, então preso e maltratado, “peticionou com a seguinte pérola: rogo amparo ao meu cliente conforme a lei de proteção aos animais”: ‘animais’ pode ser o substantivo que agrega à nossa fauna os que ouvem a frase. Conjugada no imperativo, é uma licença poética, pois gramaticamente correto deveria ser ‘animeis’. Mas o frasista não quis o rigor, seduziu-o a liberdade da poesia.


É preciso deixar a gramática de lado
para interpretar a frase: ‘animais’ é o tom jocoso, que relega os desanimados ao reino animal. Por outro lado, a ironia conjuga ainda um apelo para que as pessoas não desanimem, dando sentido amplo à brevíssima sentença. Animemo-nos, pois, animei-vos uns aos outros como a vós mesmos.

O Cabo

Estamos no fim de uma pandemia ou sonhando com ele
: um wishful thinking (algo como pensamento positivo, um desejo oculto) após o desfilar parte do alfabeto grego que deu nome a várias cepas virais da Covid. Melhor estarmos mesmo longe dos ‘animais’: do wishful thinking, do bom desejo, não aquela surrada “a esperança é a última que morre”. (A expressão “dobrar o Cabo da Boa Esperança” significa no popular ir a óbito, ou, no jargão, ‘êxito letal’ - tradução marota ao pé da letra do inglês letal exit). Tudo porque o famoso promontório avança entre os oceanos Atlântico e Índico, na Cidade do Cabo, África do Sul: um lindo apêndice terrestre, apelidado Cabo das Tormentas (ou Tormentoso) pelo navegador português Bartolomeu Dias em 1488, em busca do caminho para a Índias. Escreveu ele:
"Partidos dali, houveram vista daquele grande e notável cabo, ao qual por causa dos perigos e tormentas em o dobrar lhe puseram o nome de Tormentoso”. Porém, a canetada real dá sempre a última palavra, conforme descreve adiante: “mas el-Rei D. João II lhe chamou Cabo da Boa Esperança, por aquilo que prometia para o descobrimento da Índia tão desejada”. Politicamente, uma esperta manobra real!


Fiquemos, apesar da tormenta, animados
com o possível arrefecimento da pandemia, a que assistimos, mantendo, claro, as cautelas protocolares. Desanimar, sabe-se, até baixa a imunidade e leva à depressão. O final não virá tão fácil, há enorme demanda de vacinas, para ao fim chegarmos ao que dizem os cientistas: aprenderemos a conviver com uma Covid já enfraquecida assim como temos feito com os vírus da pólio, da Aids, do sarampo e das gripes de todas as estirpes. Pois cautela e canja de galinha...


Quanto à carência generalizada
, a queda em espiral do padrão de vida, a economia doméstica estrangulada e a carestia que já assola a nação, o ‘pobretão infeliz’ do ‘barracão de zinco’ vai sentir aqui e ali em ano de eleição breves alentos de vida a soprar em seus ouvidos. Disse Malu Gaspar em O Globo (17/03): “Sob a justificativa de impedir que a economia vá para o buraco, (...) serão R$ 30 bilhões em saques antecipados do FGTS, R$ 56 bilhões com o adiantamento do 13º para pensionistas e aposentados, R$ 90 bi para o Auxílio Brasil e até R$ 120 bi para um fundo dos combustíveis. Sem contar os cortes e subsídios fiscais, que poderão chegar a R$ 30 bi, totalizando por baixo R$ 500 bi”. Um alívio de custo multibilionário com curto prazo de validade pingando a conta-gotas na conta dos que têm fome. E depois deste ano? Para quem crê que será assim, não desanimeis, animais!


Fora a pandemia, a inflação, os juros e a guerra fria
, há uma guerra maior fervendo que já se fecha há um mês, a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin – isso porque há outra Rússia, descontente por estar envolvida em um conflito de que discorda. Afinal, a origem do país invasor é a própria Kyiv, ou Kiev, em russo, capital da Ucrânia: Rússia, nação dela concebida como a mãe que traz um filho à luz. Se os dois líderes, Putin e Zelensky, a bem do mundo, vissem tal luz no fim do túnel, seria o bálsamo para os nossos ânimos (apesar de em 1918 o senador americano H. W. Johnson já ter alertado que “na guerra, a primeira vítima é a verdade”). Animemo-nos: Zelensky, figura que parece mais confiável, disse que aguarda o fim do conflito para maio.

Vietcongue

Putin não esperava uma resistência ucraniana guerrilheira
quase à moda dos vietcongues, com armas e aviões menores, entre florestas e destroços. Só faltam buracos camuflados ocultando espetos envenenados de bambu, como na Indochina. Guerra de molotovs, granadas com pino no dente, emboscadas... Uma surpresa para o líder russo, com certeza. A tomada de Kyiv não está sendo tão fácil.


Por isso, primeiro, o fim simbólico do vírus da Covid
: um novo estado de endemia controlável, como querem os cientistas, enchendo as nações de esperança por uma nova vida, plena de alegria. Segundo, uma solução duradoura - e não panaceias de curta duração - para a extrema pobreza e a fome que assolam nosso país. Terceiro e por fim, pelos estertores de uma guerra particular que, neste mundo que sabemos um só, dilacera economias, cria animosidades e gera ódio, deixando o planeta enlutado e vítima do medo, da incerteza e da fome.

Por tudo isso, mais do que nunca, é nossa hora e vez: não desanimeis. Animeis!

 


sexta-feira, 18 de março de 2022

PUTIN, MACCHIAVELLI, NAPOLEÃO E A MENTIRA

 

O Kremlin

Chamada da manchete de capa do NY Times
de 10 de março: “Cada vez mais isolada, Rússia intensifica ataques a civis”. Embaixo, um subtítulo: “Atingido pelas sanções, Kremlin acusa os EUA de ‘guerra econômica’”. Enquanto isso, no mesmo dia O Estado publicou a opinião do conceituado analista político Thomas L. Friedman – três prêmios Pulitzer -, com o título “Putin não tem saída, e isso realmente assusta”: “Espere até 
Putin 
compreender totalmente que as únicas escolhas que lhe restam são sobre como ele pretende perder: uma derrota mais rápida e menor, com pouca humilhação; ou uma mais prolongada e maior, profundamente humilhado”. Ou seja, ou perde ou perde, pensa Friedman. O problema é se a Rússia pode suportar e o quanto um vilipendiado Putin, com sua soberba, resistirá até o momento final.


Dois autores de épocas diferentes
que refletiram sobre poder, guerra, invasão e ocupação: um, o diplomata, filósofo e historiador Niccolò Macchiavelli (1469-1527), por muitos tido como o primeiro cientista político. Nada a ver com a caricatura que fazem os que não conhecem sua obra: “maquiavélico”, aquele que é diabólico. Peguei na estante dois livros do florentino: O Príncipe e A Arte da Guerra. Do primeiro, gosto da edição da Martin Claret, com comentários de Napoleão Bonaparte, figura controversa mas grande entendedor da arte de guerrear, com um estudo do Marcílio Marques Moreira, economista, professor e diplomata brasileiro.


Macchiavelli foi o funcionário mais alto
da segunda Chancelaria de Florença, um dos órgãos da administração republicana instaurada em 1494. Para ele, há dois conceitos principais: a virtù, “qualidade do homem que o capacita a realizar grandes obras e feitos (...), pré-requisito da liderança”, e a fortuna, que seria o acaso, o curso da história, o destino, a fatalidade. Segundo Moreira, virtú e fortuna são “os grandes polos da ação política”. Em O Príncipe, Macchiavelli trata dos assuntos por capítulos, começando por “As monarquias hereditárias”. De “As monarquias mistas”, tiro alguns trechos bem interessantes: diz ele que quando se conquista uma província com leis, idiomas (obs.: na Ucrânia há doze oficiais), costumes diferentes, é preciso muita sorte e habilidade para manter-se. Aconselha o novo governante a “fixar-se na província, fazendo-a sua residência. Isso tornará seu domínio mais firme e durável” (...) E “A presença do governante inibirá a ganância de seus lugares-tenentes”. Napoleão comenta em uma anotação bem ao seu estilo: “...nada farão que não seja por minha ordem, ou serão destituídos”.

O iate de Abramovich (Reuters)

E aqui Putin erra mais uma vez:
 “é preciso tratar bem os homens, ou então aniquilá-los” – por errar refiro-me à primeira parte da frase de Macchiavelli, ‘tratar bem’. Ao atacar uma maternidade ou uma mesquita, Putin revela apenas que é perverso, seu intuito primeiro é aniquilar. Segundo o britânico The Guardian do mesmo dia 10, UE e RU “congelam bens de sete oligarcas russos, como Roman Abramovich” (dono de R$ 155 bi declarados e dono do clube Chelsea). Todos ligados a Putin. Um gesto político, mas bem pensado nas possíveis necessidades futuras do presidente russo – lembrando uma das tendências como a descrita por Friedman (primeiro parágrafo deste texto): derrota “mais prolongada e maior, profundamente humilhado”. Macchiavelli, no 5º capítulo - “O modo de governar as cidades e Estados” -, diz que “quando se conquista um Estado acostumado a viver em liberdade, e regido por suas próprias leis, há três maneiras de mantê-lo: arruiná-lo (...), ir nele habitar ou permitir-lhe continuar vivendo sob suas próprias leis”. Napoleão observou que já em seu tempo a primeira opção de nada valia, e que, quanto a arruinar, melhor seria tudo continuar como estava. Sobre a segunda, habitar no Estado ocupado, menciona a “Comissão Executiva, em Milão, de três adjuntos, como o meu triunvirato ditatorial de Gênova”. (Por aí, vê-se que o francês seria, no jargão popular, mais “maquiavélico” do que o próprio Macchiavelli).


Aconselha-te com muitos sobre as coisas que deves fazer e comunica a poucos o que depois irás fazer”; “muda de resolução quando perceberes que o inimigo a previu” (MACCHIAVELLI, N. A arte da guerra. P. Alegre: L&PM, 2008). Em seu Manual do Líder, Napoleão Bonaparte anotou um grande número de curtos aforismas: “Os homens são aquilo que queremos que sejam”; “O homem superior não segue os passos de ninguém”; “O coração de um homem de Estado deve estar sempre à sua cabeça”; “A melhor maneira de manter a sua palavra é nunca dá-la".

(Daily Express)

Ditado antigo
, “na guerra, a primeira vítima é a verdade”, serve bem a Putin. Em seu artigo “Putin e a mentira como arma de guerra na Ucrânia”, Brenno Grillo  diz: “Nenhum país domina tanto a arte da desinformação - a dezinformatsia - com fins bélicos como a Rússia”. Putin emprega a mentira com tanta frequência que sempre convém fazer uma reflexão inversa para antecipar-lhe a estratégia. Joga sozinho, e talvez nem os mais próximos saibam de seus futuros passos.


Cidadãos esclarecidos
devem estar razoavelmente informados via especialistas de hoje e, por que não, lendo os estudos históricos. Esta guerra já tem consequências desastrosas para o Brasil e existe uma lógica perversa que tenta dividir as pessoas em compartimentos estanques, principalmente nas redes sociais. Há os que chegam a satanizar a vítima - a Ucrânia e Zelensky. Gente de mentes e ‘memes’ curtos, tomada por pensamentos censórios. Livre pensar é só pensar, dizia Millôr Fernandes, e todos têm o direito de fazê-lo. O que é diferente de seguir e repetir com os olhos vendados ideias manipuladas por terceiros.  

 

sexta-feira, 11 de março de 2022

VOCÊ JÁ FOI A UMA GUERRA, NEGA?

 


Dorival Caymmi compôs o samba “Você já foi à Bahia?
” em 1941, homenageando com dengo a culinária da sua terra: vatapá, caruru, munguzá; e as morenas, as “donzelas do tempo do Imperador”. Loas ao samba, ao Bonfim, à imensa riqueza cultural, à beleza das praias. Que alegria poder falar do que temos de bom, cantar a beleza, sem termos vivido aqui uma guerra no sentido amplo da palavra, a invasão cruel genocida. Jorge Ben cantou um país bonito por natureza, e Gil desdenhou as ogivas nucleares: “a bomba explode lá fora / e agora o que vou temer?”

"Crazy vet" (IStock)

Em Boston, cidade de Massachusetts, EUA, onde morei por diversos anos
, não há samba nem frevo, mas tem rock, jazz e salsa, e para quem visitar o país há um universo a ser visto. Porém, cuidado! O filme à noite não é para sessão infantil: sujeitos perdidos, sem rumo nem prumo, falando sozinhos ou xingando sabe-se lá quem ou o quê pelas ruas e estações de metrô. São os crazy vets, ‘veteranos loucos’, subprodutos das guerras. Certo dia eu andava na movimentada Huntington Ave., centro. Um senhor de barba estilo lumberjack (lenhador), cabelos desgrenhados, usava uma camiseta onde se lia Visit fascinating Vietnam, estampada com dedos da mão segurando uma granada. A guerra tinha acabado havia dois, três anos, e eram comuns os suvenires, como chapéu e casaco de campanha bem surrados. Um outro contou que o front era um espetáculo de luzes e sons, e se alguém perdesse um braço ou uma perna nem sentiria: havia morfina em estoque para que se dopassem antes de embrenhar alucinados no cenário de fumaça, tiros e mísseis. Eram sujeitos imprevisíveis, apesar de não necessariamente perigosos; pelo sim, pelo não, melhor evitá-los.


Como precisava de dinheiro, logo entrei para um grupo latino de salsa
, merengue, cumbia e outros ritmos, liderado por um refugiado cubano, apelido William Fox. Havia outros dois caribenhos, precisavam de sangue latino para controlar aquele balanço difícil. E lá fui eu para Roxbury, equivalente ao Harlem de NY. No metrô, ao adentrar o território do bairro, sobe um sujeito e em pé, escorado em um daqueles 'poles', pôs-se tranquilamente a preparar um baseado. Com medo de confusão, perguntei-lhe se não temia ser preso. Ah, para quê? Ele despejou um discurso de herói de guerra, que arriscara sua vida no inferno enquanto os “branquelos” descansavam tranquilos em suas casas. Desaguou um falatório caudaloso, desafiando quem lhe pusesse as mãos, enquanto puxava a bainha da calça para mostrar uma tosca prótese de madeira. O trem parou na minha estação, e saí pela porta mais próxima deixando o esfumaçado vagão para trás.


Coisa não rara ver malucos com pescoços vermelhos,
tatuados ao estilo marine nos braços, discursando - ninguém olhava ou dizia nada. Era o rescaldo da então última guerra, a do Vietnã, que sucedeu a da Coreia, encerrada antes de eu nascer. Antes delas, houve duas Grandes Guerras (1939-1945 e 1914-1918) uma história vinda desde a secessão, Guerra Civil americana (1861-1865), passado que marcou gerações após gerações. Os veteranos, sempre que retornavam às suas casas, eram aclamados, as cidades se enfeitavam e as populações lhes faziam as honras. Lindo, mas no cotidiano, para muitos deles... Depressão, pesadelos, insônia, alucinações, distúrbios do humor, síndrome do pânico, ímpetos suicidas e atitudes nada previsíveis, não raro violentas. O pouco de guerra que vimos na TV ou nos jornais fora para eles um longo e interminável fim do mundo.


Imigrantes e exilados de países invadidos
enfrentam uma outra guerra, a da adaptação à nova realidade. Um jovem pianista que me acompanhou em recitais, Minh Trihn, disse que saiu do Vietnã, ajudado pelo governo americano, com os dois irmãos e seus pais. Foram a um supermercado e compraram latas de dog food (comida de cachorro). Mas espera aí, a família não tinha animal de estimação! Simplesmente comeram aquela pasta no jantar – no Vietnã come-se carne de cachorro -, pois assim entenderam o rótulo das latas.


No Brasil, há uns 20 anos
, eu estava à frente da organização de um curso de música com dezenas de professores. A Secretaria de Cultura da cidade havia marcado – disseram que sem saber – uma reunião no mesmo local onde seria a nossa. Chamei todos à rua e fomos a uma espécie de pracinha, eu precisava da reunião para explicar sobre os passos seguintes, onde ficaria cada grupo e por aí vai. Um deles, o americano Jeff – o nome é fictício -, excelente músico, de vez em quando sorria. Achava tudo meio engraçado, sempre ria à toa e agradava a todos. Um dia, perguntei-lhe se tinha sido escoteiro, como eu, porque o oitavo mandamento da lei dos boy scouts diz: “O escoteiro sorri nas dificuldades”. Depois de mais um sorriso, Jeff respondeu-me com uma pergunta: você esteve no Vietnã? Engoli em seco e ele, sério, fitou-me os olhos até onde minha retina pôde suportar. Ele, pouco mais velho, havia estado na guerra que envolveu Laos, Camboja e Vietnã. Qualquer problema para ele era pura alegria, passatempo de criança.


A guerra que eclodiu com a invasão Russa à Ucrânia
não vai deixar sequelas diferentes. Provavelmente serão bem maiores, devido ao medo de ataques nucleares, além da terra arrasada e economia destruída. São 42 milhões de habitantes se expressando em uma dúzia de idiomas oficiais em 603.600 km². Os sobreviventes terão cicatrizes físicas e mentais profundas, a dor da perda de familiares, uma reconstrução total quase inviável e para sempre aquele odor macabro que não cessa. Um grande o número de vidas errantes em busca de sentido.

sexta-feira, 4 de março de 2022

CLARICE LISPECTOR, UMA UCRANIANA BRASILEIRA

 

A família Lispector. No centro, Chaya

Em dezembro de 1920
nascia, de pais judeus, Chaya Pinkhasivna Lispector, na comunidade de Podolia, em Tchetchelnyk, parte do imenso país que hoje é a Ucrânia. O casal Pinkhas e Maria Lispector, com seus três filhos - dos quais Chaya, ou Clarice, era a mais jovem -, passou pelos massacres da guerra civil que aconteceu após a queda do Império Russo, eliminando seus tzares e impondo outro regime de força. Os Lispector haviam logrado fugir para a România e de lá para o Brasil, onde tinham parentes. Saíram do porto de Hamburgo, no norte da Alemanha, e aqui chegaram no início de 1922, quando Clarice nem havia completado dois anos de idade.

Com Maury

Aos 24 anos, em plena Segunda Guerra Mundial, casou-se com o brasileiro Maury Gurgel Valente, e, por força da carreira diplomática do marido, durante quinze anos teve diversas residências na Europa e nos Estados Unidos. Voltou para o Rio de Janeiro em 1959 já separada, madura e experiente, e escreveu Laços de Família (1960), uma novela plena de símbolos místicos, A Paixão Segundo G.H. (1964), e Água Viva (1973), uma obra fenomenal. Fumante inveterada, em 1966 foi vítima de um incêndio após ter caído no sono deitada com seu indefectível cigarro na mão. Passou dois meses internada e sobreviveu por mais dez anos. Benjamin Moser, seu biógrafo norte-americano, dizia que Clarice era um dos maiores nomes judeus na literatura mundial, após Kafka. Clarice faleceu em 1977 deixando uma vasta obra, objeto de incontáveis traduções, estudos e teses que até hoje brotam com fertilidade, há sempre muito a se descobrir.

Kafka

Uma cabeça extremamente complexa, diziam. Com todos esses eventos trágicos na vida, desde a fuga da Guerra Civil Russa, o trajeto até chegar ao Brasil, a ida para a Europa com o marido em plena Guerra Mundial e a pecha de judia naquele momento, tudo confluía à linha de leitura frequente dela, de Kafka aos grandes pensadores, desde o Hegel do idealismo absoluto ao Schopenhauer do pessimismo, da metafísica de Kant a Sartre e seu existencialismo. 

Prédio da R. Jardim Botânico

Temas Amargos? Certamente, contraste para os almoços dominicais no apartamento dos Autran Dourado, meus pais, onde Clarice comia e falava, discutia assuntos literários e filosóficos enquanto degustava o prato do dia. Descreve o biógrafo Moser, em trecho que traduzo aqui: “Autran e Lucia Dourado a convidavam para almoçar quase todos os domingos. No final da tarde, sentada no apartamento deles, ela tomava um comprimido para dormir e começava a tirar suas joias para que não caísse dormindo com seus brincos e braceletes. Eles a colocavam em um táxi para mandá-la para casa, onde às vezes ela chegava dormindo” (MOSER, Benjamin. Why this world. NY: Penguin books, 2009).



Infelizmente, eu era muito novo e não tinha ideia de quem era aquela senhora. Eu queria molecar, o que era natural, não imaginava quem ela poderia ser, como resumiu Moser: “em meados dos anos 1970, a reputação de Clarice era a de um gênio excêntrico, meio que destoando da sociedade, que havia crescido em lendárias proporções”. Eu e minhas brincadeiras, os adultos na sala divagando entre Schopenhauer e Kafka, por quem ela tinha uma verdadeira obsessão. Em outro trecho de sua biografia, Moser cita: “Autran Dourado, um dos principais novelistas e intelectuais do Brasil, lembra-se de longos domingos passados com Clarice em complicadas discussões filosóficas que iam de Spinoza a Nietzsche”. Carga pesada.


Um dos vinte quadros que Clarice pintou na vida foi dedicado aos meus pais, anfitriões dominicais de repastos e colóquios de Clarice, obra que nós, herdeiros, decidimos por acordo vender e hoje está nas mãos da escritora Nélida Piñon. Outra grande amizade da escritora foi Lúcio Cardoso, que, vítima de um AVC, ficou incapacitado para escrever – mas não para pintar seus quadros, o que fazia manobrando pinceis e tintas entre os dedos dos pés (aquilo me assustou quando, pequeno, uma vez fui com meu pai visitá-lo). Lucio e Clarice mantinham uma verdadeira paixão, embora platônica: ele foi um dos primeiros artistas a assumir sua homossexualidade naquele tempo.

"Eu escrevo para salvar a vida de alguém,
provavelmente a minha própria"

Em 2022, Clarice completaria 102 anos. Foi uma vida entre os pogroms na Guerra Civil Russa, o terror stalinista na terra que deixara, sua mudança para a Europa em plena Segunda Guerra levando o carma da herança judaica, a angústia de escritora após o golpe de 1964... O que seria dela agora, diante da invasão russa à Ucrânia? “Esse traço de desespero que Clarice Lispector revela é comum nos escritores contemporâneos. Mas assume para nossa escritora um caráter trágico, porque Clarice Lispector é escritora mulher e porque está diante de sua própria morte” (GUIDIN, M. Lígia. Roteiro de leitura – A hora da estrela. SP: Ed. Ática, n/d). Ouçamos sobre outras Clarices: “Que mistério tem Clarice / pra guardar-se assim tão firme / no coração”, de Capinam e Caetano (1968), e “choram Marias e Clarices” (1989), lindo poema de Aldir Blanc que fala da viúva de Vladimir Herzog, assassinado em uma cela do DOPS.

Ataque a KIev

Schopenhauer talvez não seja pensamento para nos emaranharmos neste momento, Clarice. Nossas reflexões têm de ser pragmáticas, um dia após cada dia, assombrados diante de uma pandemia devastadora, o barril de petróleo acima de 100 USD que vai catapultar a inflação no mundo com a fome e o desemprego que crescerão deste flagelo imposto ao teu país. A tua hora vive em nós, Clarice. O presidente que poderíamos te dar sinaliza aos invasores e não os repudia: tenta dizer-se neutro, pelos "nossos" interesses.