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quinta-feira, 3 de maio de 2018

BREVE DIÁRIO DE UM VIOLONCELO





(História do trajeto de um violoncelo escrita de punho pelo próprio Heinz Wilda, o segundo protagonista nos acontecimentos – o primeiro foi o próprio cello – e organizada por mim, o autor deste texto).
Construções da antiga Brescia
Fui concebido em 1697, na Bréscia, por Giambattista Rogeri, mestre de luteria italiano. Como estou em idade madura, mais de 300 anos, pouco me lembro de minha infância, além de quando, há uns dois séculos, levaram-me da minha Itália natal para Londres. Ali, um dia fui adquirido por um músico alemão, Paul Wisa, lá pelos idos de 1875.


Seguindo certa tradição judaica de investir as economias da família em obras de arte, instrumentos musicais e afins, meu dono um dia entregou-me ao seu filho, Heinz Wilda, um garoto de apenas quinze anos, dando-lhe a missão de estudar e se preparar para, em breve, fugir da Europa, levando-me na sua bagagem como ferramenta de trabalho e poupança da família.




Em 1933, já soprava forte o vento antissemita: Hitler acabara de ser nomeado Chanceler da Alemanha. Em um dia daquele mesmo ano, uma gangue de rua fez o jovem Heinz fugir pelas escadarias de uma estação do metrô de Hamburgo. Caiu e rolou comigo escada abaixo, um tombo feio. Fui entregue aos cuidados do luthier Andreas Gläsl, que em mim realizou longas e perfeitas cirurgias, digo, reformas.

Invasão da Polônia pelas tropas nazistas
Hitler encantava sua cada vez maior legião de fanáticos, e Paul dera o sinal a Heinz de que se aproximava a hora de deixar o país. Paul, que havia se apresentado comigo em muitos concertos, achou por bem passar-me de vez ao filho, antevendo os avanços do Führer, e acabou morrendo em circunstâncias misteriosas em 1935. Em 1939, o Eixo havia invadido a Polônia, e Heinz tinha de escapar ou correr o risco de ser executado em um campo de concentração. Conseguiu fugir, levando-me consigo.

Embarcamos rumo à Venezuela, a bordo do cargueiro Cordillera, mas a imigração local nos barrou. Seguimos para Curaçao, nas Índias Holandesas, onde nos escondemos por semanas, até rumarmos para Aruba, uma ilha vizinha, de onde também fomos expulsos. Finalmente, meu dono encontrou um velho judeu que me facilitou um visto para o Equador, e partimos para Balboa, no Canal do Panamá. De trem, chegamos a Cristobal, e aguardamos uns dias pelo comboio para Guayaquil, no Equador, onde ficaríamos por quatro anos, fazendo música, ganhando pouco e comendo muito mal. Ao saber que um parente seu tinha sido aceito no Brasil, Heinz, já casado, saco de roupas nas costas, de braços comigo (e, ah, desculpe, é claro, também a esposa), aportava em São Paulo em 1946.

O lendário Martin Braunwieser e seu coral
Músico, literato e poliglota, bom tradutor que era, Heinz logo conseguiu trabalho. Na música, juntou-se a Martin Braunwieser, um célebre austríaco que Mário de Andrade havia trazido para o Brasil em 1935 para ser instrutor de ensino musical dos parques e jardins da cidade (imagine você, isso já existiu em São Paulo!). Aos poucos ia se dissipando no nevoeiro da memória um passado de tantas fugas, porões úmidos e sujos dos cargueiros, a fome. Estávamos livres, soltos, em um país abençoado por Deus e bonito por natureza.

Um leilão de instrumentos em Londres
Aos 94 anos de idade Heinz me vendeu, e acabei chegando a Nova Iorque, onde quase fui colocado em pregão, mas felizmente acabei sendo retirado às pressas do leiloeiro pelo meu arrependido proprietário. Fui emprestado para um jovem talento nova-iorquino por uns anos, e de lá voltei (passado um século e meio!) para Londres, cidade em que hoje me leva a tiracolo é uma violoncelista chamada Marta Autran Dourado.




Caro diário, segredo entre nós: nunca tive dono. Tenho mais de 300 anos, quero viver pelo menos outros 300, chegar à melhor idade em boa forma. E confesso, querido confidente, ninguém, ninguém mesmo foi meu dono: alguns músicos passaram brevemente por minha vida, como outros ainda por mim passarão, e por minhas virtuosas qualidades – nós, instrumentos, somos para um músico o que o cão é para o homem: seu melhor amigo. Portanto, não pertenci a nenhum artista, eu é que fui dono da música de todos eles, eles me pertenceram.




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