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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

YULIA: A VOZ ROUCA QUE CHEGA COM OS VENTOS DO LESTE



Yulia

Yulia Tymoshenko, uma cinquentona de rosto ainda pleno de beleza, embora marcado pela luta por sua Ucrânia livre, sai da prisão, após mais de 30 meses, para a simbólica Praça de Independência, palco de resistência que deixou até cem mortos, nos últimos dias. Com seu tradicional penteado – tranças ao redor da cabeça -, Yulia se dirigiu ao povo com a voz do sofrimento, como uma cantora de blues: rouca, lamentosa, mas viva e enérgica. Falava sentada em uma cadeira de rodas, resultado de uma hérnia de disco agravada no cárcere. Se a aparência era frágil, o discurso foi ácido, pedindo que o julgamento do ditador deposto, Yanukovich, fosse ali mesmo, naquela praça. 


Em 2004, Yulia liderou um movimento para denunciar fraude nas eleições a que concorrera contra Yanukovich. Lançou-se novamente à presidência, mas perdeu, sempre por margem apertada de votos e sob denúncias de fraude. No fim de semana passado, o ministro do interior demitiu-se, pois não queria suas mãos “em um grande banho de sangue”. O Parlamento derrubou Yanukovich, que está foragido, restaurou a Constituição de 2004 e convocou novas eleições presidenciais para maio. Dias depois, policiais da tropa de choque se ajoelharam e pediram perdão por seus atos. 


Mapa eleitoral: uma Ucrânia dividida. Eleição de Yushchenko
A Ucrânia faz fronteira com a Bielo-Rússia, ao Norte, e Polônia, Romênia e Moldávia, a Oeste e ao Sul. O país é dividido culturalmente, e o lado oriental fala o idioma russo, alinhando-se politicamente com Vladimir Putin. Do outro lado, maior parte fala outros idiomas, mercê de longa história e de outras fronteiras. O corte entre esses dois lados do país fica nítido quando se vê que, no mapa eleitoral, Yulia dominou toda a área fora da influência de Putin, enquanto Yanukovich arrastou votos de toda a área de idioma russo – na verdade, dois povos coexistem em um único país. 


Ucrânia (em amarelo, a nordeste) na União Soviética
A história da Ucrânia vem de milênios. Na Idade Média, o país foi o centro da cultura eslava oriental e durante os séculos 17 e 18 surgiu a República Cossaca, com a Ucrânia dividida, até que, no século 20, caiu sob o jugo da União Soviética. Tornou-se independente apenas em 1991, após o fim do bloco comunista. A proximidade do lado oriental com a Rússia, que lhe faz fronteira, é também ameaça de perigo. A Rússia é hoje, um dos países mais reacionários da Europa: entre outras, leis homofóbicas seriam facilmente extensíveis aos negros, se lá os houvesse em número perceptível. Grassa o preconceito.


Yanukovich: deposto
Na verdade, a brava resistência aos desmandos de Yanukovich custou vidas de uma gente aguerrida, disposta a arriscar-se pelo bem comum. E não foi à toa que, na manifestação do sábado (22/02), Yulia não se cansou de bradar: “heróis, vocês são heróis”, ao que a multidão devolvia, com carinho: “Yulia, Yulia”. Resta agora saber se a soberba e a ganância de Vladimir Putin arrefecerão, diante do perigo de um avanço armado russo contra a Ucrânia. (Veja discurso abaixo, com tradução em inglês).





Soldados na Revolução dos Cravos
O que tiramos disso tudo? Havia um pensamento comum, a aproximação com a União Europeia, autora da articulação do acordo no Parlamento ucraniano, aproximação com a UE que tem a antipatia de Putin, à frente da Rússia. Havia a vontade popular de depor uma ditadura, e aconteceu. E retorna a bandeira principal, Yulia, mulher de semblante campesino e belo como a maioria das mulheres do Leste. Houve vontade, resistência, e é ela quem personifica hoje os ideais da luta. Diversos policiais abandonaram seus postos para juntar-se aos manifestantes, lembrando a Revolução dos Cravos (Portugal, 1974), quando soldados marcharam portando em suas baionetas botões de cravos, simbolizando a paz. 


Caracas: idosa tenta conter policiais
Se a voz rouca que vem com o vento do Leste chegou à Venezuela, não se sabe. Lá, a classe média se desespera com a falta de tudo, as gôndolas dos supermercados estão vazias, a economia está em colapso e um cidadão ilude metade do povo ao vender-se como porta-voz messiânico de seu mentor, Chávez, e vê seu guia genial dos povos na penumbra de uma escavação e com ele conversa na forma de um passarinho. E essa é a diferença entre o povo amigo venezuelano e o brasileiro, que dificilmente cairia em tamanha galhofada. Contudo, há muitos mortos, um opositor (Capriles) da elite e um outro, preso, que praticamente se entregou aos guilhões: Leopoldo López.  


Rio: black blocs em ação
Por fim, no Brasil, as manifestações populares estão perdendo a força. Falta apoio, controle, falta liderança para os protestos (em princípio, justos), falta direção de pensamento, objetivos. 

Contra a Copa, que seja, mas é uma coisa mais midiática, porque a Copa está aí, e é inamovível tal como o Pão de Açúcar do Rio de Janeiro, quer queiram ou não. (A discussão sobre gastos, superfaturamento, subutilização dos estádios após os jogos, claro que tudo é discussão válida). Ora foram os “vintinho”, ora foi isso, foi aquilo, mas faltaram lideranças, apesar de certa neo-esquerda ver nesse anonimato algo positivo e “novo”. Alguns se rendem mesmo aos black blocs, protofascistas sem causa. Pelo visto, nenhum vento soprado do Leste aqui chegará, nem uma intenção sólida de luta, restando, de ‘moto proprio’, os que depredam e destroem por ódio ou prazer. O lado bom: ninguém quer um golpe de estado. 


Por fim, defender regimes despóticos apenas porque foram eleitos pelo voto é absurdo. Na Roma antiga reis foram eleitos, e nem por isso houve democracia. A eleição é apenas a porta de entrada para o exercício da democracia plena, a do dia a dia, da liberdade, e não existe ‘de per si’. E qualquer falsa imparcialidade é apenas mero exercício oportunista.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

JUILLIARD SCHOOL, ENTRE A EXCELÊNCIA E O MECENATO MILIONÁRIO

Juilliard School
Há duas semanas, iniciei neste espaço uma pequena “turnê” por conservatórios e escolas de música mundo afora, a propósito de uma reflexão sobre o Conservatório de Tatuí, que em 2014 completa 60 anos. A primeira visita foi à New England Conservatory, de Boston, onde estudei e mantenho laços de amizade. Prosseguindo, hoje vamos à Ilha de Manhattan, onde fica a prestigiosa Juilliard School. Inicialmente localizada em local privilegiado, em plena agitação da 5ª Avenida, esquina da 12ª rua (sábios esses nova-iorquinos que não precisam de GPS para achar um caminho, com suas numerações de ruas e avenidas). Prédios importantes costumam levar os nomes de seus beneméritos financiadores, como o Rockefeller Center e a própria Juilliard, cujo nome foi cunhado em homenagem ao benemérito magnata da indústria têxtil Augustus Juilliard.

Glorya Kauffman estúdio de dança
A junção de duas unidades distintas da Juilliard aconteceu em 1946 pelo proeminente compositor William Schumann, prêmio Pulitzer de Música. Em 1951, Martha Hill agregou a Divisão de Dança, e em 1968 o novo diretor, Peter Mennin, criou a Divisão de Artes Cênicas. No ano seguinte, a escola foi levada para sua localização definitiva, no fabuloso Lincoln Center for the Performing Arts (Artes Performáticas).

Kovner (2º a partir da esquerda)
Agora, um lado pitoresco e inspirador: em 2006, o bilionário, colecionador e mecenas Bruce Kovner doou à Juilliard sua coleção de partituras originais, rascunhos e primeiras edições de Bach, Beethoven, Mozart, Schubert, Chopin, Stravinsky e outros, incluindo os manuscritos do editor da gloriosa Nona Sinfonia de Beethoven - com emendas, correções e rasuras do próprio compositor na mesma partitura usada na estreia da obra em Viena, em 1824.

Joseph Polisi
Mas não é só isso. Por iniciativa do próprio Kovner, Presidente do Conselho da Juilliard, em ato anunciado pelo reitor Joseph Polisi, foi criado em 2013 o “Kovner Fellowship Program”, para bolsas de estudos em diversos níveis, cujo valor total - doado pelo conselheiro – foi de 60 milhões de dólares! (Isso mesmo). Para participar do Conselho há disputa, e convém oferecer uma quantia mínima, por volta de US$ 100 mil.

Yo Yo Ma, o "top"
A Juilliard tem apenas 850 alunos em seus programas de graduação e pós-graduação. Ingressar na escola não é nada fácil, o que faz dela uma das mais seletivas: em 2007, apenas 7,58% dos candidatos foram aprovados; em 2009, pouco mais, 8%, caindo para 5,5% em 2011 e retornando à média em 2012, com 7,2%. A competição é celeiro para profissionais de ponta, e não faltam brasileiros: o grande violinista Natan Schwartzman, o violoncelista Fábio Presgrave, o trompetista Fernando Dissenha e os trompistas Ozéas Arantes (ambos da OSESP) e Luís Garcia, as pianistas Sonia Rubinsky e Diana Kacso, além do compositor Raimundo Penaforte, entre outros. Foi professor de regência e titular da Sinfônica da Juilliard nosso maestro Eleazar de Carvalho. Artistas internacionais de renome coroam o quadro de ex-alunos, tais como Emanuel Ax, Leontyne Price, Yo-Yo-Ma, Itzhak Perlman, Henry Mancini, John Williams e James Levine, entre outros.

Sala de cenografia
Para manter essa estrutura ímpar de ensino de dança, artes cênicas e música, a Juilliard conta com um staff impressionante: 24 diretores e vice-diretores de diversas áreas, e cerca de 30 administradores. Os espaços são amplos, adequando-se às diversas divisões, e os cuidados acústicos, tanto no que diz respeito à reflexão sonora, quando for o caso, ou isolamento, na maioria das vezes, foi cuidadosamente calculado. A sala de cenografia tem um pé direito imenso, suficiente para sustentar maquinário e cenários, e ampla ainda para acomodar diversos materiais, ferramentas e máquinas de todos os tipos. Além dos cursos regulares de música, como os fundamentais harmonia, teoria e percepção, história da música e performance, o aluno pode escolher “Liberdade e Autodeterminação” ou “Perspectivas sobre Gênero e Sexualidade”. Fora isso, há bibliotecas fenomenais à disposição no prédio da escola ou no New York Public Library for the Performing Arts.
The NY Public Library for the Performing Arts

Alice Tully Hall
O Alice Tully Hall, com 1.086 lugares, é palco de centenas de espetáculos por ano: teatro, orquestras e grupos de dança, além de artistas consagrados. 
A Juilliard é uma pérola do fabuloso Lincoln Center, que também se avizinha à Metropolitan Opera de NY (“Met”), uma das maiores casas de ópera do mundo. Um enorme órgão de tubos pode ser ouvido no auditório Paul Hall (foto abaixo), enquanto a dança encontra espaço no Glorya Kauffman, ambos no prédio da Juilliard.

Paul Hall e seu órgão de tubos
As exigências para conclusão do curso escolhido são enormes. Não bastar entrar, há que se vencer uma série enorme de provas, concursos e obstáculos. O mercado de trabalho, não apenas em NY, mas em todas as mais importantes instituições de ensino e orquestras, é extremamente competitivo, especialmente no campo das sinfônicas. Para se ter uma ideia, um antigo contrabaixista de Boston, Mel Peabody, entrou na Sinfônica de Indianapolis com uma simples carta de recomendação do maestro Arthur Fiedler (no pós-2ª guerra). Hoje, com Indianapolis, San Antonio, Denver, Buffalo e outras guindadas ao “grupo B”, de nível internacional, nunca espere menos do que 150 a 200 inscritos para uma única vaga de contrabaixo.

Entrada principal, visita a convite, em 2009
Deu para se ter uma ideia da grandeza e pujança da Juilliard School. Prosseguiremos com outra visita em breve, buscando informações e inspiração para que os voos do Conservatório de Tatuí sejam cada vez mais altos, seguros e constantes, nesta e nas próximas décadas.


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

"SINHÁ TENDINITE", O PESADELO DOS MÚSICOS

Nem tudo são sons e flores na vida dos músicos. Pelo contrário, a colheita se dá sempre após muito exercício, muita labuta diária que o público não vê e sequer imagina. Os que movimentam os braços, como marceneiros com seus serrotes, e atletas como remadores, e todos os que precisam do corpo para seu trabalho, são vítimas em potencial de lesões, notadamente a LER (Lesão por Esforço Repetitivo, ou síndrome do túnel do carpo), tendinites, tenossinovites, mialgias (dores musculares), bursites  e outras cuja simples menção traz calafrios aos artistas que já conviveram com uma delas.

Paganini, Capricho 24, "O Canhão"
O músico costuma tentar superar suas condições atuais de domínio de seu instrumento. Servem como exemplo certos ‘golpes’ de arco que podem exigir alta velocidade de articulação de dedos, mão, antebraço e braço, e ele o faz com velocidade cada vez maior, exigindo de seu corpo mais do que pode oferecer naquele momento. E ele o faz durante períodos cada vez longos, até que... a corda se rompe.

Bursite
Surge uma dor lancinante, que parece não querer ir embora. Finge se esconder quando tocamos, uma espécie de anestésico psicológico pela dor do esforço sobre a própria dor. Para o músico autônomo, é a espada de Dâmocles sobre a cabeça, a lhe ameaçar o próprio sustento e de sua família. Para o solista, a condenação. E para o músico empregado, o conforto da licença médica, ao menos no início do processo. Depois, a inevitável queda nos rendimentos. E a dor.

De médico em médico e de clínica em clínica, os portadores dessas doenças buscam a via tradicional (alopatia) ou uma solução não-ortodoxa, alternativa. Na angústia de resolver o problema, ele toma vários medicamentos, submerge o braço alternadamente entre água gelada e quente, toma ultrassom, luz infravermelha, choque elétrico, faz fisioterapia - para simplesmente ver o esforço ruir e a dor voltar. E o efeito psicológico é devastador: além do salário, o músico vê comprometida sua satisfação de tocar, seu progresso nos estudos e seu humor.

Escada de entrada: foto 2009
Buscando técnica e velocidade, sem o devido cuidado com uma regra mágica - pausas no estudo -, tive a primeira tendinite após um grande esforço nos exercícios. Pior: eu o fiz mesmo com o braço lesionado por um escorregão na pequena escada de pedra coberta de gelo, à frente do prédio onde eu vivia, em Boston. Mas tinha o recital mais importante pela frente, não podia desmarcar. E o fiz sob analgésico forte (os “painkillers”) e aqueles adesivos de bálsamo para suportar a dor, o cheiro de cânfora narcotizando todo o auditório. Era esquecê-la e tocar.

Em uma viagem ao Brasil, tratei-me com reumatologistas, fui a médicos especializados em medicina para atletas e tentei anti-inflamatórios muito eficientes para dores na coluna – e apenas elas. Ao voltar aos EUA, com toda a esperança depois de uma pequena temporada de praia no Rio de Janeiro, minha amiga ‘Sinhá Tendinite’ reaparece junto com a retomada de meus estudos.

Eugene Fodor
Pois foi em um ambulatório que descobri um médico que tratou diversos músicos da Sinfônica de Boston, além do então jovem e grande violinista russo Eugene Fodor, falecido em 2011. Fodor ia solar o Concerto de Brahms em Washington, mas teve a triste ideia de disputar uma partida de ‘squash’ (um jogo de raquetes parecido com o frescobol) pela manhã, quando seu tendão foi ‘fisgado’. Terminou sendo substituído no concerto por um ótimo solista, mas que não estava à sua altura nem tinha seu carisma, o que frustrou o público.

O saudoso Aírton Pinto
Em São Paulo, nosso antigo e saudoso ‘spalla’ da OSESP, o amigo Aírton Pinto, chegou a fazer cirurgias com um ortopedista dedicado a essas doenças, em procedimentos cujos caminhos do bisturi gostava de desenhar antes no papel. Também pedia para ver o músico tocar, para estudar-lhe os movimentos. Da cura de Aírton emergiram diversos músicos com o mesmo problema, atrás do mesmo cirurgião. Hoje há um alerta mundial: no caso dessas doenças, em músicos, cirurgia só no último dos últimos casos.

Uma bala só
Voltando a Boston e aquele médico de ambulatório, ele mesmo um violinista amador, saí com a receita de um tiro certo (caso o cidadão, como eu, busque a alopatia, com todo o respeito aos alternativos). No meu caso – não posso mencionar o nome de qualquer medicação, cada um procure seu médico -, uma droga com certo anti-inflamatório específico, potente relaxante muscular e analgésico começou a produzir efeitos em poucos dias. Estava acabando um martírio que foi e voltou durante seis anos, até que venci. (Se você é portador de uma das doenças citadas no começo deste artigo, seu médico lhe dará a segurança de tomar a droga certa. O uso não prescrito por médico de qualquer medicação, como se sabe, pode causar graves problemas, alguns piores do que a doença em si).

Um atleta olímpico supera sua marca às vezes um milímetro por dia, mantendo durante um tempo cada nova conquista, e só avança quando se sente confortável, sempre sob a supervisão de seu técnico. Não deve ser diferente com o aluno ou profissional de música. Se o caminho é longo, é bom trilhá-lo com segurança sabendo que o ritmo certo de estudo e a constância, sempre alternando intervalos, são a maneira mais segura para vencer obstáculos.


Arthur Grumiaux
Aquecimentos, preparações e alongamentos devem fazer parte da rotina diária de estudos. Se essas doenças não pouparam inúmeros virtuoses, a exemplo de Arthur Grumiaux (1921-1986), além dos já citados, isso é porque somos todos vulneráveis, e todo cuidado é pouco para evitá-las. 

Em música, não há atalhos, apenas muito suor e recompensas.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

THE NEW ENGLAND CONSERVATORY OF MUSIC

Abertura da temporada de inverno de 1871
Durante este ano de 2014, em que o Conservatório de Tatuí completa 60 de existência, vale lembrar algumas experiências mundiais consagradas como termo de referência para analisar o que aqui já foi feito, está sendo desenvolvido e presumivelmente deverá acontecer. Sem inventar a pólvora: no mundo inteiro aprende-se Teoria e Percepção, Harmonia, Contraponto, História da Música e outras disciplinas. Pretendo começar a trazer essas experiências com a New England Conservatory, com a qual tenho grande familiaridade.
Charles River
A NEC situa-se perto do coração de Boston, EUA, em local privilegiado a 300m da Boston Symphony Hall, casa de uma das maiores sinfônicas do mundo. Não longe, o belíssimo Charles River, coalhado de pequenos barcos a vela, cuja ponte nos atravessa para onde ficam dois outros grandes centros, do lado Cambridge do rio: Harvard University e MIT (Massachusetts Institute of Technology),  celeiros do que há de melhor na pesquisa em diversos ramos do conhecimento, diversos prêmios Nobel no currículo.

Preparando a reforma
A NEC é uma construção cujo término da primeira grande reforma externa depois de 100 anos presenciei, no final de outubro de 2009. A cerimônia chamou-se “Unveilling the Conservatory” (desvestindo o véu – ou ‘revelando’, no sentido figurado), e o presidente da instituição, com capacete de segurança e megafone, simbolicamente cortou as cordas das telas de proteção, sob os aplausos de uma festa em plena rua, com bandas e corais. Estava restaurado o lindo prédio, exatamente como foi inaugurado, em 1870. É o gancho para falarmos em tradição, nós que começamos a esquecê-la já na arquitetura, destruindo nossas construções históricas.
Jordan Hall
Há dois auditórios principais, sendo um o Jordan Hall, considerado uma das melhores acústicas da Costa Leste, palco de centenas de apresentações por ano. Lá ensaiam a Filarmônica Jovem de Boston, um grupo fabuloso de jovens que já se apresentou várias vezes mundo afora, inclusive no Teatro Municipal de São Paulo. Seu regente, Benjamin Zander, é, além de um maestro excepcional, um líder incansável. E atenção: esta é a orquestra jovem, cabe frisar, cujos concertos deixam todos com o queixo caído.
Seiji Osawa
Seguem-se a Repertory Orchestra, que foi regida por Richard Pittman, ex-aluno do nosso Eleazar de Carvalho em Tanglewood, e a Orquestra Sinfônica propriamente dita, comparável a algumas das melhores orquestras profissionais do mundo. Enquanto a Repertory Orchestra faz um extenuante trabalho de preparo dos do vasto repertório sinfônico, a Sinfônica também se desdobra em material mais complexo: Richard Strauss, Wagner, Stravinsky, Boulez e outros. Possui diversas gravações e convidados como Seiji Osawa, Rostropovich, Arthur Fiedler, Kurt Masur, um rosário de grandes regentes. (Veja e ouça abaixo o 1º movimento da 3ª Sinfonia de Mahler, exuberante, com a NEC Philarmonia e seus impressionantes jovens músicos. Regência de Hugh Wolf). 

O célebre Beethoven dos "post-it"
Os corredores do primeiro andar do prédio se cruzam em Beethoven, quero dizer, em uma estátua do mestre de Bonn, sobre um pedestal. É ali o ponto de encontro ou recados de todos, para qualquer coisa. Como não havia celular e afins, colava-se “stick-ons” ou papeizinhos com fita adesiva no pedestal e nos pés da estátua para marcar almoços, encontros, ensaios e, claro, namoros. Retrato da tradição que é conservada indelével há 150 anos. Pois vejamos. 
Eben Tourjée

Em 1853, Eben Tourjée, um jovem professor de música de 18 anos vindo de Rhode Island, reuniu músicos da cidade na primeira tentativa de ali criar um conservatório nos moldes dos melhores da Europa. A ideia foi abandonada, devido à Guerra Civil que sacudia o país. Em dezembro de 1866, Tourjée voltou à carga, até que a New England Conservatory abriu suas portas oficialmente em fevereiro de 1867, para ocupar seu prédio definitivo em 1870.
Cartaz da campanha de doação
O Conservatório é mantido por anuidades, bolsas de estudo dadas por pessoas físicas ou entidades, fundações, e contribuições de seus Patrons, Sponsors, Trustees, Donnors e outros, intitulados conforme o valor de seus generosos cheques. Também contribuem, anualmente, via cheques em envelopes, seus “alumni” ao redor do mundo e a comunidade de Boston. Toda essa corrente chega a levantar a surpreendente quantia de 20 milhões de dólares em um ano.  A participação do governo, via National Endowment for the Arts (NEA), hojé é praticamente nula.
Capa do LP com a gravação do Concerto de Alban Berg
Grande parte dos professores da NEC pertence aos quadros da Sinfônica de Boston ou são solistas consagrados, como foi o caso de Louis Krasner, professor do saudoso Aírton Pinto (antigo spalla da OSESP). Alban Berg escreveu o concerto para violino “à Memória de Um Anjo”, dedicado a Alma Mahler, por encomenda de seu amigo, o prof. Krasner.
John Coltrane, o mito
Em composição você pode ter tido a honra de ter estudado com Joe Maneri, que estudou com o mesmo Alban Berg, ou Di Domenica (ambos meus professores), ex-aluno de Schönberg, o homem que mudou a música do século 20. No jazz, já houve um Joseph Allard, que ensinou o mito John Coltrane. Você pode também ter trabalhado com Jack Byard ou George Russel, que foi assistente de George Gershwin, autor de obras-primas como Um Americano em Paris, Rhapsody in Blue e Porgy and Bess.
Gunther Schuller
Por fim, você, além dos créditos obrigatórios, você pode fazer um curso chamado Análise Psicofísica: Design no Espaço-Tempo, Composição Microtonal ou mesmo dedicar-se à Terceira Corrente, criada pelo grande Gunther Schuller: música que não é jazz, nem etnomúsica, nem popular, nem clássica: é o diálogo, por memória e ouvido, entre todas elas. Visitada a New England, vale um passeio pela linda, moderna e histórica cidade, terra do famoso Tea Party, que desafiou a Coroa Britânica rumo à Independência. (Abaixo, gravura representando a revolta dos cidadãos, despejando chá ao mar, no famosos ato “no taxation without representation” – nada de impostos sem representação).
Boston Tea Party
Até a próxima visita!