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sábado, 30 de junho de 2018

BACH E HÄNDEL: ENTRE TAPAS E BEIJOS

Bach, sisudo
Já falamos, neste espaço, sobre a farta produção do compositor Johann Sebastian Bach (1685-1750). No período em que foi Konzertmeister (mestre de concerto), ele compôs uma cantata por mês e às vezes uma peça para cada domingo ou feriado. (Já sua prova para o cargo de Kapellmeister - mestre de capela - da Igreja foi tão extensa que em tudo se assemelhava, guardadas as proporções, a uma sustentação oral no plenário para investidura em nossos altos cargos jurídicos: os temas incluíram latim, bíblia e legislação).

Erfurt
Bach produzia muito, mas como necessitava de boa renda para o sustento de sua enorme prole, em 1730 chegou a escrever a um amigo, Erdmann, queixando-se da saúde pública da cidade de Erfurt, que “lamentavelmente havia melhorado muito”. Para piorar, completou, o saneamento havia progredido a olhos vistos, e por causa disso já escasseavam as encomendas de músicas para cerimônias fúnebres. (Parece não muito sincera a afirmação de Bach de que ele havia trabalhado incessantemente a vida inteira, e que quem pegasse no batente como ele obteria os mesmos resultados. Era falsa modéstia, ele se sabia genial: ego inflado, escreveu nada menos que 37 peças a partir das iniciais de seu sobrenome, B-A-C-H - em alemão, Si bemol, Lá, Dó e Si).

Fagotista, por Gerard Portielje
O compositor era muito rancoroso e cheio das vaidades, tanto que após um de seus intermináveis ensaios não hesitou em ameaçar na praça Geyersbach, um jovem fagotista que teria feito à boca miúda bochichos desairosos sobre o mestre após uma repreensão. Bach já havia registrado queixa contra ele, e, naquele dia, na rua, enquanto alguns colegas tentavam apartar a briga, o músico brandia um pedaço de pau e Bach passou a ameaça-lo ensaiando de sacar a espada. Valeu-lhe uma reprimenda superior pela impaciência como chefe.

Apesar do pavio curto, o temperamento do mestre fora do trabalho era em geral o de um bonachão que gostava de levar músicos e amigos a um café ou cervejaria para rir, beber, cantar e tocar com os colegas. Mas o talento de brigão era recorrente: em 1717 queria porque queria ser Kappelmeister de Sachsen-Weimar, para cujo duque trabalhava, mas o cargo que lhe foi negado. Vencidos os argumentos, passou do sério e foi devidamente retirado do palácio e preso. Um mês depois, a prisão foi relaxada (palavra que soa mais para afrouxar do que soltar)

John Taylor e suas desastradas intervenções
Já muito idoso, Bach estava cego e apoplético, e um cirurgião inglês, John Taylor, foi chamado para aliviar o sofrimento do mestre. Esforçou-se para curá-lo, mas foi malsucedido, e levou-o de vez à morte (Taylor tentou salvar Händel, dois anos depois, e igualmente falhou, deixando-o cego). E se a ciência da época não era mais de serventia ao mestre, restou-lhe apelar em súplicas à misericórdia do Pai. Pouco antes de se encontrar com Aquele de dizia ter sido sua única fonte de inspiração, ainda chegou a conhecer seu neto, filho de Johann Christian e Elizabeth. A esposa Anna Magdalena trouxe-lhe rosas, e ele as apreciou, achou-as maravilhosas apenas tocando-as com os dedos, dizendo que pelo tato podia sentir-lhes a beleza.

A bela, jovem e talentosa esposa Anna Magdalena
No leito de morte, Bach pediu ao genro Christian que pegasse partitura e pena, e passou a ditar nota por nota o coral Com Isto, Apresento-me Diante do Vosso Trono. Também solicitou aos presentes, ao seu redor, que cantassem Todos os Homens Deverão Morrer, coral por ele composto sobre versos de Lutero. Com um sorriso, inteiramente cego àquela altura, disse que, finalmente, seus olhos veriam o Salvador. Depois de tal súplica e da devoção de uma vida inteira, o Senhor finalmente acedeu em recebê-lo, naquele julho de 1750. Partiu de forma absolutamente conformada, entregando-se, como parece ter antevisto na declaração de amor, um tanto mórbida, que havia deixado no livro de notas dedicado à esposa: “estando tu ao meu lado, irei com alegria para a morte e o descanso. E como será lindo meu fim, se tuas belas mãos me cerrarem os olhos”.

Händel e sua espada, por Philip Mercier
Cenas de desavenças que nada devem às de Bach foram protagonizadas por George Friederich Händel (1685-1759). Ambos tiveram música e brigas em comum, além de fracassos nas mãos do cirurgião John Taylor. Durante um ensaio de uma ópera de autoria de Johann Mattheson, este, que fora tutor de Händel, tentou afasta-lo do cravo, irritado que estava – naquela época, era comum uma espécie de regência dividida entre o cravista e o primeiro violino, coisa que, claro, nunca daria certo. Após alguns bate-bocas, a discussão resvalou para a baixaria, passando de meros xingatórios aos tapas, e depois com ambos desembainhando suas adagas. Mas a fama de impaciente e agressivo de Händel já era conhecida desde quando, possesso de ódio, tentou atirar pela janela Cuzzone, uma soprano de nome um tanto impróprio que se atrapalhava para cantar uma ária da sua ópera Ottone, Re di Germania, em um ensaio.


[O compositor escapou de ser vítima fatal de um golpe certeiro de seu antigo mestre, salvo de uma espadada graças a um dos enormes botões de sua capa – coisa de filme “caubói-espaguete” italiano, como o herói Giuliano Gemma, em O Dólar Furado, na cena em que sobreviveu a um tiro certeiro no coração, felizmente escudado por uma moeda no bolso esquerdo superior de seu colete – daí o título do filme. No caso de Händel, deve tê-lo ajudado também sua protuberante barriga a almofadar o botão do sobretudo contra um golpe da ponta da espada. Ajudou a salvá-lo de alguma injúria maior ser um comilão assumido e inveterado – mestre, além da música, em instrumentos como o garfo e a faca].



sábado, 23 de junho de 2018

ERROS E DEFEITOS NO MODO DE CANTAR O HINO NACIONAL


MAS POR QUE O TITE NÃO CANTA?
Martin Braunwieser, um trunfo brasileiro
Martin Braunwieser nasceu em 1901 na Salzburg de Mozart, sendo filho de um Mestre de Capela. Após estudos e cargos na Europa chegou ao Brasil em 1928. Dono de inteligência e cultura ímpares, foi professor e músico atuante em São Paulo. Começou a trabalhar, anos depois, na Prefeitura, a convite de Mário de Andrade. Pesquisou o folclore brasileiro, compôs e regeu, e veio a falecer em 1991 - estive na casa dele e sua filha Renata acho que por volta de 1986.
Martin Braunwieser foi Professor de Canto Orfeônico dos Parques Infantis Paulistanos, e observou, além de horrores ao ouvir o Hino Nacional, a quase impossibilidade de a criançada canta-lo corretamente. Caprichoso, resolveu anotar as inúmeras falhas recorrentes tanto na música quanto na letra. Seu livrinho Erros e Defeitos no Modo de Cantar o Hino Nacional, a que devo o título deste artigo, foi publicado pelo Arquivo Municipal e é hoje avis rara, fui encontra-lo garimpando em alguns sebos.
As semicolcheias preguiçosas
O maestro compilou absurdos que podem passar despercebidos aos leigos, mas que não conferem nem com a partitura nem com o que normatiza a legislação sobre o assunto (sobre a qual falaremos mais adiante), tanto do lado rítmico-melódico, a composição de Francisco Manuel da Silva, quanto da letra, de Osório Duque Estrada. Constatou erros graves nas acentuações, desde já no primeiro compasso: ‘Ouviram’, pesando fortemente o Ou, quando na verdade o acento deveria recair sobre o vi, sílaba seguinte. E observou que nunca cantavam como estão escritos os grupos, com enérgicas notas pontuadas já desde o primeiro verso,  'arredondavam' o ritmo por instinto (ver ilustração acima) - Mário de Andrade falava da 'índole preguiçosa do povo brasileiro’.
O maestro coletou pérolas como “Ipinanga”, “Ipi-ianga”, “heróito”,  “heróisto” e por aí vai, atentados como “do que a terra margarida”, “em teus seios ó liberdade” (ora, são dois, devem ter pensado os infantes), ao todo 130 principais erros! Quanto à parte melódica, essa parecia missão impossível, já que a música fora escrita como Marcha Triunfal, para banda, em 1822 (hino vem da tradição do anthem luterano, que deu origem ao anglicano Deus Salve a Rainha, assim como o Star Spangled Banner americano). Depois, foi-lhe adaptada uma letra em 1831, celebrando a data da abdicação. Tornou-se o Hino ao Sete de Abril (“Os bronzes da tirania / já no Brasil não rouquejam”), e atravessou décadas até ser ungido Hino Nacional por Deodoro, em decisão nada canônica: quem havia 'levado' o concurso fora Leopoldo Miguez, com uma bela letra de Medeiros e Albuquerque: “Liberdade, Liberdade / abre as asas sobre nós! / Das lutas na tempestade / Dá que ouçamos a tua voz!” Este Hino chegou a ser publicado no Diário Oficial, mas Deodoro convocou um concurso - que teve como vencedor o mesmo Miguez. O marechal-presidente, parece que “ouvindo o clamor deste povo”, entregou o primeiro lugar a Francisco, e recompensou Miguez, como consolação, com o cargo de diretor do Instituto Nacional de Música. E ficamos com a Marcha Triunfal repaginada.
A letra só foi oficializada via decreto de Epitácio Pessoa em 1922, ano marcado pela Semana de Arte Moderna de poetas como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia. A letra de Osório é escrita em ordem inversa, característica do parnasianismo do século anterior, o que dificulta a compreensão. “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico”, seria o primeiro verso em ordem direta, só para servir de exemplo. (E pasme! Os integrantes do Coral do Parque do Ipiranga, bem ali ao lado do riacho, não sabiam onde fora proclamada a Independência!)
O Obelisco, em foto de Petria Chaves
Um depoimento pessoal: há muitos anos, depois de um programa na Rádio Band em que eu falava da música e o prof. Pasquale Cipro Neto da letra do Hino, levaram-me em uma van da Band para um ponto bem movimentado, o Obelisco do Ibirapuera. Ali, irradiaram que os que cantassem o Hino corretamente levariam dez computadores. Pararam quase três dezenas de carros, mas em vão, ninguém acertava. Com o passar do tempo os patrocinadores pediram que pelo amor de Deus fossem dados os prêmios. Bom, passei a dar os parabéns a um a cada dois ou três ‘competidores’. Com certa tristeza, sim, mas era o trato: entregar os dez computadores.
Francisco Manuel (Arquivo FBN)
Vamos à Lei 5.700, dos símbolos pátrios, e leis e decretos subsequentes, que trataram de normatizar tanto a Bandeira Nacional quanto o Brasão de Armas, o Selo e, claro, o Hino Nacional, que deve ser executado em Si bemol maior ou Fá maior, a depender da solenidade e ocasião, e a pulsação sempre a 120 b.p.m (batidas por minuto, ou seja, duas por segundo). Dada a característica instrumental, a despeito da beleza da música de Francisco Manuel, que estudou com Neukomm, ex-aluno de Haydn, compreende-se a dificuldade de se cantar o Hino, originário da Marcha Triunfal de 1822, composta para ser executada apenas por instrumentos. Resumindo, marcha é uma coisa e hino é outra, mas vale a intenção e a beleza melódico-harmônica.
A versão em Fá maior é cantada duas vezes, a primeira começando por “Ouviram do Ipiranga” e a segunda “Deitado eternamente”. Agora, cuidado! a versão instrumental, em Si bemol maior, deve ser executada apenas uma vez, ou seja, a primeira parte (em que se cantaria 'Ouviram'), e sem o canto! Por isso, se nos jogos da Copa você pensou que o Tite não sabe cantar – eu nunca ouvi nem sei se o faz bem ou mal -, seguramente sabe como se portar, sendo ele o único a proceder corretamente, ao lado dos jogadores com sua ‘mímica labial’. E olhando para a frente, para o futuro, como civis, e não para a bandeira, tradição cerimonial de respeito dos militares, por favor.



sábado, 16 de junho de 2018

A NECESSIDADE DO REGENTE DE ORQUESTRA



Muitos leigos perguntam se o maestro é mesmo necessário, especialmente quando veem orquestras de câmara conduzidas por seu violino solista, costume muito antigo. Um bom conjunto de câmara, a depender da peça, nas músicas que não abusam de alterações de andamento, como complicados accelerandi ou ritardandi (o inverso), pode tocar parte do repertório sozinho. Mas para a maior parte das músicas que vão do pico do romantismo aos dias de hoje a coisa é bem mais complicada. Ígor Stravinski (1882-1971) disse que a carreira dos regentes na maior parte das vezes se faz com obras do período romântico. E que as músicas do chamado período clássico ‘eliminam’ o regente, ele não é lembrado.

Orquestra de Câmara: sem regente
Houve tentativas de extinguir a figura do regente, e várias nos anos 1920, na então recém-criada União Soviética do igualitarismo sedutor Marx de e Lênin. Conforme lembrou o amigo, compositor e regente Aylton Escobar, logo alguém se sobressaía e os olhos dos colegas a ele se voltavam nas entradas – gestos que indicam o início de uma peça, uma seção, ou alguma alteração de andamento. Também na orquestra, como é da natureza humana, uns eram mais do que os outros. Nos grandes grupos, contudo, a figura do regente teve de prevalecer, impondo-lhes disciplina musical na complexidade.

Frank Battisti: quando a orquestra aplaude o maestro de pé (Xpress)
Bernstein imprimia sua personalidade sacudindo a batuta e às vezes dando pequenos saltos. Osawa chegava a se agachar nos pianíssimos, enquanto para os ataques fortíssimos reservava um gesto, às vezes com ambas as mãos, que eu apelidei de ‘golpe do machado’. Exemplo de boa regência controlada vi em 1980, tocando em uma master class do maestro Frank Battisti, que aliás já esteve no Brasil, em Tatuí. A demonstração foi dirigida a um jovem que tentava em vão fazer com que os músicos do Wind Ensemble da NEC iniciassem perfeitamente juntos o Pássaro de Fogo, de Stravinsky. Disse-lhe que não precisava tanto da batuta – ali, até olhos e sobrancelhas eram mais importantes. Battisti pegou-lhe a batuta e com um discretíssimo golpe, que eu diria de mestre, iniciou a peça com absoluta precisão. Ah, e além dos regentes econômicos há os franciscanos, de mínimos gestos.

Zukermann, o solista regente
O grande violinista, violista e dublê de regente Pinchas Zukermann, dono de cachês altíssimos, liderava a orquestra de Saint-Paul e costumava solar nos concertos. Bastava um gesto do corpo, um olhar, um movimento de arco. Sério no palco, meio moleque fora dele, não hesitou em tirar seu violino do estojo e tocar em plena rua de Vancouver - com a brincadeira, auferiu uns trocos e degustou um belo frango assado.  

Giuseppe Verdi
Voltando aos primórdios da regência, desde Lully (1632-1687) maestros tornaram-se assunto saboroso na língua áspera dos instrumentistas. Por essas e outras, o grande compositor de óperas italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) costumava referir-se à orquestra, à boca pequena, como la divina canaglia, lembrando a Divina Comédia (séc. XIV) de seu conterrâneo Dante. Episódios reais muitas vezes tendem a se transformar em anedotas, rapidamente incorporadas ao repertório da classe, seja um fato real, com os coloridos de praxe, ou os que talvez nunca existiram e surgem como fato em conversas aqui e ali, sabe-se lá se ‘verdade verdadeira’, a vera veritas. Um conhecido maestro, em um ensaio, reclamou da afinação da terceira trompa. O primeiro do naipe, rindo, disse maestro, a terceira faltou hoje. Diz a lenda que o maestro retrucou dizendo-lhe que então quando o terceiro viesse era para avisá-lo (fazendo troça, mas meio encabulado pela gafe. Pior o remendo do que a sonata).

Bach em família 
Já em tempos distantes, Johann Sebastian Bach não se conformava com murmurinhos crueis, prática comum a nove entre dez músicos de orquestra. E ficava uma onça quando sabia que o assunto eram suas divinas habilidades musicais. Ora, resmungou, eu trabalho como um operário! (A ele se reputa a autoria da frase ‘a música é 10% inspiração e 90% expiração’). Admirável que ele tenha feito tudo o que fez como genial e prolífica formiguinha da música e à parte ainda duas dezenas de filhos, legando-nos numerosa obra musical. E descendentes.

Caymmi: "nas ondas verdes do mar"
Ao contrário de Bach, o genial baiano Dorival Caymmi deixou-nos os talentos de Nana, Dori e Danilo e compôs pouco mais de uma canção por ano de vida. Cantava ‘365 igrejas a Bahia tem’ – se a vida é um dia após o outro, daria para passar um ano inteiro a percorre-las. Webern, nascido em 1873, também foi um compositor para lá de econômico - o conjunto de sua obra não soma três horas de duração, caberia em pouco mais de dois CDs. Morreu em 1945 baleado por um soldado americano, vítima da perseguição a um genro seu procurado por atuar no mercado negro, durante a ocupação aliada da Áustria.

Felix Mendelssohn
Ao revés da produção econômica, retornamos ao prolífico  Bach, autor de algumas obras fartamente caudalosas, como suas duas Paixões: Segundo Mateus e Segundo João. A primeira delas possui nada menos que 78 seções, e em uma das vezes em que toquei houve intervalo para jantar, fazendo daquela tarde-noite um concerto extenuante, mas compensador para o espírito e o estômago. Graças à Paixão Segundo Mateus que Bach, que andava quase esquecido, foi redescoberto por Felix Mendelssohn (1809-1847), que a regeu depois de quase dois séculos. Um crítico, sabe-se lá se por causa do antissemitismo que grassava na época, escreveu, destilando seu veneno mais desaforado, que aquela ‘descoberta’ da longuíssima Paixão de Bach terminou de matar Cristo para lustrar a vaidade de Mendelssohn.

sábado, 9 de junho de 2018

O MAESTRO SACODE A BATUTA

“O maestro sacode a batuta, a lânguida e triste a música rompe...” Não pude deixar de ceder aos primeiros versos do poema de Fernando Pessoa (in Cancioneiro) para lembrar que ela é o mais leve, porém mais poderoso instrumento – apesar de, curiosamente, não produzir som algum por si mesma. A invenção é atribuída ao alemão Carl Maria Von Weber (1786-1826), compositor de belas óperas. Em 1813, quando assumiu a direção da Ópera de Praga, na Tchecoslováquia, Weber trouxe não exatamente uma vareta para conduzir os músicos: registros mostram algo como um bastão. Morreu tuberculoso aos 39 anos mas foi um dos principais responsáveis pelos rumos que a música europeia tomaria. A urna com seus despojos foi transladada de Londres 18 anos após enterrada para o Cemitério Católico de Dresden, com um discurso teatral de Richard Wagner (1813-1883). Não surpreende: o autor de Tristão e Isolda era dado a coisas fúnebres, construíra o próprio túmulo no jardim, atração que costumava mostrar orgulhoso às suas visitas.
Os compositores regiam suas próprias obras, e o maestro não-compositor surgiu apenas em meados do século 19, com Hans von Büllow (1839-1894), atribuído primeiro regente profissional nessa arte. Excêntrico, conta-se que durante uma apresentação na Ópera de Munique iniciou a execução da 3ª Sinfonia de Beethoven, Eroica, com luvas brancas, trocando-as por um par de cor negra antes da Marcha Fúnebre do 2º movimento. Era tão apaixonado pelos “três B” que dizia “creio em Bach Pai, Beethoven Filho e Brahms Espírito Santo”. Protagonizou uma revolução, relevando o passado em que os compositores marcavam com rigidez o andamento de suas obras. Antes do advento das primeiras leis trabalhistas, Büllow revestiu-se de um poder quase absoluto – trazia no bico da pena a demissão sumária do músico que lhe fosse incômodo.
Mesmo no Brasil ficaram para trás esses rompantes de despotismo exagerado do regente, mas houve maneiras de exercê-lo de forma menos prejudicial à sua imagem. A exemplo, certa vez um músico havia feito comentários que desabonavam a masculinidade do chefe, um autoproclamado machão. O regente convocou o músico linguarudo, ordenando-lhe procurar um a um para quem havia feito a confidência, que retornariam dizendo que o colega mentira. O músico ficara aliviado, as férias coletivas terminavam e estava ansioso para retornar ao trabalho mas foi chamado pela secretaria da orquestra, que disse que nem adiantava vir ao primeiro ensaio, deveria passar logo na Seção de Pessoal para receber seus direitos. Isso tudo na surdina do recesso, como mandaria a partitura.
Joe Silverstein
Nos últimos tempos, finadas tantas ditaduras e tantos muros, o modelo de maestro despótico tem andado em decadência. Um marco foi o confronto entre os músicos e o todo-poderoso Karajan, da Filarmônica de Berlim, no caso Sabine Meyer, que seria a segunda mulher no grupo, não fosse um episódio de 1983. A orquestra, então “Clube do Bolinha”, não aceitou a jovem eleita por concurso, e balançaram o maestro vitalício. Nos EUA, durante um ensaio da Sinfônica de Boston, Seiji Osawa apontou uma entrada mas fez um comentário infeliz: quase a tempo, violinos! O spalla Silverstein e seu concertinho, Emmanuel Borok, simplesmente pararam de tocar e ficaram em seus lugares. Na primeira brecha, foram ao pódio e advertiram o regente de que aquele tipo de comentário não era bem-vindo ali.
Sir Marriner e a Saint Martin-in-the-Fields
Verdade que houve algumas experiências democráticas, ou quase. Em Porto Alegre, ao menos décadas atrás, a figura antes una do diretor artístico/regente foi dividida com um Conselho Artístico que passou a organizar a temporada e convidar maestros e solistas. Aliás, à maneira de várias orquestras americanas, como a de Boston, em que a direção artística cabe a uma comissão e seu presidente. A Academy of Saint Martin-in-the-Fields, reputada uma das melhores orquestras de câmara do mundo, foi criada em 1965 sob a liderança do spalla dos segundos violinos da Sinfônica de Londres, Neville Marriner. (Que achava que Karajan, com quem trabalhara, era tão autoritário e inflexível que até mesmo suas execuções eram perfeitas e imutáveis cópias delas mesmas). Marriner foi empossado como regente por vontade dos músicos, mas segundo o próprio a decisão fora apenas uma consequência natural de sua responsabilidade na gestão do conjunto. E apesar de seu poder ir se avolumando nas mãos, falava que a gestão continuava democrática.

Badura-Skoda
Por volta de 1987, um grupo de músicos das sinfônicas do estado (Osesp), Municipal (OSM) e USP (Osusp) em sua maioria jovens e primeiras estantes, resolveram montar sua própria orquestra de câmara, um coeso grupo de 35 músicos. Inicialmente com a participação do maestro Roberto Tibiriçá, mas tendo uma vida independente, a Nova Sinfonieta tinha um conselho diretor – de que eu, com outros colegas, fazia parte com orgulho. A orquestra conquistou a imprensa, chamou a atenção e teve como solistas Gilberto Tinetti, Martha Herr, Miha Pogacnik, Michael Haram e o mito vienense Paul Badura-Skoda. Na batuta, além de Tibiriçá, tivemos Sergio Magnani, Aylton Escobar e outros. Na “era Collor”, a extinção da Lei Sarney derrubou, além da Sinfonieta, o bom cinema (sobraram apenas as bilheterias de Angélicas, Xuxas e Trapalhões, que se autofinanciavam). Artistas vislumbrava os trilhos sobre os quais a mediocridade viria a reboque - e os músicos perfilaram junto aos últimos bastiões de resistência da boa arte em tempos melhores!



***
Para quem quiser ler o lindo poema de Fernando Pessoa: 

O Maestro Sacode a Batuta


O maestro sacode a batuta, 
A lânguida e triste a música rompe ... 

Lembra-me a minha infância, aquele dia 
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal 
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado 
O deslizar dum cão verde, e do outro lado 
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ... 

Prossegue a música, e eis na minha infância 
De repente entre mim e o maestro, muro branco, 
Vai e vem a bola, ora um cão verde, 
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo... 

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância 
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música, 
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal 
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo... 
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...) 

Atiro-a de encontra à minha infância e ela 
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés 
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde 
E um cavalo azul que aparece por cima do muro 
Do meu quintal... E a música atira com bolas 
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos 
De batuta e rotações confusas de cães verdes 
E cavalos azuis e jockeys amarelos ... 

Todo o teatro é um muro branco de música 
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade 
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo... 

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda, 
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa 
Com orquestras a tocar música, 
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei 
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância... 

E a música cessa como um muro que desaba, 
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, 
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto, 
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, 
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, 
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo... 

sábado, 2 de junho de 2018

REGER, VERBO INTRANSITIVO

A batuta

Mais vulneráveis aos olhos e línguas do público e dos músicos, é natural que exista um amplo folclore acerca de regentes, e quanto maior a exposição, melhor alvo ele se torna. A história da regência não é  muito curta, mas a trajetória de seus protagonistas costuma ser  bastante rápida.
Leonard Bernstein
No século 13, Elias Solomon, em Tracatus de Musica sugeria ao líder do coro apontar  o erro de alguém sem que se percebesse quem era o cantor de que falava, uma tímida psicologia regencial. No século 15 surgiu o ‘sol-fa’, e uma partitura enrolada era dirigida por quem se achava mais competente para marcar. Ornithopachus, no final daquele século, recomendou ao cantor-líder a suavidade das mãos. No século 18, o alemão John Böhr sugeriu o dedo indicador ou... um pedaço de madeira. Modernamente, as técnicas de direção, bem  como aqueles sinais e gestos, são absolutamente individuais, existindo apenas algumas poucas convenções comuns entre os grandes (amadores fazem maquinalmente o trivial). Divergem em muitas coisas, até quanto ao uso da batuta, a varinha condão. Enquanto Toscanini e Bernstein a manobravam com habilidade, Karajan e Kurt Masur optaram pela expressividade das mãos. 
Kurt Masur
Alguns candidatos ao posto, ao largarem seus instrumentos para alçar voos mais altos na carreira de regente, eram jocosamente chamados batteurs de mesures, ou ‘batedores de compassos’ (franceses adoram criar expressões para todas as finalidades). Algo como o que os músicos do filme Ensaio de Orquestra, do Felini, procuraram demonstrar: sai regente, entra um metrônomo gigante. Pode-se ver a história do regente do ponto de vista geométrico: começa com o líder de pé e os músicos sentados, depois, juntando-se a eles. Enfim, levanta-se novamente, deixando-os sentados, caminho que levou bom tempo até se consolidar de vez. Logo, o regente viu que não estava ‘elevado’ o suficiente: teve de pedir um estrado - o pódio! - para de cima melhor exercer seu poder. Na correlação de forças musical a ascensão do regente, e, ao revés, a queda do poder da orquestra ou coro foram inevitáveis. Ele era o dono da sabedoria (quando não, bastava-lhe ser protéjé de um governante ou mecenas poderoso).
Regente ensaiando no fosso
Com a ópera, o regente teve de descer ao fosso (apertada clausura invisível à plateia) sob o palco onde a cena se desenrola. O regente, a cabeça um pouco mais acima no nível do fosso, tinha de fazer gestos um pouco mais espalhafatosos para ser percebido pelo público. A consolidação da ‘geometria orquestral’ de hoje é recente, pois até 1905, na Gewandhaus de Leipzig, os músicos ainda tocavam de pé! As orquestras atuais, salvo alguns detalhes, parece terem sido congeladas em algum lugar do passado, perdendo a constante mutação anterior. Daqui para a frente, qualquer mudança maior, se acontecer, deve demorar muitos, longos anos.
A simpatia dos músicos é reservada aos poucos regentes 'eleitos',  unge apenas os prediletos. Franz Strauss (1822-1905), trompista e pai do Richard Strauss de Assim Falou Zaratustra (popularizada no filme 2001, Odisseia no Espaço), era conhecido por sua ojeriza à batuta. Certa vez, aproximou-se de um maestro convidado e disse-lhe que desde o momento em que ele entrara no palco, e antes mesmo de subir ao pódio, já pelos passos sabiam quem iria mandar: ele ou os músicos (naquele caso, foi o conjunto). Orquestra é como um potro bravio: no pisar do peão no estribo ele já se sabe quem vai levar quem.
Birgit Nilssen
Entre os motivos mais comuns de desavenças entre músicos e regentes estão os tempos - tempi, em italiano. Acostumados com certo andamento, instrumentistas volta e meia têm alguma rusga com o chefe. (O spalla do Municipal do Rio contou uma nota de jornal há muitos anos, teve séria discussão com o regente, e saiu do sério. O imbróglio só se encerrou com o grande Pareschi atirando seu precioso instrumento no chão, abandonando o ensaio). Nem as estrelas são poupadas. A lendária cantora sueca Birgit Nilssen teve uma saia-justa com o poderoso Herbert von Karajan. No ensaio, a solista disse ao maestro que aquele andamento estava muito lento. Karajan olhou-a e perguntou quem pagava quem, ele ou ela. E nem esperou resposta, continuou do jeito que queria.
No folclórico repertório de esquisitices da música, mesmo fatos reais às vezes adquirem status de anedota. Tal como um episódio da vida do compositor, violinista e líder de orquestra Jean Baptiste Lully (1632-1637), da corte de Luís XIV, talvez o ‘pai’ da regência com, digamos, uma batuta. Chegado a uma comédia, foi parceiro e amigo de Molière, autor de peças de teatro como O Burguês Fidalgo, e teve seus dias tragicômicos. A Lully também se credita a organização da direção dos arcos dos instrumentos, antes sem rumo e cada qual em uma direção. Depois dele, os movimentos tornaram-se belas ondas sinuosas, homogêneas como em um exercício de Tai-chi-chuan.
A 'bengalada' de Lully
Praxe da época, Lully comandava a orquestra de seu lugar de primeiro violinista, e se irritava com a dificuldade de segurar o andamento correto de alguma passagem: seus comandados atravessavam caoticamente o ritmo com mínimas, semínimas e colcheias que, rebeldes, teimavam em escapulir dos instrumentos. Parou de tocar, e como era coxo, usou seu cajado para bater o tempo no chão, cada vez com mais força. Pronto! Estava definitivamente inventado o regente com batuta. Mas um desses golpes de seu “bengalão” caiu errado e acertou-lhe o pé, ferindo-o seriamente. Talvez primeiro caso conhecido de ‘olho gordo’ de orquestra contra regente, a lesão no pé gangrenou, e por causa dela dizem que Lully morreu coisa de quinze dias depois.
[O título no início deste artigo é inspirado em Amar, Verbo Intransitivo, do Mário de Andrade. Finalizo com um abraço a todos os amigos regentes]