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sexta-feira, 1 de novembro de 2019

OS ESCRAVOS HEBREUS E OS CORTES NA CULTURA ITALIANA

O jovem Verdi, por Victoria Francisco

Verdi não teve muita sorte desde que nasceu, em 1813, em Roncole (hoje Roncole-Verdi), na província de Parma, Itália, ocupada por Napoleão - por coincidência, o mesmo ano em que veio à luz Richard Wagner. Um, para glória dos italianos, o outro para júbilo dos alemães. Carlo, pai de Verdi, e Luiza, a mãe, por medo batizaram-no Joseph Fortunin François Verdi, prenomes bem franceses. Passou a assinar Giuseppe apenas mais tarde, assumindo de peito aberto sua nação. Estudava e tocava órgão na Igreja de Roncole desde os 12 anos de idade, mas não estava preparado o suficiente para, alguns anos depois, conseguir ingressar no disputado Conservatório de Milão. Continuou a estudar e compor, e aos vinte anos escreveu a ópera Oberdo, Conde de San Bonifacio, um rotundo fracasso.
Igreja de Roncole, em frente à casa de Verdi

Em 1840, Verdi amargou o infortúnio da encefalite viral que vitimou sua mulher e dois filhos. Agarrando-se ao que lhe restava, a música, compôs Um Giorno di Regno (“Um Dia de Reinado”), melodramma giocoso que igualmente não vingou – sinal de que o gênero não coadunava com seu perfil de patriota e humanista, cheio de ideias. Não desistiu, e finalmente alcançou seu momento de glória com Nabucco (1841), ópera em quatro atos sobre um libreto que lhe caíra às mãos como uma bênção: Nabuchodonosor, de Temistocle Solera. Com o texto, partiu para Milão imbuído de verdadeiro espírito patriótico, chegando a engajar-se no Risorgimento de Giuseppe Garibaldi, líder do movimento pela unificação e independência da Itália. Entre outras óperas, alcançou grande fama com Rigoletto, Macbeth (que o fez merecer o apelido de O Shakespeare da Ópera), Il Trovatore, Aída e La Traviatta, além de uma ópera cômica, Falstaff, e o grandioso Requiem. Mas é com Nabucco que vou desenvolver este texto.
La Scala
Verdi estreou parceria musical e se apaixonou por Giuseppina Streppone, soprano do La Scala que viria a  atuar no papel de Abigaille, então já casada com o compositor, na estreia de sua ópera Nabucco. É um drama de sentido claramente político, passado em 487 a.C., na Babilônia e Jerusalém, inspirado no Salmo 137 (“Pelos Rios da Babilônia”) e textos bíblicos de Jeremias e Daniel.
Nabucco, vestimenta para a estreia
Os hebreus faziam suas preces, enquanto as forças babilônicas atacavam. Fenena (mezzo-soprano), filha mais nova do rei Nabucco, é tornada refém. Abigaille, suposta filha mais velha de Nabucco, invade o Templo com soldados da Babilônia, mas Zaccaria (baixo), rabino líder dos judeus, ameaça de morte a prisioneira Fenena, filha caçula do rei.
No terceiro ato (“A Profecia”), Abigaille, já rainha da Babilônia, vê Nabucco chegar para reassumir o trono, dizendo ter provas de que ela na verdade não era filha dele, e sim uma escrava. Em “Às Margens do Rio Eufrates”, segunda cena do ato, o rabino Zaccaria exorta os hebreus a terem fé porque Deus destruiria o inimigo, a Babilônia, e eles enfim rumariam à sua terra. Nesta cena acontece um dos coros mais lindos e emocionantes da história da música: os escravos hebreus entoam Va pensiero, sull’ali dorate (“Vá, pensamento, sobre as asas douradas”), logo um segundo hino nacional italiano, cantado em ocasiões especiais.
Mario Zaccaro (foto: Papo Cult)
(E até aqui entre nós: certa vez, em 1992, na Câmara de SP, em votação de interesse dos Corpos Estáveis do Theatro Municipal, o maestro e amigo do coração Mario Zaccaro, da plateia, ergueu os cantores presentes para um lindo Va pensiero”. Levantou também o plenário, parlamentares voltados para a plateia admirando a cena, até que, ao final da apresentação, todos - vereadores, coro e plateia - aplaudiram com vigor. A lei passou por unanimidade).
Vá, pensamento, sobre as asas douradas
 vá, e pousa sobre as encostas e colinas
 onde os ares são tépidos e suaves
com a doce fragrância do solo natal!

(...) Ó, minha pátria, tão bela e perdida!
Ó, lembrança, tão cara e fatal!
  (...) Reacende a memória no nosso peito
 fale-nos do tempo que passou!
 (...) Traga-nos um ar de lamentação triste
ou que o Senhor inspire harmonias
que nos incutam a força para suportar o sofrimento.

Riccardo Muti, em sua fala
Um outro brilhante fato recente, eivado da vocação política dos italianos, aconteceu na Ópera de Roma em 12 de março de 2011. O grande maestro Riccardo Muti regia a ópera Nabucco, quando, terminado o Va pensiero, fez gestos para que plateia, orquestra e coro silenciassem. Fato inusitado durante apresentações de óperas, Muti virou-se para o público, e depois de ouvir um solitário viva l’Italia!, repetiu a frase, encadeando uma digressão sobre o quanto toda a vasta cultura italiana era importante. Lembrou os versos “minha pátria, tão bela e perdida”. Com elegância, referia-se aos cortes na área cultural que estavam sendo impingidos pelo governo de Silvio Berlusconi – uma gestão permeada de escândalos, subornos, corrupção e até pornografia, cenas com uma adolescente de apelido Ruby: o “affair Rubygate”.
Mas as cortinas do grande drama da noite ainda estavam por ser descerradas. Depois do discurso, Muti anunciou um bis de Va pensiero, e pediu aos presentes que cantassem junto. Inflamada por intensa emoção, a plateia, de pé, irmanou-se ao coro, e atirando seus programas de concerto do alto da última galeria e balcões, abriu-se em festa esvoaçante e cheia de lágrimas, tanta emoção que nem o coro se conteve.
Pressionado pela sucessão de escândalos, o primeiro-ministro Berlusconi renunciou em 16 de novembro de 2011, oito meses após aquele Va, Pensiero (discurso e bis logo abaixo).



sábado, 16 de junho de 2018

A NECESSIDADE DO REGENTE DE ORQUESTRA



Muitos leigos perguntam se o maestro é mesmo necessário, especialmente quando veem orquestras de câmara conduzidas por seu violino solista, costume muito antigo. Um bom conjunto de câmara, a depender da peça, nas músicas que não abusam de alterações de andamento, como complicados accelerandi ou ritardandi (o inverso), pode tocar parte do repertório sozinho. Mas para a maior parte das músicas que vão do pico do romantismo aos dias de hoje a coisa é bem mais complicada. Ígor Stravinski (1882-1971) disse que a carreira dos regentes na maior parte das vezes se faz com obras do período romântico. E que as músicas do chamado período clássico ‘eliminam’ o regente, ele não é lembrado.

Orquestra de Câmara: sem regente
Houve tentativas de extinguir a figura do regente, e várias nos anos 1920, na então recém-criada União Soviética do igualitarismo sedutor Marx de e Lênin. Conforme lembrou o amigo, compositor e regente Aylton Escobar, logo alguém se sobressaía e os olhos dos colegas a ele se voltavam nas entradas – gestos que indicam o início de uma peça, uma seção, ou alguma alteração de andamento. Também na orquestra, como é da natureza humana, uns eram mais do que os outros. Nos grandes grupos, contudo, a figura do regente teve de prevalecer, impondo-lhes disciplina musical na complexidade.

Frank Battisti: quando a orquestra aplaude o maestro de pé (Xpress)
Bernstein imprimia sua personalidade sacudindo a batuta e às vezes dando pequenos saltos. Osawa chegava a se agachar nos pianíssimos, enquanto para os ataques fortíssimos reservava um gesto, às vezes com ambas as mãos, que eu apelidei de ‘golpe do machado’. Exemplo de boa regência controlada vi em 1980, tocando em uma master class do maestro Frank Battisti, que aliás já esteve no Brasil, em Tatuí. A demonstração foi dirigida a um jovem que tentava em vão fazer com que os músicos do Wind Ensemble da NEC iniciassem perfeitamente juntos o Pássaro de Fogo, de Stravinsky. Disse-lhe que não precisava tanto da batuta – ali, até olhos e sobrancelhas eram mais importantes. Battisti pegou-lhe a batuta e com um discretíssimo golpe, que eu diria de mestre, iniciou a peça com absoluta precisão. Ah, e além dos regentes econômicos há os franciscanos, de mínimos gestos.

Zukermann, o solista regente
O grande violinista, violista e dublê de regente Pinchas Zukermann, dono de cachês altíssimos, liderava a orquestra de Saint-Paul e costumava solar nos concertos. Bastava um gesto do corpo, um olhar, um movimento de arco. Sério no palco, meio moleque fora dele, não hesitou em tirar seu violino do estojo e tocar em plena rua de Vancouver - com a brincadeira, auferiu uns trocos e degustou um belo frango assado.  

Giuseppe Verdi
Voltando aos primórdios da regência, desde Lully (1632-1687) maestros tornaram-se assunto saboroso na língua áspera dos instrumentistas. Por essas e outras, o grande compositor de óperas italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) costumava referir-se à orquestra, à boca pequena, como la divina canaglia, lembrando a Divina Comédia (séc. XIV) de seu conterrâneo Dante. Episódios reais muitas vezes tendem a se transformar em anedotas, rapidamente incorporadas ao repertório da classe, seja um fato real, com os coloridos de praxe, ou os que talvez nunca existiram e surgem como fato em conversas aqui e ali, sabe-se lá se ‘verdade verdadeira’, a vera veritas. Um conhecido maestro, em um ensaio, reclamou da afinação da terceira trompa. O primeiro do naipe, rindo, disse maestro, a terceira faltou hoje. Diz a lenda que o maestro retrucou dizendo-lhe que então quando o terceiro viesse era para avisá-lo (fazendo troça, mas meio encabulado pela gafe. Pior o remendo do que a sonata).

Bach em família 
Já em tempos distantes, Johann Sebastian Bach não se conformava com murmurinhos crueis, prática comum a nove entre dez músicos de orquestra. E ficava uma onça quando sabia que o assunto eram suas divinas habilidades musicais. Ora, resmungou, eu trabalho como um operário! (A ele se reputa a autoria da frase ‘a música é 10% inspiração e 90% expiração’). Admirável que ele tenha feito tudo o que fez como genial e prolífica formiguinha da música e à parte ainda duas dezenas de filhos, legando-nos numerosa obra musical. E descendentes.

Caymmi: "nas ondas verdes do mar"
Ao contrário de Bach, o genial baiano Dorival Caymmi deixou-nos os talentos de Nana, Dori e Danilo e compôs pouco mais de uma canção por ano de vida. Cantava ‘365 igrejas a Bahia tem’ – se a vida é um dia após o outro, daria para passar um ano inteiro a percorre-las. Webern, nascido em 1873, também foi um compositor para lá de econômico - o conjunto de sua obra não soma três horas de duração, caberia em pouco mais de dois CDs. Morreu em 1945 baleado por um soldado americano, vítima da perseguição a um genro seu procurado por atuar no mercado negro, durante a ocupação aliada da Áustria.

Felix Mendelssohn
Ao revés da produção econômica, retornamos ao prolífico  Bach, autor de algumas obras fartamente caudalosas, como suas duas Paixões: Segundo Mateus e Segundo João. A primeira delas possui nada menos que 78 seções, e em uma das vezes em que toquei houve intervalo para jantar, fazendo daquela tarde-noite um concerto extenuante, mas compensador para o espírito e o estômago. Graças à Paixão Segundo Mateus que Bach, que andava quase esquecido, foi redescoberto por Felix Mendelssohn (1809-1847), que a regeu depois de quase dois séculos. Um crítico, sabe-se lá se por causa do antissemitismo que grassava na época, escreveu, destilando seu veneno mais desaforado, que aquela ‘descoberta’ da longuíssima Paixão de Bach terminou de matar Cristo para lustrar a vaidade de Mendelssohn.