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sexta-feira, 24 de junho de 2016

VOCÊ SABE O QUE É ENFITEUSE MAS NÃO SABE O QUE É EXTORSÃO?

Meu pai volta e meia repetia os versos do Lundu do Escritor Difícil, do Mário de Andrade: “...não carece vestir tanga / pra penetrar meu caçanje (obs.: mau português) / Você sabe o francês singe / mas não sabe o que é guariba? / pois é macaco, seu mano, que só sabe o que é da estranja”.
A enfiteuse (do latim emphyteusis) é uma espécie de arrendamento que vem do direito romano. No Brasil, refere-se a terras da União, cedidas permanentemente a particulares. O enfiteuta (cessionário) tem o dever de bem cuidar das terras adquiridas. No passado, o enfiteuta pagava à União o vectigal, espécie de taxa anual, como contrapartida pela cessão do imóvel em caráter permanente por instrumento jurídico (isso, até 1916). O instituto da enfiteuse estava no Código Civil de 1916, mas em nosso novo Código, de 2003, deixou de ser considerado um direito real, embora tenha permanecido em plena vigência.
A "Faixa do Laudêmio"
O curioso é que o novo Código também preservou o laudêmio (do lat. laudemium), que não é imposto, não é taxa, não é tributo, não é nada. Querem que pareça a história do “tem focinho de porco, pé de porco, orelha de porco, mas não é porco, é feijoada”. O laudêmio de 2,5% deve ser pago pelo vendedor à Marinha, portanto, à União, pela proximidade do terreno com o mar (rendendo coisa de R$ 153 milhões ao ano). Em 1821, todo aforamento - obrigação de ceder suas terras para plantio de outrem - das chamadas sesmarias passaram a ser enfiteuses, conforme determinou o Império de Portugal. O ilustre jurista Pontes de Miranda (1892-1979) afirmou que a enfiteuse, instituída inicialmente para as terras próximas ao mar, “para prevenir invasões” (sic), “é um dos cânceres da economia nacional”.
Pior: a depender do caso, em cidades como Petrópolis, antiga Residência Imperial de Verão, paga-se 2,5% não à Marinha, mas aos herdeiros da Família Imperial. Sim, isso mesmo, família que, como se sabe, caiu do trono há 129 anos, quando Deodoro desferiu-lhe o golpe mortal da República.
Árvore genealógica da Família Imperial
A família Orleans e Bragança recebe 2,5% de cada transação imobiliária em Petrópolis, o que soma – segundo a contabilidade da própria Família Real – R$ 4,7 milhões no ano, ou seja, R$ 470 mil (atuais) para cada um de seus dez membros vivos. Para fazer absolutamente nada. O porquê de a República manter a benesse para a família real 129 anos depois do fim do Império, não descobri. Há um Projeto de Lei protocolizado em 2014 para extingui-la, na Câmara dos Deputados, mas que sequer chegou à CCJ, primeira comissão. Algo me diz que ficará onde está.
Assustou-se? Calma, tem mais, seu mano (como diria Mário): o laudêmio também pode ser devido, em lugares como a Bahia e pelo menos parte da cidade do Rio de Janeiro, à Igreja Católica – isso mesmo, à Igreja! Caymmi cantava “365 igrejas, a Bahia tem”, mas ficam de fora os orixás, os cultos afro-brasileiros e demais religiões? Que dizer dos ateus e agnósticos? Simplesmente porque a lei “pegou”, e continua vigente mesmo em um país dito laico, cuja Constituição determina expressamente que não há distinção de raça, credo, etc.?
O cidadão que receber por herança ou por doação um imóvel vai pagar também o ITCMD (Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações) ao cartório de imóveis, em taxas que variam conforme o estado: em São Paulo, cobra-se 4%, e no Rio de 4,5% a 5% na avaliação estabelecida por uma tabela especial, e não o mais modesto valor venal, claro. Isso significa que, só de ITCMD, o herdeiro de um imóvel de 1 milhão (os preços no Rio estão na estratosfera) tem de pagar R$ 50 mil para registrá-lo em seu nome. E não é só. Some 2% do ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis) municipal, que acompanha o valor da tabela do ITCMD, e o total já salta para R$ 70 mil. No Rio, onde há ainda o laudêmio e outros tantos impostos, o achaque é tão absurdo que o número de imóveis em situação irregular é alarmante. Herdeiros ficam na posse precária do imóvel, alugam ou passam adiante assim mesmo. Mas não para aí.  
Ao registrar um imóvel, o cidadão fluminense paga também o PMCMV, que nada mais vem a ser que uma contribuição para o Minha Casa, Minha Vida, a cerejinha do governo federal, bonita para os ilustres governadores e presidente de plantão inaugurarem, com direito a casquinha dos prefeitos. Mas espere, como a molecada hoje diz, você ainda “não sabe de nada, coitado!”
Paga-se 20% para o  FETJ (Fundo Especial do Tribunal de Justiça), assim distribuídos: 5% para o FUNPERJ (Fundo Especial da Procuradoria Geral), mais 5% do FUNDPERJ (Fundo Especial da Defensoria Pública Geral), 4% do FUNARPEN/RJ (Fundo de Apoio aos Registradores Civis das Pessoas Naturais), e uma caixinha de R$10,86, por cada ato praticado, sejam quantos forem, divididos igualmente para a Mútua dos Magistrados do Estado, a Caixa de Assistência do Ministério Público, a Caixa de Assistência dos Procuradores do Estado, a Caixa de  Assistência aos Membros da Assistência Judiciária, a ANOREG/RJ (Associação dos Notários e Registradores),  ACOTERJ (Associação dos Conselheiros dos Tribunais de Contas do Estado e dos Munícipios). Paga-se ainda R$15,63 para cada consulta ao BIB (Banco de Indisponibilidades de Bens). Ficam assim todas as entidades fornidas e satisfeitas!

Meu pai dizia - sabia do que falava, pois trabalhou muitos anos no Palácio da Justiça do Rio e conhecia bem o assunto - que o Brasil não tem governo, tem tributo. Uma de suas “sacações” geniais, seu jeito de trançar os sentidos com um humor muito pessoal. Sábias palavras!!!

sexta-feira, 17 de junho de 2016

DIREITO DE GREVE E REBELDIA SEM CAUSA

Operários em plena Revolução Industrial
Grève, em francês, palavra de origem gaulesa (grava), na antiguidade significava ‘procurar emprego’, mas no séc. 19 passou a designar paralisação coletiva do trabalho. Com a Revolução Industrial (entre 1760 e 1840), o trabalho coletivo era o motor das indústrias e tudo o que se produzia no mundo. Sob pressão da classe operária, na virada dos séculos 19/20 muitos países passaram a reconhecer o direito de greve.

'The Strike'
Talvez o registro mais antigo de paralisação seja o de 1152 a.C., com Ramsés III, quando artesãos interromperam o trabalho por falta de pagamento. Não só recuperaram os salários atrasados como também receberam como ‘agrado’ um aumento salarial. Há registros pictóricos, mas um dos mais conhecidos é o mais recente The Strike (A Greve), óleo de Robert Koehler (1886).

Lech Walesa, 1981
Uma das mais amplas greves gerais aconteceu na Polônia de 1981, liderada por Lech Walesa, operário depois eleito presidente da república (1990-1995), e foi um dos símbolos do fim do domínio comunista na Europa Oriental. No Brasil, o direito de greve foi na maior parte do tempo suprimido, e apenas tolerado nos poucos governos mais condescendentes. 

Marx e Engels
A força das greves seduziu as massas de trabalhadores e tornou-se um forte meio de ação, como bem descreve Friedrich Engels - que com Marx, em 1848, redigiria o “Manifesto do Partido Comunista”. Engels, sobre o movimento londrino, escreveu: “pelo seu número, a classe trabalhadora tornou-se a mais poderosa da Inglaterra, ameaçando os mais ricos. O proletário inglês tomou consciência de sua força...”

Marx publicou “A Pobreza da Filosofia” - título que ridicularizava o “A Filosofia da Pobreza”, do anarquista Proudhon, que via o exercício da greve como crime. Com as greves, surgiram os neologismos: os strikebreakers, ou fura-greves, que se recusam a aderir, sendo às vezes violentamente impedidos de trabalhar e até agredidos por seus companheiros. Surgiram ainda piquete (de picket line, ‘fila de estacas’), barreira, e os piqueteiros, que impedem pela força a opção contrária, impondo a vontade e interesses políticos de seu grupo a todos os demais.

Greve geral no Brasil: 1917
No Brasil, a primeira grande greve, em 1917, eclodiu no eco da Revolução Russa. Em 1988, a Constituição Federal, em seu artigo 9º, conjugado com a lei nº 7.783, do ano seguinte, assegurou o direito de greve a todos os trabalhadores. A greve é considerada legítima desde que tenha caráter temporário e pacífico, e que o empregador e entidade patronal sejam avisados 48 horas antes, ou 72, no caso de serviços essenciais.

O instituto da greve não contempla os piquetes, apenas o direito de os grevistas tentarem persuadir os colegas de trabalho a aderirem ao movimento. Grevistas podem arrecadar fundos e exercer a livre divulgação, mas são proibidos de violar direitos e garantias. Não podem impedir o livre acesso dos que querem trabalhar nem causar danos a propriedades ou pessoas, ao passo que os empregadores não podem frustrar a realização ou a livre divulgação do movimento paredista.
Na atual crise econômica, a mais severa por que o Brasil já atravessou, são constantes as violações dos direitos, piquetes e depredações em manifestações.

A reboque dos operários, a massa estudantil – falo quase que exclusivamente dos que frequentam universidades públicas e gratuitas, claro – passou a fazer uso de paralisações, usando das mesmas garantias legais. Mais ainda, a greve estudantil, apesar de intramuros, de anos para cá passou a servir mais como um instrumento político-partidário do que à causa dos estudantes, passando ao largo dos interesses universitários.

Vivi meu tempo escolar sob uma ditadura até sair do Brasil, em 1977, com a repressão e a censura ainda imperando. Greve? Tínhamos medo de morrer, de pau de arara e masmorra. Foi somente como professor da USP, em 1988, que vim a participar da minha primeira greve. Grevistas chegaram das 3 universidades públicas do estado em muitos ônibus ao Palácio Bandeirantes, blindado por PMs com seus lindos cavalos e aqueles longos cassetetes de madeira (chamados “MEC-Usaid e abuseid”, nos tempos da ditadura).

O reitor José Goldenberg conversava no gabinete com o então governador Quércia, e conseguiu um acordo para incluir na lei do orçamento anual (LOA) um percentual fixo da arrecadação do ICMS para as três universidades. Para 1989, a LOA estabeleceu a fatia de 8,4%; em 1993, chegou a 9%, e alcançou os atuais 9,57% em 1995.

Hoje, com a inflação em alta e a arrecadação do estado em queda livre (o rombo é de 3,3 bilhões), fora os orçamentos comprometidos em mais de 100% com a folha de pagamento, a crise na academia parece insolúvel. Apesar do sucesso de campanhas salariais de anos passados, a atual parece fadada ao fracasso. Para piorar, não tem foco: a pauta universitária se confunde com a política estadual e mesmo nacional, o que serve para pulverizar objetivos e enfraquecer o principal.

Pior ainda, os maiores interessados na greve são os estudantes – curiosamente, os principais prejudicados -, afrontando todas as garantias legais e impedindo o acesso de todos às aulas, rezando uma ladainha confusa, transmitida ano a ano como uma unção batismal a cada ingresso de calouros. Está faltando estudo no país, e isso se estende à questão política: fazem de palavras de ordem genéricas das centrais sindicais suas bandeiras, sem compromisso realista com a luta por conquistas possíveis. Estudantes são embalados pelo vento e se sentem revolucionários, mas quando muito são pequeninos Quixotes delirantes que não chegam às botas dos pesados moinhos.


quinta-feira, 9 de junho de 2016

CADEIRANTE POR UM DIA

(Iacessu)
Todos deveriam ser cadeirantes por um dia! “Pra mim, basta um dia, não mais que um dia, um meio dia” (Chico). Segundo o IBGE, 6,2% da população brasileira apresenta algum tipo de deficiência, seja visual, de locomoção ou outra. Em 2010, incluindo subtipos de deficiências visual, auditiva ou mental, 24% mostraram-se portadores de algum tipo de perda, o equivalente a 45,6 milhões de brasileiros. Muitos usam muletas, bengalas, andadores e cadeiras de rodas, fora os desvalidos que não têm condição de comprar uma. A idade é agravante entre os vários tipos de deficiência, quando não é o bilhete para ingresso definitivo de um a mais nas estatísticas.

Alguns dizem “não vejo tantos cadeirantes nas ruas”. Ora, os de maior poder aquisitivo passam despercebidos dirigindo seus carros adaptados, ou são levados para lá e para cá por seus motoristas, amigos ou parentes. Estacionam nos bancos nas vagas reservadas e são identificados pelo adesivo de cadeirante no para-brisa. Alguns usam boas cadeiras, e os mais bem aquinhoados aquelas motorizadas, que chegam a custar mais de 13 mil dólares (R$ 45 mil). Já artefatos robóticos são para muito, muito poucos.

Sonhar é preciso: ônibus em Londres
Nossos ônibus, calçadas e prédios não estão preparados para receber deficientes físicos, e muitos nem saem de casa porque ficam confinados como se estivessem presos. São párias da sociedade, alijados de estudo, trabalho e lazer, e geralmente ignorados pelos que tiveram a bênção de poderem desfrutar de todos os movimentos do corpo. 

Fíbula
Minha preocupação com o assunto veio à tona quando vi-me cadeirante e portador de muletas por três meses, após uma ridícula fratura na fíbula (altura do tornozelo). Digo ridícula porque nem fui ao chão, torci o pé em um degrau de escada, caindo de pé sobre o de baixo, com o tornozelo virado. Raios-x feitos em um hospital de São Paulo, o remédio de sempre: gesso. Durou um dia. Comprei uma daquelas botas e voltei ao hospital para arrancar aquele chumbo da perna. Começara ali minha vivência de uma realidade que até então apenas supunha existir. 

Para tirar licença de trabalho da Prefeitura, fui ao prédio da Perícia Médica, no centro. Levou-me um vizinho, senhor de idade, motorista aposentado e ‘faz-tudo’, de pintura a pequenos reparos (retorno a ele adiante). Para entrar no prédio, uma escada sem corrimão e, claro, fora dos padrões da ABNT. Era colocar as duas muletas sob uma axila e a outra mão na parede para ajudar. Ao entrar - local de pessoas acidentadas e doentes! -, não havia mais cadeiras na sala de espera. Para ir ao banheiro, tive de passar por um corredor com as muletas, só que de lado: uma “reforma” do espaço havia espremido a passagem com uma divisória. 

Escola Municipal de Música: rampa dos fundos
(prédio antigo)
Nem cheguei ao terceiro dia de licença: enlouquecido, desci sentado a escada do quarto, peguei as muletas, coloquei a cadeira de rodas que alugara dentro do porta-malas do carro e fui para o trabalho. Chegando, entrei pela rampa dos fundos e comecei a tocar o serviço da cadeira de rodas.

Teatro Municipal: escada favorita dos skatistas
Após o susto do prédio da perícia, sucederam-se vários outros. Haveria um belíssimo concerto no Teatro Municipal, e eu não queria perder. Fui, estacionei e arrastei o corpo com as muletas até a escadaria da frente, subindo aqueles degraus enormes, um grande risco (o prédio é de 1911, tombado, impossível alterar) – coisa para esportes radicais. Lá dentro, encontrei o Lauro Machado Coelho, cadeirante, o crítico de conhecimento musical mais vasto que conheci. E ele me contou seu truque: sempre telefonava antes, entrava com a cadeira pela passagem de serviço lateral, subia pelo elevador de palco e descia à plateia.

Campinas: Centro de Convivência
Episódios de frustração no acesso aos bens culturais repetiram-se algumas vezes, como no Centro de Convivência de Campinas, onde fui ver um recital. Descer até a plateia foi uma aventura cheia de sustos. Apesar de muito mais recente do que o Municipal de SP, o Centro não tinha as mínimas condições para portadores de necessidades especiais.

Flagrante em vaga especial para cadeirantes
Confesso que houve momentos de ódio como quando uma lépida senhora saiu de seu carro na vaga da rampinha para deficientes, e entrou no banco. Veio o instinto da raiva, certo vandalismo oculto, em solidariedade para com os que sofrem o infortúnio de terem de passar suas vidas assim. Bloqueei a vaga e somente saí depois de servir à madame um “chá” de 15 minutos de espera. Que chamasse a polícia, pois! Daria um belo flagrante.

O grande e saudoso professor emérito Ruy Laurenti,
ouvidor da USP
A quase totalidade dos municípios ignora as leis 11.263/02, de SP, a 13.146/15, federal, e as que as antecederam. Pior, desrespeitam quem tem dificuldades de locomoção e acesso. As minhas duraram apenas três meses, mas trouxeram uma luz positiva: ajudaram-me na conscientização sobre o problema. Conheci Renato Laurenti, filho do professor emérito da USP Ruy Laurenti – que, coincidência absurda, foi para quem meu motorista bissexto havia dirigido! Conhecido como “repórter saci”, tornado tetraplégico após um acidente, Renato tinha uma ONG para auxílio a deficientes. Conversamos algumas vezes, falamos sobre acessibilidade na Prefeitura, missão impossível. Propus-me a ajuda-lo e colaborei em outros projetos como pude.

Teatro Procópio Ferreira Tatuí
O Conservatório de Tatuí ampliou a acessibilidade no Teatro, em todas as unidades onde possível e permitido por lei, e estimulou o curso de musicografia Braile. Em 2010, recebeu o Prêmio Estadual de Ações Inclusivas, entre 300 projetos avaliados. Neste mês de junho de 2016, por iniciativa de Rogério Vianna, a Cia. de Teatro do Conservatório inovou com a leitura de uma peça com tradução em libras. Basta cada um fazer a sua parte, pouco que seja, nada mais. É dever cívico! Pegue uma emprestada, alugue, seja cadeirante por um dia. Basta um dia, um meio dia!

Alunos, o gerente de Secretaria Cristiano Guimarães, prof. Moacir e as profªs Karla, Sueli e  Darli na premiação

quarta-feira, 1 de junho de 2016

CAUBY, “UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA”

A Niterói de Cauby
Cauby Peixoto nasceu em Niterói, em 1931. No colégio Salesiano, católico, teve os primeiros contatos com a música, cantando hinos sacros no coro. Passou a pegar a Cantareira, barca que faz dezenas de travessias diárias para o Rio de Janeiro, do outro lado da oleosa e poluída Baía de Guanabara. Ainda muito novo, conseguiu um emprego no comércio, mas desde logo decidiu ser cantor, levando na bagagem a tradição musical da família inteira.

Desde cedo mostrava saber o valor da imagem do artista, e abusava de topetes, penteados e roupas exóticas, sabia como chamar a atenção. Um empresário passou a exigir-lhe roupas elegantes, moldando-lhe a imagem de futuro ídolo. Cauby arrumou um “bico” na Rádio Tupi, aproximando-se de artistas. À noite, nas folgas da sapataria, e quando possível, dava uma palinha em boates, com seu vozeirão grave que seduzia as mulheres. Apresentava-se também no velho Teatro Rival, marco da noite e da boemia carioca, o coração da Cinelândia.

Dois dos seus irmãos foram morar em São Paulo, que na época era o paradigma da metrópole na escada rumo ao sucesso. E Cauby logo foi convidado, aos 20 anos, a gravar seu primeiro 78 rpm, Saia Branca, um “bolachão” - disco feito de ebonite ou material semelhante. Amante da música internacional, gravou uma versão de Blue Gardenia, sucesso de Nat King Cole, e logo passou a atuar também nos EUA, com o nome artístico de Don Coby.



Chegou a alcançar o 5º lugar em vendas pela Billboard e foi capa de revistas estrangeiras. Ia aos EUA, e a cada retorno maior era o seu sucesso. Foi assunto na imprensa americana, que o pintava como um Sinatra ou Elvis Presley tupiniquim: Life, Time, NY Times. 

Apaixonado pelo mundo, sedutor, chegou a assumir sua bissexualidade. Não pareciam suficientes as paixões e romances tórridos com as mulheres. Por isso não se incomodava em pinçar as sobrancelhas e carregar na maquiagem, exibindo seu coté feminino. Gravou quase cento e cinquenta discos, alguns com sucesso estrondoso.

Eu estava no Rio, no início dos anos 1970, quando, além de estudar teoria e contrabaixo clássico, já era versado na conhecida “noite”, o roteiro de boates, além de tocar em shows aqui e ali. Raramente havia ensaios, não havia partituras – mesmo porque naquela época quase nenhum daqueles músicos saberia lê-las -, era chegar e tocar. A regra para os baixistas era: um ouvido no acompanhamento, outro na melodia, e os olhos na mão esquerda do pianista, que conduzia os acordes. Essa experiência forjava a habilidade de seguir a música, qualquer que fosse ela.

Tijuca Tênis Clube
Um dia alguém me telefonou, perguntando se eu queria tocar em um show no Tijuca Tênis Clube, um belo espaço na Zona Norte carioca dotado de um grande auditório, e que a apresentação seria com um conhecido artista. Viola no saco (ou melhor, baixo no ‘case’), fui no horário combinado, e apenas ao chegar fiquei sabendo que o cantor era ninguém menos do que Cauby Peixoto.

Moacyr Peixoro
Cumprimentei e conversei com o pianista, e só depois fiquei sabendo que o nome dele era Moacyr, irmão do ídolo. Preparado pela “escola do olho e ouvido” no acompanhamento, sentado à esquerda do pianista, não sabia o que viria pela frente, mas tinha cancha suficiente para tocar o serviço.


Com certo esperado atraso, a plateia, repleta, quase toda formada por mulheres, maior parte delas idosas, fazia um semicírculo aguardando o cantor. No escuro, apenas uma esfera de espelhos girava no teto, refletindo aqui e ali luzes e cores difusas em movimento meio delirante. Uma voz em off em um microfone anuncia: “senhoras e senhores, Cauby Peixoto!”

Todos em pé aplaudindo e procurando o artista, e um canhão de luz – espécie de holofote que foca um local por vez, à medida que se movimenta – fazia que procurava o cantor, mas nada de ele aparecer. Eu olhava para os bastidores, de onde se esperava que ele sairia. Nada. Depois de muito suspense, surgiu o astro, mas pela entrada do salão, do outro lado. E distribuía gentilezas com seu longo beija-mão, principalmente entre as senhoras das primeiras filas, uma por vez, cena de uns 15 minutos.

Enfim, subiu ao palco, cumprimentou-nos e pudemos ver aquele rosto bem maquiado, uma espécie de terno bordado em cores e pleno de brocados, tudo meio florido. Ao microfone, Cauby agradeceu a presença do público, assoprou beijos ao ar e disse: “quero apresentar a vocês o meu conjunto; acabamos de retornar de uma turnê ao México...” Tratava-se, com certeza, da primeira (e seria a única) vez que o via de perto na vida. Falou que gostaria de abrir o show com pedidos dos presentes, e dois funcionários passaram espécies de cumbucas de vidro, onde nos versos de seus tíquetes os fãs poderiam escrever o que desejavam ouvir.

Cauby abriu o primeiro, disse o nome da pessoa sorteada e começou: Feelings, nothing more than feelings...” (do brasileiro Morris Albert, depois condenado por ser essa música plágio rasgado de Pour Toi, de 1956, do francês Loulou Gasté – que regravou a canção original , ironizando o plagiário: Feelings, “diz ele”, Pour Toi, no novo título). Ouvido absoluto perfeito, Cauby começara a cantar antes do acompanhamento, sem receber sequer uma “nota guia”.


Lá pelas tantas, arpejou o acorde para o pianista, e o fez emendando na música, no ápice: Free again, “dó-lá-fá”. E vieram pedidos de Beatles, como Yesterday, Sinatra, My Way, franceses, como Gilbert Bécaud, Au Revoir, e italianos, como Pepino di Capri, Nico Fidenco, Sergio Endrigo. Claro, muita música brasileira e seu carro-chefe, o sucesso Conceição. Sabia todas de cor, no tom perfeito (absoluto), um repertório imenso. Que grande e inesquecível lição de música e talento!