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domingo, 26 de agosto de 2012

I - AFINAL, O QUE É MESMO MÚSICA SERTANEJA? – Cornélio Pires e Rogério Duprat.

Grande folclorista, o cantador tieteense Cornélio Pires assim descreve a música sertaneja: “canto romântico e triste que comove e lembra a senzala e a tapera”. Ou não? E essa do chapéu de cowboy, botas com adereços metálicos, cinto de fivelão texano, aquele clima de “terra de Marlboro”... e o ritmo quaternário (de 4 tempos) de acentuação mais afeita aos padrões norte-americanos do que às nossas tradições. De onde surgiu esse outro “sertanejo”?








Léo e Robertinho
Vamos começar por entender que a música caipira seria 
aquela do interior paulista, principalmente, e a sertaneja a das periferias urbanas e regiões industriais, levadas pelos migrantes dos mais distantes rincões brasileiros. A “urbanização” da música sertaneja terminou por produzir arte de qualidade duvidosa, porém com bom apelo na mídia. Com ela, o cidadão de baixa renda sente-se vivendo à imagem e semelhança da burguesia, mas às custas da própria alienação. O maestro Rogério Duprat - um dos artífices do tropicalismo - e Léo Canhoto foram alguns dos nomes que interferiram na música sertaneja, dando-lhe nova aparência. Duprat não teve sucesso, mas Léo Canhoto e Robertinho seguiram e introduziram modernices, como instrumentos eletrônicos e efeitos, além de letras apelativas. [Veja e ouça abaixo a dupla Léo Canhoto e Robertinho, já na transição para a “modernidade”, com a base rítmica claramente americanizada, e letra compatível com a nova roupagem: “moro na rua da amargura, 35, apartamento 37, 5º andar”. É o sertanejo na zona industrial, já contaminado pela indústria cultural]

II – A indústria cultural, a “Turma do Cornélio Pires” e Theodor Adorno.

Turma do Cornélio PIres, com o patrono de terno, em 1929

Com a “desapropriação” da música sertaneja pela chamada indústria cultural, os agentes e produtores passaram a ser “patrões” das duplas: “olha, eu vendo seu produto, vocês vão ficar ricos, mas têm de cantar o quê e do jeito que eu mando e se vestirem e agirem como eu digo”. A música sertaneja antes falava de fazenda, plantio e colheita, da porteira, das agruras da vida, à moda da “Turma do Cornélio Pires”, cujo LP de 1930 registrava o espírito simples do sertanejo em faixas como “Bigode Raspado”, “Situação Encrencada” e “Aguenta Maneco”. Com a “Turma”, entre muitos outros, fecham Tonico e Tinhoco, Alvarenga e Ranchinho, grandes vendedores de “bolachas” (78 rpm e LPs), eternizados pelo povo amante de sua origem comum. Mas e as novas duplas? O que são?
Theodor Adorno
Segundo o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), a arte popular, depois de apossada pela indústria, passa a ser “civilizada” – no sentido de aculturada - e deixa de trazer em si os aspectos mais ricos da simplicidade rústica. A indústria cultural, segundo ele, é o império, a “tirania do lucro”. No Brasil, essa transformação foi avançando, e a dupla Léo Canhoto e Robertinho entregou-se de vez à “modernidade”, cujo melhor exemplo de rendição talvez seja “Meu Carango”, que traz uma parte falada: “Sai da frente, sua lata velha” / “passa por cima” (responde o outro)  / “pois eu passo mesmo, lá vou eu” (diz o primeiro) / crashhhh! (som de acidente de automóvel) / “Ô seu cretino, você amassou todo meu carro, vai ter que pagar!”. 

III – Sertanejo de raiz: a resistência armada de viola caipira.

A dupla Liu e Leo

A década de 1960 teve duplas como Lourenço e Lourival, Abel e Caim e Liu e Leo resistindo ao estilo engendrado por Léo Canhoto e Robertinho. A ameaça ao sertanejo de raiz trouxe à cena um novo personagem, o corretor, digo, o produtor, que é quem “compra, administra e vende” os artistas, e as duplas passaram a se submeter ao patrão. Claro que houve e há exceções: algumas duplas, evitando essa relação submissa aos ditadores da moda, recusaram o apelo do dinheiro fácil e optaram por ganhar pouco, conservando a arte aprendida desde o berço: Adauto e Adailton, e Taguai e Toniel, entre outros, custeavam seus discos do próprio bolso. As gravadoras viam esse sistema com simpatia, pois tiravam algum lucro à vista, uma vez que a tiragem já saía do forno paga pelos próprios artistas. 

IV – A “Tristeza do Jeca” e o novo sertanejo, criado in vitro.


Enquanto isso, os que se renderam ao apelo do “vil metal”, esquecendo-se de suas origens, foram seduzidos pela breguice dos programas de auditório da TV. Tendo o sertanejo migrado para as zonas industriais e cada vez mais para os grandes centros urbanos, passou a bastar apenas uma nova geração para que as raízes ainda presentes no sangue dos primeiros migrantes se esvaneçam nas veias de seus filhos, que não conhecem a “Tristeza do Jeca” (1918). De autoria de Angelino de Oliveira, inspirada no livro “Urupês”, de Monteiro Lobato, “Tristeza” foi cantada por dez entre dez duplas sertanejas. A pedido da Folha de São Paulo, um júri de 16 especialistas elegeu “Tristeza do Jeca” a melhor música caipira de todos os tempos – exatos 90 anos depois de composta. [Veja e ouça gravação de “Tristeza do Jeca”, na voz caipira de Tonico e Tinoco no link abaixo]
No velho sertanejo, sempre houve lugar para uma pitada de amor nas letras, e esse nobre sentimento, que toca fácil o coração de todos, passou a conquistar mais e mais espaço. Tudo bem, mas e daí, onde fica a tristeza do jeca? Pois foi trocada pela dor de cotovelo, o amor platônico, o abandono, a traição. A cultura popular tem uma casca maleável, risco para a sobrevivência de sua própria tradição: o abandono, a traição e a dor de cotovelo são os novos ingredientes que, apimentando o caldeirão já temperado com o tema do amor, não mais deixam sentir o gosto da raiz: mais e mais novas duplas são concebidas ao canto da sereia da fama e fortuna. Essa é a fórmula mágica para a criação “in vitro” do “novo” sertanejo: o que é sem nunca ter sido, garotão de topete espetado e o cobiçado “kit fama”: corrente de ouro, carro importado e loira na cama. 

domingo, 19 de agosto de 2012

I - De Charles Chaplin e Fritz Lang à MGM de Hollywood.

Cena de "M"

Alguns grandes filmes da história do cinema foram feitos antes da chegada do som, devendo apenas às imagens o que a trama ou o documentário queria passar. Excelentes exemplos são filmes de Charles Chaplin e Fritz Lang (de “M, o Vampiro de Düsseldorf”, na foto). A chegada do som foi uma revolução, ironizada por Kelly e Donnen em “Cantando na Chuva” (1952): uma linda e famosa atriz, com voz de taquara rachada, teve de ser dublada. Entre os anos 1920 e 1930, Hollywood transbordava técnicos com novas ideias, enquanto na França e Alemanha musicais e vaudevilles coalhavam de espectadores. A Love Parade, de 1929, foi uma experiência de ambiente sensual, com o cenário interagindo com a música. No mesmo ano, The Broadway Melody, totalmente falado, dançado e cantado, levou o primeiro Oscar de melhor filme sonoro. Já em 1934, a MGM lança a fita The Happy Widow, com Maurice Chévalier e McDonald, mesmo duo que estrelou Love me Tonight (1932), do russo-americano Rouben Mamolian.  [Veja e ouça abaixo o clipe de “Cantando na Chuva", em cena clássica de Gene Kelly]

II - Da cafonália de Ziefeld à voz cristalina de Judy Garland.


O mau-gosto e a breguice naqueles tempos também grassavam soltos em Hollywood: The Great Ziegfeld (1936), do empresário Florenz Ziegfried, trazia um gigantesco e cafonérrimo bolo de casamento. Com uma edição técnica posterior, em Ziegfeld Girl, ele coloca uma das estrelas dos musicais, Judy Garland, sobre o mesmo bolo, e em The Ziegfeld Follies o diretor reúne algumas das maiores estrelas de musicais da MGM, como Fred Astaire e Gene Kelly.  On the Town (1949) traz uma parceria de ponta: Gene Kelly e Frank Sinatra. 

“O Mágico de Oz” (1939), adaptado do livro infantil de Frank Baum, tem Judy Garland no papel da garotinha Dorothy, cantando Over the Rainbow, melodia linda, de graça e singeleza sem par (veja e ouça abaixo).

III - Kelly, Astaire, Minelli e Bernstein.


Cyd Charisse

Os musicais criaram grandes bailarinos, além de Kelly e Fred Astaire, este último um virtuose. Ginger Rogers era a parceira favorita dos dançarinos da época, reinado somente ameaçado por Cyd Charisse (foto), conhecida como dona das mais belas pernas do cinema. Gene Kelly embrenhou-se nas searas da direção, coreografia, cenários, além de dançar, incorporando novas técnicas à chamada sétima arte. “Um Americano em Paris” (1951), de Vincent Minelli, termina com um deslumbrante balé de 18 minutos,  e “Gigi” (1958) foi um dos últimos clássicos musicais escritos especialmente para o cinema.
Hollywood passou a sucumbir às adaptações de musicais de teatros, tentada por produções já prontas, mais rápidas e lucrativas do que criações próprias para o cinema. Passou a usar títulos conhecidos da literatura. Vieram Guys and Dolls (1955), The King and I (1956) e West Side Story (1961) - com belíssima música de ninguém menos que Leonard Bernstein, uma dos maiores regentes sinfônicos americanos. Outras adaptações clássicas foram My Fair Lady (1964), apresentada com sucesso nos palcos brasileiros por Paulo Autran e Tônia Carreiro, e The Sound of Music (1959), título que sabe-se lá o porquê foi traduzido no Brasil como “A Noviça Rebelde”. [Veja e ouça abaixo o clipe de excelente cena de West Side Story].

IV - Dos musicais União Soviética ao rock’n’roll.


Os musicais norte-americanos contaminaram o mundo: até mesmo na União Soviética dos anos 1930 Aleksandrov fez The Jazz Comedy (1934). O proximidade com os musicais de palco franceses também trouxe novos títulos, como Les Paraplules de Chérbourg, de Kelly, cujos diálogos são todos cantados em francês. Mais adiante, o belo Cabaret (1972), de George Fosse, com Liza Minelli, o oportunista “Nos Tempos da Brilhantina” (Grease, 1978), de Randal Kleiser, com John Travolta. Em 1973, a dupla Weber-Rice lança o sucesso Jesus Cristo Superstar, em 1975 Ken Russel sacodia os cinemas com Tommy, do grupo de rock The Who, e em 1979 Hair explorava, ainda que tarde, o tríptico sexo-drogas-e-rock’n’roll. [Veja e ouça abaixo o clipe clássico de Cabaret].

V - De Hairspray à Atlântida, a Hollywood brasileira.


Catherine Zeta Jones
Catherine Zeta Jones foi celebrizada com a adaptação de um musical de palco jazzístico bem comercial, Chicago (2002); por fim, veio Hairspray, de Shankman (EUA/Ing, 2007), um dos últimos sucessos do gênero, então já bem decadente. O Brasil também teve sua época áurea dos filmes musicais, e os cassinos legalizados eram fábricas de cantores, vedetes, atores e atrizes como Carmen Miranda, Oscarito, Grande Otelo, depois lançados ao cinema. Merece destaque, nesses anos, “Alô, alô, Carnaval” (1936), com a Brazilian Bombshell Carmen Miranda, ao lado de Francisco Alves, Almirante, Dircinha Batista e Lamartine Babo, entre outros bambas da música. Já “Carnaval Atlântida” (1952) conseguiu unir Oscarito, Grande Otelo, José Lewgoy e o cantor Dick Farney! É uma hilária chanchada musical em que certo escritor, Cecil B. de Milho (piada com o nome do grande cineasta americano Cecil B. DeMille), contrata um professor de história grega encarnado por um desengonçado Oscarito. [Veja e ouça no clipe abaixo trecho de “Alô, alô, Carnaval”, de 1936].

VI - Da Jovem Guarda e Chico Buarque à “cegueira” que podem trazer os modernos óculos 3D.


Com a chegada da Jovem Guarda, surgiram coisas de gosto duvidoso como “Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa” (1968). “Bete Balanço” (1984), fraco mas muito bem estrelado por Débora Bloch, que faz uma aspirante a cantora que sai do interior de Minas em busca de sucesso, revelou alguns hits inesquecíveis de Cazuza. O ciclo parece terminar em 1986, com “A Ópera do Malandro”, de Ruy Guerra, com belas músicas de Chico Buarque. Depois disso, apenas coisas de muito pouco ou nenhum valor como filme, na minha opinião, como “Cazuza, o Tempo não para” (2004), “Dois Filhos de Francisco” (2005), ressurgindo na esteira da enorme entressafra com que o cinema foi golpeado com a extinção da chamada “Lei Sarney” (incentivo fiscal), mais um desserviço do então presidente Collor de Mello, que acabou com a única coisa útil (que eu me lembre) que o “coronel” maranhense deve feito em décadas de carreira política.  [Veja e ouça, para terminar, o clipe “Desafio do Malandro”, da “Ópera do Malandro”].
Posso ter esquecido vários títulos, mas esses são os musicais que marcaram época nas telas. Hoje, valem mais os efeitos de estúdio e sons espetaculares criados em computadores de última geração do que o canto e a dança de bons artistas, de carne e osso como eu e você. Saudosismo meu? Claro que não. Saudade da boa arte do passado, sim, mas parte dos filmes por mim citados até quase a metade deste texto foram rodados antes de eu nascer. O público jovem de hoje desconhece os bons musicais - uma arte que qualquer filme de terceira categoria com som “surround” e visto com óculos 3D pode lhes pode esconder.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

I - TATUÍ: FORJADA EM AÇO NO BARRO, ARRIMO PARA A BOA MÚSICA. O nascimento da cidade e do Conservatório.

A velha Fundição Ipanema

Em 11 de agosto de 1826 nascia Tatuí, na região do Médio Tietê, caminho de tropeiros e catequistas, em meio aos europeus, principalmente alemães e suecos, hábeis trabalhadores da Real Fundição Ipanema. Dessa amálgama, surgiram gerações despertadas para um talento particular: a música.
O governador Lucas Nogueira Garcez lançou a ideia que o Deputado Narciso Pieroni abraçou, em 1951,  na forma de um projeto de lei que, uma vez aprovado, criou o Conservatório de Tatuí. Três anos depois, em 1954, a escola foi finalmente inaugurada na cidade. É claro que houve necessidade de certo jogo político para que uma escola de música fosse instalada no interior, uma vez que a visão dos paulistanos era turvada por aquele velho e surrado vício da oligarquia brasileira de que tudo que é bom tem que ser para rico e nos grandes centros, razão pela qual não se justificava – segundo esses arautos - o erguimento de tal Conservatório no interior. 

II - TATUÍ: FORJADA EM AÇO NO BARRO, ARRIMO PARA A BOA MÚSICA. A organização.

Casarão dos Guedes

Consolidada a ideia, foi necessário buscar na capital um nome que desse magnitude à proposta para encabeçar o projeto, sendo o primeiro nome lançado o maestro Zacarias Autuori, do Teatro Municipal, que terminou por declinar da proposta. Eulico Mascarenhas Queirós, nascido em Itapetininga e então redator musical do Teatro Municipal de São Paulo, aceitou o desafio. A primeira tarefa, após a reunião de fundação, em 16 de agosto de 1954, resultou na escolha de um imóvel para a nova escola de música, e para isso decidiu-se alugar o “Casarão dos Guedes” (foto), belíssimo e histórico imóvel (hoje em estado lamentável).
Spartaco Rossi
Foi criado então um Conselho Técnico, e proposta uma missão arrojada: moldar o currículo do Conservatório ao que melhor se dispunha no país em termos de ensino musical, tanto que o programa de diversas disciplinas tomou como base a grade curricular da Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, do Rio de Janeiro. Havia ainda outros membros de São Paulo, como o professor de violino Luiz Gonzaga Barbosa e Spartaco Rossi, em cuja homenagem foi batizada a concha acústica da cidade (foto), aliados a músicos da cidade de Tatuí, como Ruth Luz e Maria Aparecida Holtz. 

III - TATUÍ: FORJADA EM AÇO NO BARRO, ARRIMO PARA A BOA MÚSICA. Turbulências de voo. Primeira tentativa de fechamento.

Não tardaram a surgir turbulências: no final dos anos 1950 o governador de São Paulo, Jânio Quadros, autor de uma manobra pueril em 1961 para tentar um golpe de estado (veja carta de renúncia na foto, à esquerda) e de notória ignorância musical, foi seduzido pela idéia do fechamento do Conservatório de Tatuí, mas encontrou resistência férrea no autor da própria lei de fundação, o deputado Narciso Pieroni, então liderança inconteste da Assembleia Legislativa.
Jânio, ao seu melhor estilo
Terminada a gestão Quadros em 1959, cessaram as tratativas para o fechamento do Conservatório, já em vias de franca consolidação. Porém, não haveria de ser esta a última tentativa. Houve mais duas: em ata de reunião do Conselho de Administração ocorrida em 21 de março de 1964, já sob a sombra das baionetas do golpe militar, o diretor-substituto Djalma Carvalho Moreira anuncia haver um plano para a transferência dos cursos para a capital – este, um “golpe” felizmente malogrado. 
IV - TATUÍ: FORJADA EM AÇO NO BARRO, ARRIMO PARA A BOA MÚSICA. Segunda tentativa.
CDMSP
Na segunda tentativa, em 1967, começou a tomar força um movimento orquestrado a partir do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, e após um longo artigo  de “O Estado de São Paulo” (29 de janeiro), assinado por um ex-assistente de Eleazar de Carvalho e por um pianista hoje conhecido como regente exemplo de superação, foi questionada a verba destinada ao Conservatório de Tatuí. Diversas matérias de alcance nacional engrossaram a campanha e uma comissão de três membros, dentre eles os dois signatários da citada reportagem, foram indicados pelo governo para conferir – ou melhor, procurar defeitos – as instalações e cursos. Conforme previsto, a comissão entregou ao Governo um relatório eivado de denúncias, de supostas entrevistas com alunos, um giro aleatório sobre a cidade e o que mais pudesse desqualificar o Conservatório.
Auditório do Teatro Procópio  Ferreira
Sob pressões políticas, o governo deu um prazo para que a escola de música em Tatuí mostrasse condições para funcionar da forma determinada. Rapidamente, o então diretor da unidade, prof. Coelho, juntou-se a técnicos para que, após trabalho diuturno, finalmente viesse a ser erguido o Teatro Procópio Ferreira, de dimensões médias mas completo, com camarins, fosso de orquestra e mais de 400 lugares na platéia, uma das melhores acústicas do interior, conforme não cansam de elogiar músicos brasileiros e internacionais. Uma nova visita técnica enterraria de vez a gulodice da capital paulista. Pois foi assim, como Tatuí, que o Conservatório “ergueu-se entre dificuldades” (do dístico latino per ardva svrrexi).
V - TATUÍ: FORJADA EM AÇO NO BARRO, ARRIMO PARA A BOA MÚSICA. A música das cidades menores, mundo afora.
Após esse breve histórico, é fundamental uma comparação, um paralelo de maior amplitude geográfica para melhor compreender o porquê de se prosseguir com a idéia de escolas (de música ou não!) da melhor qualidade no interior. Qualquer projeto que se faça, e no caso particularmente nas artes, tem que planejar sua linha evolutiva, seu rumo certo, um fio de qualidade a ser perseguido para o aperfeiçoamento constante, sob permanentes reavaliações, visando à melhoria de condições de trabalho e à crescente qualidade de ensino. 
Conservatório de Oberlin
Em boa parte das pequenas cidades norte-americanas há orquestras comunitárias, formadas por músicos profissionais e amadores – e às vezes também profissionais, como Portland e Concord, que atingem níveis bastante bons para o padrão local. Ótimas orquestras e escolas de música situam-se fora das megalópoles: Atlanta (capital da Georgia, com apenas 420 mil habitantes), Buffalo (260 mil), New Haven (130), Hartford (125), Bloomington (80) e Oberlin (8,2 mil habitantes - veja foto do Conservatório local), entre diversas outras. 
Conservatório de Genebra
Na Alemanha, são importantes centros Nürnberg, Leipzig, Dresden e Düsseldorf (média de 500 mil habitantes cada, todas menores do que Sorocaba), Karlsruhe (288 mil), Lübeck (210), Bamberg e Detmold (70). Na Suíça, hospeda tradições centenárias a cidade de Genebra (190 mil habitantes, ver foto do Conservatório), enquanto na Itália as cidades de Bolonha (382), Florença (370) e Siena (84) são reputadíssimos centros de estudo e apresentações musicais, assim como na França  a tradicionalíssima Lyon (483 mil), Estrasburgo (272) e a suntuosa Versailles (apenas 86 mil). 
VI - TATUÍ: FORJADA EM AÇO NO BARRO, ARRIMO PARA A BOA MÚSICA. Conservatório: plantado para sempre.
O Conservatório de Tatuí é hoje um paradigma de organização pedagógica, artística e administrativa, observado com atenção e especial interesse por outras cidades, pela capital e mesmo por outros estados. Consolida-se como uma árvore robusta cujas raízes se fincam cada vez mais profundamente em sua generosa terra vermelha, esteio inarredável de seu futuro. Pois aqui ele permanecerá para cumprir sua missão nas próximas décadas e ainda mais adiante, uma luta que as novas gerações saberão prosseguir e vencer.
(Agradeço material de Deise Juliana e a dissertação de Pedro Delarolle)

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

I - OLHAI AS LIRAS DE CAMPOS: Campos de Jordão: entre luxos e geadas.

Comércio noturno no centro de Campos de Jordão

Campos de Jordão, a 1.600m de altitude, conhecida como a “Suíça brasileira”, tem pouco mais de 50 mil habitantes e é uma aprazível atração turística – de altíssimo luxo, diga-se de passagem. Com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) 0,820, bastante elevado para o país, a cidade serrana tornou-se há muitas décadas um centro de encontros, namoros, chocolate quente, vinhos e fondue, tudo envolvido em uma arquitetura de traços suíço-germânicos, e, colaborando para ambientá-la, um clima quase europeu, o que alça o município à categoria de uma das estâncias climáticas prediletas da classe ultra-abastada paulista. Em um ponto alto da Serra da Mantiqueira, em meio a pinheirais de araucária, ergue-se uma cidade linda, embora um prato de almoço sem maiores luxos chegue a custar mais de R$ 100 e a diária de um quarto vip no melhor hotel saia na faixa dos R$ 4.000, no final de julho. 
Geada em Campos de Jordão
Aficionados por Harley-Davidson em Campos
Apesar de as temperaturas chegarem, no inverno, a menos de zero centígrado, ocorrências de neve real foram registradas apenas 4 vezes na histórica do município, uma vez que as configurações térmicas, de umidade e de formação de condensações não são propícias ao lindo fenômeno natural – quando muito, há geadas, o que castiga a população mais pobre com o frio, ela que vive meio que escondida na periferia aguardando a tão esperada época de ganhar uns trocos: o mês de julho, quando milhares de pessoas com belíssimos carros, e os filhos de papai em suas motos Harley-Davidson, Ferraris e outros mimos desfilam roncando para exibir falicamente seus motores e riqueza, em meio ao trânsito caótico que trava a cidade durante a alta temporada. 

II - OLHAI AS LIRAS DE CAMPOS: A criação por Guarnieri e a retomada de Eleazar.

Maestro Camargo Guarnieri

Muito antes desse clima de festa exibicionista, em 1970, o célebre maestro e compositor tieteense Camargo Guarnieri, com a ajuda do também maestro Sousa Lima, criou um festival de inverno de música clássica, voltado basicamente para apresentações públicas. Logo, o evento ficou conhecido como Festival de Inverno de Campos do Jordão. A partir de 1973, assume a batuta do Festival o maestro Eleazar de Carvalho, que foi diretor artístico do mundialmente famoso Festival de Tanglewood do Berkshire Music Center, nas proximidades de Boston, no estado norte-americano de Massachusetts.

Tanglewood: Eleazar de Carvalho e o jovem Seiji Osawa
O Festival de Tanglewood é o lugar onde, desde os idos de Koussevitzky (que fundou o evento em 1940, e de quem Eleazar de Carvalho foi assistente) jovens estudantes de música dos EUA e de todo o mundo se reúnem anualmente, após rigorosa seleção, para formar uma orquestra, grupo que ano a ano se recria  com grau de excelência cada vez mais surpreendente. Nos bosques de Tanglewood, os músicos da Sinfônica de Boston fazem até hoje sua residência de verão, e, entre cursos, palestras e concertos, realizam um dos mais belos encontros anuais permanentes de música clássica de todos os tempos. 

III - OLHAI AS LIRAS DE CAMPOS: Eleazar e OSESP, Radio City e o Met. [

Concerto ao ar livre em Tanglewood

Pois foi à imagem e semelhança de Tanglewood que o insigne maestro Eleazar de Carvalho modelou o Festival de Campos de Jordão, tendo sua OSESP como orquestra residente e um corpo de alunos escolhido entre os melhores do país. Com o passar do tempo, o modelo exemplar de Carvalho começou a ceder espaço para desvios de toda natureza. Por alguns anos, o importante evento passou a ser mais um punhado de solistas estrangeiros para chamar a atenção da elite, a programação deixou de ter consistência didática e Campos passou a ser mais algum tipo de “virada cultural” (para usar um termo “cult’) de 3 ou 4 semanas, sem uma ideia ou fio condutor a que toda a parte pedagógica pudesse se vincular.
OSESP em Campos
Nos últimos poucos anos, o modelo anterior do velho Festival de Campos, à imagem de Tanglewood, começou a ressurgir das cinzas como um fênix, libertado de seu marasmo musical. A parte didática começou a tomar mais importância, calcando-se em alguns nomes de peso internacional, mas contando em seu corpo docente com a enorme competência das melhores estrelas da música de concerto brasileiras ou aqui residentes. Em 2012, a OSESP volta a reassumir o Festival, iniciando seu retorno à origem, após um passado de experiências de sucesso fácil com MPB e desvirtuamento da ideia motriz do projeto: a música clássica.
Radio City Music Hall, em NY
(Nada contra o gênero MPB, que adoro, mas em NY, só para citar um grande centro, existem o Radio City, para rock e jazz, e o Metropolitan, para ópera, cada qual em seu templo). Há um modelo a ser perseguido, o de uma orquestra do mais alto quilate conduzindo o aprendizado intensivo dos melhores alunos do país, contribuindo para que, no futuro, possamos criar mais orquestras com o mesmo padrão de qualidade da anfitriã do evento. 

IV - OLHAI AS LIRAS DE CAMPOS: Inédito: Coro e Sinfônica do Conservatório e a 9ª Sinfonia de Beethoven em Campos.

Foto: Kazuo Watanabe

Por fim, no domingo, dia 22 de julho de 2012, o Coro e a Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí, tendo à frente o maestro João Maurício Galindo e como regente do Coro o maestro Cadmo Fausto, coloriram com um grande público a Praça do Capivari, sob um sol camarada e bem-temperado (para usar uma expressão musical), e apresentaram uma versão memorável da 9ª Sinfonia de Beethoven,  a “Coral”, cujo último movimento traz os versos do poeta alemão Schiller, “Ode an die Freude”, “Ode à alegria”. Após mais de uma hora de música, ainda presa a respiração após o último acorde da obra, a plateia se levanta instantaneamente.

Friedrich Schiller (1759-1805), autor da "Ode"
Aquele dia de encerramento do Festival foi um momento simbólico: seria, com certeza, a terceira orquestra fora da capital a executar uma das maiores obras musicais de todos os tempos - a própria Sinfônica Municipal de São Paulo mostrou-a pela primeira vez sob a batuta de Armando Belardi apenas em 1940! Para o Conservatório, um degrau a mais, o prenúncio trazido pela alegria irradiada pelos versos de Schiller de que, cada vez mais, o prumo do aprendizado será sempre o da exigência e da excelência crescentes. 

V - OLHAI AS LIRAS DE CAMPOS: Questão de qualidade.

Campo de lírios
Lira
No uso do dinheiro público, todos clamam por melhores médicos, melhores professores, melhor atendimento. Por que, então, haveria de ser diferente com os profissionais que necessitamos formar? 

Ou serão os músicos meros animadores de palco diletantes ou atores coadjuvantes de fugazes entretenimentos? Em seu “Olhai os Lírios do Campo”, Érico Veríssimo se baseia no Sermão da Montanha, que fala da justiça para os que têm fome e da opulência que os oprime. Talvez seja este texto não um sermão, mas uma pequena contribuição à reflexão sobre a música clássica na estância serrana e à missão musical do Conservatório de Tatuí.