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sábado, 26 de maio de 2018

CHORO, CLÁSSICOS, POPULARES,

CONTEMPORÂNEOS, IMPROVISOS

Villa, mostrando intimidade com cuíca e violão
O choro, apesar de verdadeira amálgama musical, não foi um pacto de união entre os gêneros clássico e popular. Pixinguinha nunca foi ‘erudito’, assim como Villa-Lobos nunca foi um chorão. Verdade que o compositor escondia um violão debaixo da cama para, sorrateiro, cair na gandaia à noite, nas rodas de choronas dos botequins – sem falar no piano nos fundos de um bordel, cuja cafetina lhe permitia usar. Já Ernesto Nazareth (1864-1934), autor das célebres Odeon e Apanhei-te, Cavaquinho, apaixonou-se pelo gênero, e encheu de ginga brasileira seus tangos, marchas, polca-tangos e outros.
Página manuscrita do Guia, com "Escravos de Job"
Villa bebia direto no popular, em suas pesquisas de campo e nas músicas publicadas no Guia Prático - que deveria adotado em nosso ensino fundamental! Percebo algumas parecenças entre as melodias de O Trenzinho do Caipira, da Bachianas n° 2, e uma das melodias do cancioneiro popular que Villa publicou no Guia. Parece que o ritmo e as notas da melodia dessa obra lembram a canção que traz essa pérola de letra: “Sempre sentava na rede / pra ver meu canário cantar / agora sento na rede / pra ver meu canário penar / Meu canário está doente / doença de inflamação / mandei chamar o doutor / pra fazer a operação / Na primeira lancetada, o meu canarinho tremeu / na segunda lancetada, o meu canarinho morreu”, história assaz trágica. Benéfica é a intromissão das raízes brasileiras na obra dos compositores ‘clássicos’, como queria Mário de Andrade!
Vinicius e Baden-Powell
Villa também mescla influências do mestre alemão em outra das Bachianas (a de n°4), onde se respira o prelúdio da Suíte 3 para violoncelo, de Bach – aliás compositor homenageado nessa linda série do brasileiro. Tanto o alemão quanto Villa parecem ter influenciado também Baden Powell, em flerte do com a Suíte 3 de Bach já no título dado por Vinicius, Samba em Prelúdio (1963): “Eu sem você / não tenho porque / porque sem você / não sei nem chorar”. Através dos tempos, as influências são tão sadias que um dia fiz uma piada brincando com Lavoisier, o ‘pai da química’: Em música nada cria, nada se perde, tudo se copia.
Altamiro Carrilho e Pixinguinha
Pensando nos que veem o choro mais clássico, lembro que o flautista Altamiro Carrilho (1924-2012) chegou a gravar em disco uma versão chorona de alguns ‘hits’ de Beethoven, Mozart e Bach. Apesar de ter um som encorpado, Carrilho era da ‘escola intuitiva’, aprendeu a tocar sozinho em uma flauta de bambu.
O mestre Severino Dias de Oliveira 
E por falar em talento nato, há muito tempo um rapazinho albino procurou o grande maestro Guerra-Peixe (1914-1993) para pedir-lhe aulas de música. Chapéu de couro e usando alpercatas nos pés, mais parecia um cangaceiro. O maestro petropolitano, que fazia arranjos para a Rádio Tamandaré do Recife, deu-lhe algumas lições, mas o jovem logo sumiu. Reapareceu cinco anos depois na TV, tocando o dificílimo Moto Perpétuo, de Paganini, em passo de virtuose na sanfona. Antes que eu me esqueça, o apelido desse garoto albino era Sivuca (1930-2006), um gênio.
Villa e Pixinguinha
Quem, ao contrário, gostava de exibir intuição de músico popular era o próprio Villa-Lobos. Em Boston, onde certa vez proferia uma palestra, alvejado por perguntas técnicas inoportunas, para escapar Villa fez de sua formação musical uma anedota: disse que havia se graduado na “Universidade de Cascadura”, com os mestres Donga e Pixinguinha.
Ran Blake e Gunther Schuller
A música contemporânea – falo daquela de concerto escrita nos dias de hoje – mostra semelhanças com a música popular de vanguarda quando cede ao experimentalismo. Seja com sinais exóticos nas partituras, deixando ao músico a tarefa de ‘recompô-las’, ou sem papel, só sons. Como na Third Stream, ou Terceira Corrente: nem clássica nem popular, um pouco de tudo. Foi outra via criada por Gunther Schuller, há décadas herdada por Ran Blake, com quem tive um ano de aulas, mostrando-me o caminho para aproveitar mais os ouvidos do que as notas das partituras. O resultado tinha a ver com a moderníssima música popular, pois integrantes de ambas as correntes se dedicam a uma mesma meta: criar novos sons.
O Ensemble Intercontemporain regido por Boulez
Os tipos que se entregam às vanguardas costumam ser pitorescos em todas as nacionalidades. Em 1995 recebemos, na Escola Municipal de Música de SP, o Ensemble Intercontemporain, conjunto fundado pelo famoso maestro Pierre Boulez (1925-2016) em Paris (os franceses adoram conservar vanguardas, divirto-me). Pois assim que cheguei na escola, eles já estavam lá. O clarinetista cumprimentou-me com o cotovelo, pois devorava uma pera com as duas mãos. A cantora, esfomeada, já havia detonado sozinha quase a metade dos lanches feitos para o grupo. O da tuba isolou-se em uma pequena sala, e fechou as janelas para evitar a invasão dos sons de outros instrumentos. À frente de uns quinze alunos, falava sobre improvisos usando técnicas microtonais – frações de tom como entre um dó e um ré. A temperatura, com janelas fechadas e aquele monte de tubistas respirando e soprando, devia estar acima dos 40 graus, naquele verão.
O contrabaixista do grupo, quase pisei no sujeito. É que ao entrar pela porta de minha sala topei com ele simplesmente esticado no chão. Assustado, perguntei se estava tudo bem, e ele respondeu apenas oui, oui. Estava  relaxando. Depois, conduzimos o músico para a sala onde deveria fazer sua exposição. Embora espaço amplo, ele reclamou, concordando que sim, era mais do que suficiente para tocar - mas não para que ele pudesse dançar. Tous complètement fous! (todos completamente loucos). E que dia exaustivo e pleno de improvisos em todos os sentidos!

sábado, 19 de maio de 2018

CEGUEIRA, OUVIDO MUSICAL...

E OUTROS SENTIDOS
Reli o Ensaio Sobre a Cegueira, do escritor português de Azinhaga José Saramago, ficção sobre uma epidemia que deixava sem visão os habitantes de uma cidade, em convulsão social (ora, pois pois, estás a saber que é a ótica do realismo socialista d’antanho, como convinha a um gajo comunista!) Passei a lembrar-me de fatos sobre cegos e a música. Lembro-me de muitos deles, e logo veio à cabeça o ano em que resolvi abrir as inscrições para deficientes visuais na Escola de Música do Teatro Municipal de São Paulo (EMM): nos testes, ficavam bem acima dos demais, raramente falhavam em uma questão auditiva. Sem um dos sentidos, ampliam-se outros, como a audição.
Jovem cego e autista se prepara para recital em Londres
O pianista Paulo Cego, meu colega de grupo na Gota d’Água (1975), do Chico Buarque e Paulo Pontes, tinha cegueira de nascença. Sendo rara ou impossível a leitura musical em braille, Paulo aprendia Bach de ouvido. Bastava alguém tocar a linha de cima de uma ‘Invenção’, por exemplo, e ele a gravava na cabeça. Depois, ouvia a pauta de baixo, memorizava-a, e voilà!, mão esquerda pronta! Ato contínuo, juntava as duas mãos passava a tocar ambas as vozes! Aprendia, linha por linha, até decorar a peça inteira, façanha inalcançável para nós. Logo, aprendeu o repertório inteiro, era hora de ‘atacar’ no espetáculo.
Bibi, em seu insuperável monólogo
Chegando ao teatro, alguém o guiava pelos labirintos internos, segurando-lhe o braço com a mão, tal fosse um guia. No final do 1º ato, havia um longo monólogo da Joana (Bibi Ferreira, uma Medéia moderna), coisa de 15 minutos (e se não era tudo isso, era o que sentíamos). Cena dramática, Joana-Medéia desabafava como só a Bibi sabia fazer, até matar-se e aos dois filhos. Durante os ensaios, saíamos antes do monólogo, pé ante pé, para emendarmos pausa e intervalo. Paulo punha a mão em meu ombro, e eu o guiava pela escada de madeira do nosso palco musical. Galgávamos bastidores, camarins, e, finalmente, a porta dos fundos. Mas no pré-ensaio geral, ai, os testes de iluminação! Descobrimos que Bibi ficaria sob um spot de luz - o chamado ‘canhão’ - focado apenas nela. O resto era um breu só.
Teatro Thereza Rachel
Pensamos: que diabo iríamos fazer naquela infinitude de tempo até o intervalo, sem podermos sair? Paulo, tateando e havendo memorizado o caminho, ouvia a reflexão e absorção das paredes, portas e passagens, e pediu que eu colocasse minha mão em seu ombro, trocando comigo o papel de guia. Logo estávamos livres para um saboroso café, retornando apenas ao soar da campainha de chamada para o segundo ato.
Em seu apartamento, no Rio, Paulo dizia em voz alta o nome de quem chegava, bastando-lhe ouvir os passos, mesmo que não fossem de alguém tão frequente por lá como eu. Sabia o som dos sapatos, dos passos, e o padrão rítmico de cada um ao andar, explicou. Na hora de eu ir embora, Paulo, bom cavalheiro, me conduzia ao elevador, e ao perceber que eu esperava diante da porta errada ele simplesmente dizia é este aqui, mostrando-me qual deles chegaria primeiro. Tinha uma sensibilidade a toda prova, carregava sempre um par de chaves que girava, uma ao lado da outra, entre os indicadores e polegares das mãos. Mas não explicava para que serviam, se eram alguma espécie de ‘antena’ sensorial ou coisa afim. Conseguia, sabe-se lá como, dizer se alguma moça com quem conversáramos era bonita, e pelo aperto de mão e o tom de voz, o caráter de alguém que lhe apresentávamos.
Outro afeito a coisas da sensibilidade (e do além) era um trombonista de Campinas apelidado Pantera – um negão, como gostava de ser chamado, de uns 140 Kg pelo menos. Tocava na sinfônica local, e chegava arrastando devagar os chinelos, atrasado quando lhe convinha, e faltava dias sem explicação, não estava nem aí. Camisa social desabotoada em cima, ostentava as guias de Umbanda com orgulho. Pois um certo dia as esposas de dois músicos da orquestra, suspeitando que seus maridos as traíam, foram consultar, por sugestão de outra amiga, um pai de santo na Vila Costa e Silva, bairro mais pobre entre o centro e a Unicamp - para confirmar ou estancar a dolorosa suspeita de traição. Chegando lá no endereço fornecido, as inconformadas ‘helenas’ encontraram um homem enorme, as duas mãos cobrindo-lhe o rosto voltado para baixo. Rapidamente, uma das desconfiadas esposas puxou a outra pelo braço e, antes que o pai de santo ‘acordasse’ saíram fora, sussurrando é o Pantera, é o Pantera!
Conhecidos também eram os talentos de um violinista da Orquestra Sinfônica do Estado, hoje chamada por sua abreviatura Osesp. Tratava-se de um discreto chinês que adivinhava o sexo dos futuros rebentos das gestantes, usando para isso um lápis amarrado em uma linha. Conforme o sentido de giração daquele pêndulo de grafite sobre o pulso da grávida, dizia menino ou menina, e não errava nunca.
Perto dele se sentava um colega chamado Coppola, folclore em pessoa, que adivinhava tudo. Terminado o ensaio no histórico Teatro Cultura Artística, na rua Nestor Pestana - que além de via era a fronteira entre a cultura, bons restaurantes, lojas e, do outro lado, o bas-fond local -, lá o aguardava sempre uma moça de fino trato e ‘família quase boa’ com suas botas brancas.
Perguntado qual o segredo de se manter tão saudável aos para lá de setenta e tantos anos, Coppola dizia é que escolho muito bem minhas mulheres! (Os maldosos diziam que ele fechava as torneiras do banheiro com os cotovelos, para não pegar micróbios). Olhos vivos, ouvidos aguçados, adivinhava tudo, um dom aliás pouco conhecido. E para o bem de todos nós, orquestra e Eleazar. Era um homem de paz e bom coração.

sábado, 12 de maio de 2018

“ORA, DIREIS, OUVIR ESTRELAS!”


'CACHAO' e a banda de Tito Puentes
Releio este primeiro verso do poema do Olavo Bilac, só que pensando ‘estrelas’ no sentido de músicos. No último artigo, falei sobre o Zerró Santos, talento nato do contrabaixo e líder da big-band que leva seu nome, em SP. Daí a outro contrabaixista foi um pequeno salto: o cubano Israel López Valdés, o Cachao (1918-2008), que completaria 100 anos em março. Vindo de uma família de 35 contrabaixistas, Cachao foi multi-instrumentista, compositor, um dos criadores do mambo – e da descarga, uma espécie de jam-session em que os músicos tocam improvisadamente, alternando-se nos solos. Exilado nos EUA em meados de 1960, fez algum sucesso mas terminou esquecido. Ia do clássico à ‘salsa’, e, quando à frente de sua banda, tocava ao mesmo tempo em que regia com movimentos do rosto, a boca e até - marca registrada dele - com as sobrancelhas! 
Arcos francês (esq) e alemão, ou à Dragonetti (dir)
Espaço para curiosidade: existe uma rixa bicentenária entre os contrabaixistas que adotam as escolas de arco ‘alemão’ (ou ‘à Dragonetti’), surgida do antigo violone, e os adeptos da chamada ‘francesa’, semelhante à do violoncelo. A disputa é tão aguerrida que, em alguns países, os que empregam uma das escolas não entram na seara alheia. Com a depuração da técnica, ao ouvir uma gravação dos grandes solistas de uma ou outra vertente torna-se difícil distingui-las. E é claro que não poderiam faltar anedotas...
Teste de QI (Amazon.com)
[Conta a estória que o dono de um barzinho, só de olho, seria capaz de dizer o QI do freguês. Certa vez, entrou um sujeito, ele olhou e disse puxa, parabéns, você tem um QI incomum, 140! Olha, ali na mesa daquela coluna tem um rapaz do mesmo nível. Vá lá! Dito e feito, os dois logo começaram a discutir sobre o big-bang, relatividade, pulsars, quasars e afins. Ao próximo freguês, o dono do bar disse que ele tinha QI 100, ótimo, e sugeriu que ele se acomodasse na mesa do outro lado com um frequentador do mesmo QI. Falaram sobre artes plásticas, terceira via, Brexit e por aí vai. Finalmente, veio um terceiro, meio perdido, e ao ver o QI do rapaz, meros 40, sugeriu que ele ficasse à vontade na mesa dos fundos, onde iria se dar bem com a companhia - de quociente igual ao dele, deduziu. O rapaz foi direto ao lugar e se apresentou: olá, meu nome é Mário, muito prazer! O outro: olá, o meu é Nelson, prazer. E para começar a conversa, perguntou você toca arco francês ou alemão?]
Toninho Horta e Novelli
Outro contrabaixista pitoresco era o Novelli, egresso da bossa-nova e que gravou com artistas como Gal Costa, em Pérola Negra.  Disse-me com orgulho que nunca tinha estudado música, falha que, acho, compensava com seu ouvido e memória prodigiosos. Para enriquecer as linhas do seu instrumento, ouvia muito Bach, prestando atenção no baixo-contínuo do mestre do barroco alemão. Novelli falou que só sabia duas coisas: onde a ‘nota do acorde’ está e para onde vai. O ‘caminho’ ele inventava na hora.
Raul, "O Rei do Trombone"
Ouvir também nunca foi problema para o grande trombonista Raul de Souza (1934). Saído da noite carioca, Raul mudou-se para os EUA, onde desfrutou de ótima reputação, tocando em diversas gravações e shows com alguns dos melhores artistas. Conta-se que, em uma gravação, Raul viu-se em apuros, pois não conseguia ler certa passagem mais complicada, era meio fraco na leitura. Na primeira brecha, virou-se para o colega ao lado e disse que aquele trecho estava errado, só podia, e pediu que ele o tocasse. Depois de ouvir, gravou a frase na memória, repetiu-a e disse é, acho que você tem razão, está certo.
Cauby Peixoto, idade antes não oficial (morto em 2016, descobriu-se que aos 85), era um prodígio do ouvido e da memória. Tive a oportunidade de com ele tocar no Tijuca Tênis Clube, início dos anos 70, como ringer (de on the bell ring, músico que chega ‘ao soar da campainha’ do início do show). Após anunciado seu nome, uma plateia formada em 95% por senhoras idosas frenéticas, Cauby fez charme para aparecer. Surgiu e, amainados os aplausos, pediu que anotassem títulos de músicas em pedacinhos de papel e os jogassem em uma cumbuca de vidro.
Sorteou e cantou a primeira: “Free again”, logo de cara, solfejando o arpejo do acorde para nós localizarmos a tonalidade. Ouvido absoluto. Cauby falou, só de charme, que acabara de chegar do México com sua banda – que nunca havia visto, fora seu irmão, ao piano. Após várias exibições de ouvido (para quem entendia) e memória, cantando em português, inglês, francês e italiano, terminou o show sob explosivos aplausos.
Sinatra e Jobim no estúdio
Em NY, uma divertida do saudoso maestro soberano, Tom Jobim (1927-1994), compositor que carregava a aura de um gênio. Ao perceber que músicos curiosos se apinhavam no aquário (lugar separado por um vidro, onde fica a técnica do estúdio) para vê-lo, recusou-se a gravar, segundo o meu amigo baterista Pascoal Meireles. Disse que se ficassem lá espiando iriam ver “que não sei tocar”. Outra: antes de eu me mudar para os EUA, meu pai o encontrou na casa do escritor Paulo Mendes Campos (1922-1991). Disse ao compositor, orgulhoso, meu filho vai morar e estudar nos EUA. Jobim, com clara ironia: ótimo, vai voltar falando inglês.
Carta de Pero Vaz de Caminha
Bom, isso era para ele, Jobim, que nunca precisou sair para aprender, acreditava realmente na “terra em que se plantando tudo dá”, do Caminha (hoje há opções no Brasil!). Sonhador, boêmio e tido como americanizado pelos críticos nacionalistas mais radicais, já com certa idade adotou um charuto, à Villa-Lobos, e declarou sua paixão por urubus e matitaperês, após descobrir que galinhas, cães e bois não são produtos nativos, e sim importações, como o arroz e o café.


sábado, 5 de maio de 2018

‘BOEMIA, AQUI ME TENS...’ MAS NO SÉC. 16?

Sonho de uma Noite de Verão (por Edwin Landseer, 1848) 

A boemia, com seu charme discreto e percalços, perigos e tragédias, não é privilégio de artistas dos tempos atuais. Shakespeare, em seu Sonho de uma Noite de Verão, comédia de 1535, satirizava a boemia, e reclamava dos rabequeiros - do árabe rabab, antecessor do violino e ancestral da nossa rabeca. Disse que os músicos não passavam de bêbados contumazes, e a única coisa que sabiam fazer bem era discutir quem pagaria a próxima cerveja.
Johanness Bach, instrumentista e compositor da numerosa família de Johann Sebastian, foi morto a golpes de espada em 1635, junto a alguns colegas músicos. O autor dos assassinatos foi um certo capitão sueco, que se derramou sobre uma poltrona, inteiramente bêbado, durante uma festança na casa de um rico comerciante de Erfurt. O oficial havia tomado muito além da conta – como, de resto, boa parte dos convivas e músicos. Depois de cochilar durante a apresentação, o oficial acordou de súbito com algum pesadelo, julgando em delírio estar sendo atacado por inimigos, que empunhavam suas armas, digo, arcos e instrumentos. Desferiu golpes para todos os lados, sem mal ver quem lhe aparecia pela frente.
Em 1715, um certo chantre (mestre de capela, maestro) Sicca chegou a denunciar seus músicos às autoridades locais porque chegavam sempre bêbados aos ensaios. Os acusados, em sua defesa, alegaram que tudo não passava de intriga do chefe, já que Sicca teria roubado um Te Deum (hino religioso) por eles composto, e no ensaio seguinte passaram a agredi-lo em revide.

Ion Muniz
Um corte de cinema de volta ao futuro: algumas figuras da boemia nacional, incluindo tantos músicos, eram personagens tão populares quanto o saci-pererê para o caipira das roças brasileiras. Vou lembrar-me de alguns, agora, estava lhes devendo uma homenagem. Ion Muniz (1948-2009), que espatifou seu saxofone contra o meio-fio em NY. Os trombonistas Maciel e Constâncio, da famosa big band ‘mela-cueca’ dos dancings, o folclórico baterista Edison Machado (1934/90), que protagonizou um sem-número de episódios. Ele foi o criador daquela batida de bossa-nova, marcando o ritmo com a baqueta no contratempo - aquele par de pratos acionado com o pé esquerdo -, som que tem a cara e o jeito da bossa-nova do lendário Beco das Garrafas, em Copacabana.
Milton Banana
E quem criou o toque lateral da baqueta esquerda no aro metálico da caixa (ou ‘tarol’, no popular), foi Milton Banana (1935-99), a pedido de João Gilberto, cujo suave violão precisava de bateria com volume de uma caixa de fósforos. A dupla Machado-Banana criou a histórica bateria imitada no mundo inteiro, dando cara à bossa-nova.
Edison Machado
Edison era maluco: se alguém dizia que ele errou, gritava nunca erro, vocês é que erram juntos! Apesar de admirado pelos músicos, o baterista foi sendo gradualmente banido da noite carioca. Mudou-se de mala e cuia para Nova Iorque, onde tudo é possível e permissível entre os músicos, dando enfim vazão à sua personalidade e estilo inconfundíveis. Quem não se lembra daquele memorável solo polirrítmico (diferentes ritmos simultâneos) de bateria na música “Leila” do disco Minas (gravação abaixo), do Milton Nascimento, uma atuação impagável? Morreu e foi esquecido, exceto para os que o ouviram ou conheceram por acaso, como eu, que tive a felicidade de até ‘brincar’ com ele.

Entre os contrabaixistas, o José Roberto, “Zerró” Santos, é um caso à parte. Radicou-se em São Paulo, vindo do Rio, depois de largar sua Belém Natal. Certa vez, deixou o imortal Bill Evans surpreso, no Antonio’s, do Rio, acompanhando de orelhada as intricadas harmonias do pianista americano, os enormes dedos espalhados no teclado, um jazz temperado com impressionismo francês. Com o bar cheio garças à ilustre ‘canja’, Evans virou-se para trás para ver quem era aquele
maluco que fazia aquilo assim by heart (de ouvido).
O Severino
Zerró, chegado do Pará ao Rio em que o conheci e curtimos muita música, às vezes passava por necessidades. Depois, boate após boate, buscando o pão nosso de cada dia, às vezes deixava seus dedos quase em carne viva, dizia curá-los com sal grosso. Lembrava até Morte e Vida Severina, do poeta João Cabral: “fazendo dos dedos isca para pescar camarão”. Nos piores dias, fazia troça dizendo que havia comido ‘sanduíche de pão com pão’. Após algumas noites insones e, sob o efeito de alguma bebida, parecia ter dificuldade de atravessar a rua: esbarrava em um carro, voltava, esbarrava de novo...
Zerró Santos Big band project
Finalmente, em momento de conflito espiritual, disse que iria largar a música para ser padre. Logo voltou à noite carioca, mas desistiu e mudou-se para São Paulo, onde já acompanhou metade dos cantores e cantoras brasileiros e lidera sua própria big band, que leva seu nome. Um dia teve o desplante de me pedir aulas de música. Mas logo você, um mestre, perguntei. Técnica tardia, com certeza um risco à sua musicalidade já consolidada.
O pequeno grande Caçulinha
Uma proeza de ouvido tem o acordeonista Caçulinha, que não bebe sequer um guaraná “caçula” (não resisti). Há uns 20 anos, gravávamos em estúdio um disco de arranjos do grande Luis Arruda Paes, formando uma pequena orquestra. Durante a gravação, aquele baixinho floreava os arranjos nos ensaios. Hora de gravar “à vera”, cutucou-me e pediu que lhe dissesse a hora de parar de tocar – não era adepto da leitura musical. Coisa de piadista, acho que o Caçulinha pode acompanhar até o zumbido de uma mosca. Genial, e todos devem saber disso. Fica neste texto uma homenagem geral aos músicos com ou sem a chamada “manguaça” - ‘boêmios de vida’, da  Idade Média até hoje.




quinta-feira, 3 de maio de 2018

BREVE DIÁRIO DE UM VIOLONCELO





(História do trajeto de um violoncelo escrita de punho pelo próprio Heinz Wilda, o segundo protagonista nos acontecimentos – o primeiro foi o próprio cello – e organizada por mim, o autor deste texto).
Construções da antiga Brescia
Fui concebido em 1697, na Bréscia, por Giambattista Rogeri, mestre de luteria italiano. Como estou em idade madura, mais de 300 anos, pouco me lembro de minha infância, além de quando, há uns dois séculos, levaram-me da minha Itália natal para Londres. Ali, um dia fui adquirido por um músico alemão, Paul Wisa, lá pelos idos de 1875.


Seguindo certa tradição judaica de investir as economias da família em obras de arte, instrumentos musicais e afins, meu dono um dia entregou-me ao seu filho, Heinz Wilda, um garoto de apenas quinze anos, dando-lhe a missão de estudar e se preparar para, em breve, fugir da Europa, levando-me na sua bagagem como ferramenta de trabalho e poupança da família.




Em 1933, já soprava forte o vento antissemita: Hitler acabara de ser nomeado Chanceler da Alemanha. Em um dia daquele mesmo ano, uma gangue de rua fez o jovem Heinz fugir pelas escadarias de uma estação do metrô de Hamburgo. Caiu e rolou comigo escada abaixo, um tombo feio. Fui entregue aos cuidados do luthier Andreas Gläsl, que em mim realizou longas e perfeitas cirurgias, digo, reformas.

Invasão da Polônia pelas tropas nazistas
Hitler encantava sua cada vez maior legião de fanáticos, e Paul dera o sinal a Heinz de que se aproximava a hora de deixar o país. Paul, que havia se apresentado comigo em muitos concertos, achou por bem passar-me de vez ao filho, antevendo os avanços do Führer, e acabou morrendo em circunstâncias misteriosas em 1935. Em 1939, o Eixo havia invadido a Polônia, e Heinz tinha de escapar ou correr o risco de ser executado em um campo de concentração. Conseguiu fugir, levando-me consigo.

Embarcamos rumo à Venezuela, a bordo do cargueiro Cordillera, mas a imigração local nos barrou. Seguimos para Curaçao, nas Índias Holandesas, onde nos escondemos por semanas, até rumarmos para Aruba, uma ilha vizinha, de onde também fomos expulsos. Finalmente, meu dono encontrou um velho judeu que me facilitou um visto para o Equador, e partimos para Balboa, no Canal do Panamá. De trem, chegamos a Cristobal, e aguardamos uns dias pelo comboio para Guayaquil, no Equador, onde ficaríamos por quatro anos, fazendo música, ganhando pouco e comendo muito mal. Ao saber que um parente seu tinha sido aceito no Brasil, Heinz, já casado, saco de roupas nas costas, de braços comigo (e, ah, desculpe, é claro, também a esposa), aportava em São Paulo em 1946.

O lendário Martin Braunwieser e seu coral
Músico, literato e poliglota, bom tradutor que era, Heinz logo conseguiu trabalho. Na música, juntou-se a Martin Braunwieser, um célebre austríaco que Mário de Andrade havia trazido para o Brasil em 1935 para ser instrutor de ensino musical dos parques e jardins da cidade (imagine você, isso já existiu em São Paulo!). Aos poucos ia se dissipando no nevoeiro da memória um passado de tantas fugas, porões úmidos e sujos dos cargueiros, a fome. Estávamos livres, soltos, em um país abençoado por Deus e bonito por natureza.

Um leilão de instrumentos em Londres
Aos 94 anos de idade Heinz me vendeu, e acabei chegando a Nova Iorque, onde quase fui colocado em pregão, mas felizmente acabei sendo retirado às pressas do leiloeiro pelo meu arrependido proprietário. Fui emprestado para um jovem talento nova-iorquino por uns anos, e de lá voltei (passado um século e meio!) para Londres, cidade em que hoje me leva a tiracolo é uma violoncelista chamada Marta Autran Dourado.




Caro diário, segredo entre nós: nunca tive dono. Tenho mais de 300 anos, quero viver pelo menos outros 300, chegar à melhor idade em boa forma. E confesso, querido confidente, ninguém, ninguém mesmo foi meu dono: alguns músicos passaram brevemente por minha vida, como outros ainda por mim passarão, e por minhas virtuosas qualidades – nós, instrumentos, somos para um músico o que o cão é para o homem: seu melhor amigo. Portanto, não pertenci a nenhum artista, eu é que fui dono da música de todos eles, eles me pertenceram.