LIVROS

LIVROS
CLIQUE SOBRE UMA DAS IMAGENS ACIMA PARA ADQUIRIR O DICIONÁRIO DIRETAMENTE DA EDITORA. AVALIAÇÃO GOOGLE BOOKS: *****

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

DIZE-ME TEU SOBRENOME E TE DIREI QUEM ÉS

O compositor português Jorge Peixinho, falecido há 20 anos
Há mais de quinze anos, recebi em minha sala na Escola de Música do Teatro Municipal de São Paulo, que eu dirigia, uma pesquisadora de uma universidade norte-americana, Geysa Dourado, sobrenome tal qual o meu. Especialista em genealogia, tinha estudado também a de sua própria família. Não achamos elo de parentesco entre nós, mas descobri como meu sobrenome teria parado no Brasil. Ele havia sido traduzido do hebraico como “peixinho dourado”, referência a algum tipo de peixe da região do Douro. O sobrenome, com o tempo, terminou sendo desmembrado em Peixinho (aliás, importante compositor lusitano falecido em 1995, de prenome Jorge) e Dourado, sendo que o último veio para o Brasil aportando primeiro na Bahia e depois Rio Grande do Sul, terra de meu avô paterno.

Os 'reis católicos', óleo de  Domínio Público
Resolvi revisitar a história universal, a partir de 1492, quando a Constantinopla bizantina caiu nas mãos dos otomanos (turcos), que marcou o começo do término da dominação moura na Península Ibérica (711-1492). Em 1497 assumiram o poder na Espanha e em Portugal os ‘reis católicos’ Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que, ao se casarem, uniram também os dois países em uma só Espanha, governada a quatro mãos de ferro. Com a reconquista da Península, em 1492, os muçulmanos foram expulsos, e o judaísmo proscrito para a imposição total do catolicismo como religião oficial do Reino.

Rotas de fuga dos judeus da Península para a Europa e norte da África
Muitos judeus fugiram para a Europa, instalando-se na Holanda e Itália, entre outros países, e no norte da África. Depois, da Holanda invadiram o Brasil (séc. 17, pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais), e chegaram aos EUA, onde ergueram a Nova Amsterdam, depois renomeada Nova Iorque (Amsterdam, nome de uma cidade dos Países Baixos, e Iorque uma região da Inglaterra).
Fundação de New Amsterdam (New York)


Menorah







Já os judeus que ficaram na Península Ibérica continuavam a realizar seus ritos nos porões, todos com seu ‘menorah’ (candelabro sagrado de 9 velas da cerimônia do Hanukah), textos em hebraico e estrelas de David. Nesses locais, frequentemente, havia no nível da rua igrejas católicas como camuflagem para as práticas religiosas próprias das sinagogas.

Miranda do Douro
Os ‘novos cristãos’ passaram a adotar nomes não judeus, começando com o que tinham de mais próximo: árvores e frutos (Carvalho, Pereira, Figueira), animais (Bezerra, Coelho). Também adotaram sobrenomes das chamadas toponímias (nomes de lugares), referindo-se a terras ou acidentes geográficos: Ribeiro (riacho), Miranda (cidade do mesmo nome, perto do rio Douro), Camargo (os dois últimos sobrenomes geralmente precedidos por ‘de’), da província espanhola de Santander, Cabral (‘lugar onde passam as cabras’) ou Bragança (cidade de Portugal).

Fushi, imperador chinês
Segundo o historiador Moacyr Costa Ferreira, o uso do sobrenome surgiu com o imperador chinês Fushi (2.850 a.C.), que decretou que todos deveriam possuir um nome de família, para melhor identificação. Esses sobrenomes deveriam ser extraídos das 438 palavras do poema Po-Chia-Hsing (“Po chia hsing chien tzû wên...”).

O grande Mario del Monaco, como Sansão, na ópera
Sansão e Dalila, de Camile Saint-Saëns
A Itália foi um dos países mais tardios a adotar sobrenomes: costumavam referir-se às pessoas conforme o lugar de onde vinham, como Leonardo da Vinci, Gasparo da Salò (grande fabricante de violinos que viveu há mais de 500 anos) e Pierluigi da Palestrina, compositor do auge da polifonia (música com duas ou mais linhas melódicas independentes).

Livro dos Números, do Pentateuco
Hoje, na Itália, toponímias já se tornaram sobrenomes regulares, a exemplo de Pepino di Capri (cantor popular romântico) e Mario del Monaco (fabuloso tenor lírico). Entre os hebreus (Livro dos Números, do Pentateuco, de onde vem o Torá, livro sagrado judaico), era comum o nome paterno junto ao prenome do filho: Números, 1:5 - "Estes são, pois, os nomes dos homens que vos assistirão: Rúben Elizur, filho de Sedem; 6 - de Simeão, Selumiel, filho de Zurisadai; 7 - de Judá, Nasom, filho de Aminadabe". (Palavras do Senhor a Moisés, na tenda da revelação, no deserto de Sinai, dois anos depois da saída do povo Hebreu do Egito). 

João Cabral de Melo Neto. Foto: revistabula.com
(No Brasil, nos sertões onde a pobreza mata de fome, na falta de sobrenome e às vezes até na ignorância de quem são os próprios pais, muito se identificam de modo curioso. Conta ‘Morte e Vida Severina’, poema de João Cabral de Melo Neto, que o retirante se apresenta logo ao início, falação que adiante repasso encurtada: “Como então dizer quem fala / ora a vossas Senhorias? / Vejamos, é o Severino da Maria do Zacarias / lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: Se ao menos cinco havia / com nome de Severino / filhos de tantas Marias / mulheres de tantos outros / já finados Zacarias...”


Tortura na Santa Inquisição espanhola. Domínio público
Os sobrenomes adotados pelos ‘novos cristãos’ foram escolhidos pelos judeus sefaraditas (de Sefarad: Península Ibérica, em hebraico), que haviam imigrado para as terras de Portugal e Espanha, região a que se referiam, até por verem semelhanças entre cabeça do animal e o contorno da Península no mapa, como ‘O Leão de Judá’, a terra prometida na Europa ocidental. Fugiram da Santa Inquisição Espanhola (1478 -1834), espalhando-se por países da Europa, norte da África, EUA e, entre os países latinos, principalmente Brasil e México.

Tratado de Tordesilhas, Biblioteca Nacional de Lisboa
Domínio Público
Aqui, aportamos como ‘novos cristãos’ em terra indígena, que em tupi-guarani se dizia Pindorama (lugar das palmeiras) e, com a nossa chegada em 1.500, Vera (verdadeira) Cruz. Com o Tratado de Tordesilhas (1494), portugueses e espanhóis haviam dividido o mapa do mundo com uma risca vertical: da América de Colombo para a esquerda, para os espanhóis, e para os portugueses o lado direito, demarcando para ambas as partes direitos até sobre eventuais futuras descobertas. Hoje, brancos que vieram daqueles judeus e muçulmanos, mesclados com italianos, orientais e outros povos e raças, não vivemos em guerra (ao menos literal) entre nós mesmos, apesar de o mundo ver radicais fundamentalistas usando em vão o nome de suas religiões em constantes conflitos. Por fim, o que nós fizemos com os antigos inquilinos da terra, os índios, daria outro longo, longo capítulo.
Primeira missa em Pindorama

 


 

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

CHARLIE

Um café da antiga Montmartre
“Paris é uma festa”, disse Hemingway. No passado, reunia-se em cafés e bistrôs na Montmartre  ‘la crème de la crème’, a nata dos intelectuais e artistas. Toulouse Lautrec, Stravinsky, Picasso, Dali, Chopin e sua esposa, George Sand (pseudônimo masculino de Aurore Dupin, que se vestia com roupas de homem). Tomavam do melhor cafezinho ao letal absinto (70º Gl). Era a efervescência cultural que surgiu nos ecos do iluminismo e da revolução (1789-1799).

A tomada da Bastilha, óleo de Pierre Roueff
A derrubada do regime monárquico foi conquistada à custa de muito sangue. O território da França (estado declarado apenas em 843), ao longo de milênios, foi palco de dominações, invasões e guerras. Frases do hino (marcha militar, na verdade) ‘A Marselhesa’, composto para a tomada da Bastilha (1789) cantam "a bandeira sangrando erguida" e "o sangue do inimigo há de fertilizar o nosso solo".

O 'topless' em praias francesas
Na França, há muito tempo o ‘topless’ é comum nas praias; lá, surgiram o  biquíni (1946), e o monoquíni (de 1964, EUA), maiô de peça única que deixava os seios à mostra. Como em outros países da Europa, é comum ver homens e mulheres trocarem-se em público na praia.

Dani, "o vermelho", em foto da época
1968 foi o ano de outra (breve) revolução. À frente o líder Daniel Cohn-Bendit  - “Dani, o vermelho” -, os estudantes chegaram ao poder, sob certa complacência do governo diante da expectativa de fracasso, tomando a capital e deixando o ‘poder’ em 24h. (Belo depoimento é o livro ‘Nós que amávamos tanto a revolução’, do mesmo Cohn-Bendit, hoje um político de ideias que contradizem seu passado e às vezes francamente reacionárias).

Capa de edição do Libération
Jornais como o “Libération” (1973), disseminavam ideias revolucionárias, e o país por muito tempo ditou modismos e a moda mundial (com Coco Chanel e Saint-Laurent, entre outros). No cinema de arte, eram ícones os festivais de Cannes e cineastas como Godard e Resnais, movimento renascido no Brasil como ‘Cinema Novo’.

Mais uma vez, corte para outro cenário. Nenhum livro sagrado das grandes religiões monoteístas declara ódio a outras religiões, todos são unânimes na pregação do amor e do culto a Deus. O Antigo Testamento e os Evangelhos, o Corão islâmico e o Torá judaico pregam-nos de forma semelhante. Contudo, certas irmandades terroristas islâmicas e setores radicais de Israel preparam ‘espaçonaves, guerrilhas’ (obrigado, Caetano!) e ataques contra os que divergem de suas ideias e seu poder. Mas o ódio não está nos livros sagrados nem nos diversos povos, está nos fanáticos do fundamentalismo radical, que leva terroristas a se suicidarem para massacrar inocentes.

Prof. Dr. Osvaldo Coggiola, em palestra na USP
O historiador Osvaldo Coggiola, titular de história da USP, publicou um pequeno livro que traça a história de vários conflitos e remete à origem maior de quase todas as guerras desde o início do século 20: o petróleo, fonte esgotável de energia que tudo indica será relevada a segundo plano em algumas décadas. Disse o Marx pensador: quem detém o poder econômico detém o poder político. E fontes alternativas de energia alterarão essa configuração.


[Nenhum livro sagrado prega o ódio e o terror. Bem escreveu Machado de Assis, no capítulo ‘A Ópera’, de Dom Casmurro: “Deus compôs a partitura, mas quem rege é o diabo”. Cada vez mais radical, o terror executa sua ópera de massacres e crueldade.]




Capa de edição do Charlie: versão 'light'
Novo corte: em cena uma publicação libertária, o semanário Charlie Hebdô (criado em 1970, com o apoio de Sartre), com excelentes cartunistas, como Wolinski e Gebé, de fama mundial. Caricaturas atiçaram ataques de grupos terroristas islâmicos (o primeiro, uma bomba incendiária sem vítimas, em 2011), levando-os a cometer o que esses radicais consideram sacrilégios contra Maomé, que na visão deles é mais do que Deus, é um ídolo intolerante e impiedoso.

O Papa, também em versão 'light'
E assim também Charlie fez troça do judaísmo e do catolicismo e seus líderes, entre outros. Terroristas atiçados acenderam seus pavios, e recentemente assassinaram 12 artistas em um atentado à sede do Charlie - e de quebra um ataque a um mercado judeu, espalhando mais uma vez medo e terror pelo mundo. (Interessante é lembrar que o Charlie surgiu de outro periódico do gênero, Hara-Kiri, fechado após pilhérias sobre a morte de outro Charles, o De Gaulle. É que na França pode-se tudo, menos fazer troça de seus heróis!)

Nossa Constituição assegura, em seu artigo 5º, o respeito aos direitos e garantias individuais. Ali se dispõe que é livre “a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e garante a “indenização por dano material, moral ou à imagem”. A liberdade de expressão e manifestação não ampara ofensas e humilhações.


A Constituição assegura a livre manifestação artística, resguardados os direitos individuais, caminho que vem sendo construído lentamente, engatinhando rumo ao seu fiel cumprimento. O respeito a diferentes raças e credos é indissociável do Estado Democrático. A ladainha repetida nas redes sociais de que “caneta (cartum) não mata” serve para “épater la bourgeoisie” (chocar a burguesia). Mas a caneta fere, sim, de humilhação, danos pessoais, profissionais e à família, e até mata por depressão.

"Eu tive um sonhio": Martin Luther King, J. 
A ‘caneta’ é tão poderosa que assinou todos os documentos históricos, desde os principais discursos, como o  “Gettysburg Address”, de Lincoln, e “Eu tive um Sonho”, de Luther King, declarações de guerra, independência e condenações à morte. Ela assinou a histórica  carta testamento de Getúlio e um patrimônio da humanidade, o testamento de Heiligenstadt, de Beethoven.


O grande maestro judeu Daniel Barenboim (esq.) e o Palestino Edward Said,
criadores da East-Western Divan Orchestra, formada por jovens palestinos e judeus
Sou pelo caminho da paz, apoio Israel e a criação do Estado Palestino, assim como o Islamismo, o Judaísmo e todas as religiões surgidas no amor e na paz; recrimino a pena de morte e todo tipo de terrorismo. E não me rendo ao modismo que vê charme na liberdade espalhafatosa que a França permite. Ofensas até pornográficas a religiões violam direitos humanos (de cuja declaração universal a França foi um dos principais idealizadores) e colocam em risco a paz mundial. Por fim, o ódio e toda organização fundamentalista de terror devem ser combatidos até o fim. Amo os franceses, "mais Je ne suis pas Charlie”.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

ADEUS, JEAN GERALD. O HAITI NÃO ERA AQUI

“O Haiti é aqui”, frase de uma música do Caetano Veloso, serviu de título para um artigo que escrevi há uns anos sobre esse jovem haitiano. Refiz dois parágrafos para revisitar sua história, ainda cheia de mistérios para todos. Pois vamos a ela: foi por intermédio do oboísta Alex Klein, durante 20 anos solista da Sinfônica de Chicago, que vim a saber do Jean Gerald. Com 24 anos de idade, resolveu certo dia cabular aulas de música na Holy Trinity School de Porto Príncipe, capital do Haiti. Pois foi exatamente naquele dia que Jean perdeu na escola ali cinco amigos, vitimados pelo absurdo terremoto de 7 pontos na escala Richter que devastou o país. (Segunda-feira passada, 12 de janeiro, o terremoto completou 5 anos!). A casa da família milagrosamente resistiu, mas seus amigos de fora ficaram sem saber, durante semanas, se ele teria sido morto na tragédia, por falta de comunicação.

Foto: megaarquivo.com. Janeiro de 2010
Eu o conhecia apenas por uma gravação. Mas foi com felicidade que pudemos receber o jovem oboísta, e ver pessoas daqui e dos EUA ajudando-o a superar aqueles momentos indizíveis, cruéis. Sim, a tragédia que vimos em cores na TV existiu mesmo, não foi ‘thriller’ de horror: cortou fundo como navalha, queimou com ferro em brasa milhares de inocentes, esmagou idosos, crianças e jovens, ceifou talentos, amores e profissões.

Foto: Letícia Moreira, Folhapress
Cumprida a etapa da aprovação no teste de admissão no Conservatório, passamos à busca do visto de estudante, condição para seu ingresso. Na Polícia Federal, seguindo as instruções que uma moça gentil havia nos dado ao telefone: bastaria ir lá, uma vez entregue a documentação, para sair com o visto tão desejado. Mas não. Jean teria de ir ao seu país de origem para pedir o visto! – liguei para um agente: mas qual embaixada? (“cara pálida”, quase completei, lembrando a velha piada). Ela está no chão! A nossa era um entulho disforme de tijolos e pedras!

Relatório da Assistência Social do Conservatório
Pois Jean logrou obter o visto, obteve lugar no alojamento, eu comprei o ‘enxoval’ de quarto, com toalhas, edredon, roupa de cama, artigos de higiene, outros deram ajuda em dinheiro. Fez jus a receber uma bolsa-auxílio (R$ 415,00, ver relatório acima), e em pouco tempo, talentoso músico, ingressou na Banda Sinfônica e após na Orquestra Sinfônica, passou a receber uma bolsa-performance (R$ 1.000,00) e foi indicado por professores para usar um dos instrumentos doados por um acordo de delação por sentença da Justiça Federal. O despacho exigia do aluno nunca ser reprovado, e que a propriedade (ele tinha apenas uma posse precária do oboé) se daria com a conclusão do curso. Jean foi matéria na imprensa, era muito dedicado e tinha um futuro brilhante pela frente. E deixou de lado seu velho oboé com rachadura e defeitos para receber um instrumento que valia o preço de um carro popular.

Mas algo aconteceu nesse caminho. Jean estava confuso, alheio, muito devido ao seu retorno à tradição de sua família, cristã, e os ritos haitianos, sincretismo que não se sabe exatamente quando começava um e quando terminava outro. Na verdade, era uma espécie de mesclagem, um ‘medley’ religioso. Houve ajuda de nossa assistente social Lucilene Pedrina, encaminhamento a auxílio profissional e muita preocupação nossa, apesar de Jean ser avesso a drogas, não beber ou sequer fumar.

Passaporte cancelado
Em resumo, precisava ser tratado por especialista. Perambulava pelas ruas, e quando reapareceu um dia mostrou-me que seu visto brasileiro estava vencido. Missão impossível, mexi até com o Ministério das Relações Exteriores, na busca insana por uma chance; porém, onde estaria Jean? Ele foi visto dormindo no metrô Barra Funda em SP, mas desapareceu e meus esforços legais e políticos chegaram ao limite de minhas possibilidades. Tivemos de lavrar dois boletins de ocorrência no Distrito Policial: o Dr. Ivan Rodrigues registrou o desaparecimento do jovem e do instrumento, pois eu também deveria, fiel depositário do oboé sob responsabilidade via sentença, documentar e relatar a perda à Justiça Federal. (Veja abaixo a reportagem da TVTEM/Globo da época, relatando o desaparecimento e pedindo ajuda a quem o visse. Você deve copiar o endereço inteiro do link abaixo e colá-lo em seu navegador).

http://globotv.globo.com/tv-tem-interior-sp/tem-noticias-2a-edicao-itapetiningaregiao/v/estudante-haitiano-do-conservatorio-de-tatui-sp-esta-desaparecido-ha-uma-semana/2140370/

Caribe: Cuba (esquerda, no alto), Haiti, a capital Porto Príncipe,
e a fronteira com a República Dominicana, à direita. Imagem: Wikipédia
Tempos se passaram, e um pai de aluno achou na internet vídeo de Jean Gerald em Vilhena, Rondônia, uma das portas de entrada e saída de haitianos via Acre. (Veja e ouça o vídeo no final deste texto). Bem mais magro, Jean tocava oboé, e com essa pista tratamos de procura-lo. Sem visto brasileiro, se pego por alguma autoridade poderia ser preso e deportado. Pois foi via redes sociais que refizemos o contato com Jean. Depois, ele passou a assumir outra identidade na rede, um ícone no lugar da foto, e respondia por um apelido nativo (dialeto ‘créole’). O tempo passou, e um anjo da guarda, o francês Pierre Picard (hoje na Noruega), que então trabalhava no atelier de luteria de Paulo Gomes, em São Paulo, conseguiu trazer Jean de volta. Assim, foi feita a baixa na ocorrência de ‘desaparecido’, assim como na do oboé. Porém, Jean estava transtornado e decidido a retornar ao seu país, não suportava mais estar longe dos pais e de suas raízes. Teve um belo instrumento, uma carreira pela frente, bolsa de estudos, um quarto para si, tempo para estudar... tudo isso perdera sentido. Foi em busca do que queria, e, via Acre e rotas conhecidas, chegou à República Dominicana, que divide a ilha caribenha com seu país. Ficamos aliviados ao saber que ele havia chegado vivo vivo no Haiti.


Haiti: voluntária do 'Médicos sem Fronteiras"
Mas o destino foi outra vez cruel com Jean: seu anjo da guarda Pierre Picard recebeu um e-mail de uma amiga norte-americana, Janet, que traduzo a seguir: “Eu escrevo com a notícia muito triste de que Jean Gerald faleceu por ferimentos sofridos em um incêndio. Os detalhes são muito obscuros mas, ao que tudo indica, ele sofreu fortíssimas queimaduras em seu quarto (na casa de Jeoboahm?). Foi levado a um médico, mas não havia ‘hospital sem fronteiras’ (N. do A.: organização humanitária, ver foto acima) e morreu ontem à tarde. Tão triste. Saudações, Janet. 27 de novembro de 2014”. 


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

OS OPERAMANÍACOS ESTÃO CHEGANDO

Maestro Galindo, eu, Angelica e sua mamãe. O pai, Fernando, operófilo
A Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí encerrou a temporada de 2014 no dia 19 de dezembro, na Igreja da Matriz, com a apresentação da excelente soprano Angelica de la Riva, já conhecida do público da região e do país, tendo como regente o nosso competente maestro João Maurício Galindo. Foi uma performance variada e aplaudidíssima, que terminou com Stille Nacht, do austríaco Franz Gruber (1787-1863), com direito à última parte cantada em português: Noite Feliz. Ao final, fui ao corredor lateral para cumprimentar solista e maestro pelo belo presente de Natal, aberto ao público que quisesse ouvir a soprano. Ali mesmo, posamos para fotos ao lado do Sr. e Srª Fernando de la Riva, pais de Angelica, e retomei a conversa já começada antes da apresentação com ‘papá’ de la Riva, que não se cansava, claro, de tecer orgulhosos comentários sobre as performances da filha e as histórias dela no Lincoln Center e Carnegie Hall.

(Aliás, um único minuto filmado precariamente com meu celular, o último trecho de Stille Nacht em alemão, encerrando com “Noite Feliz”, em português, foi reproduzido como ‘meme’ mais de duas mil vezes e compartilhado nas redes sociais tantas outras vezes: foi oferecido por muitos como presente de Natal e até de Ano Novo!). [Veja e ouça abaixo]



A divina Maria Callas
Continuei a conversa com o Sr. de la Riva sobre ópera, Callas, sopranos spinto e coloratura, Metropolitan Opera House, La Scala e por aí vai. Foi então que o maestro João Maurício disse: esses aficionados por ópera são terríveis: entendem muito mais do que nós, músicos! Pura verdade. Eles passaram boa parte da vida cantarolando junto com os bolachões 78 rpm, vinis e agora CDs, colecionaram todos os discos da Maria Callas, Renata Tebaldi, Placido Domingo. São capazes de pagar alto por algum exemplar raro, e, se podem dispor desse luxo, vão à Europa ou aos EUA para assistir a récitas líricas nos melhores auditórios.

Amazonas Filarmônica (foto: divulgação SEC)
No Brasil, uma temporada oficial de 8, 10 títulos já é muito boa - exceção feita à Ópera da Amazonas Filarmônica, dirigida pelo competente e também aficionado maestro Luiz Fernando Malheiro, que transformou Manaus em um grande centro de óperas no país. Ele também atua em uma Organização Social nossa co-irmã, o Teatro São Pedro, onde, devido às dimensões um pouco reduzidas da casa, apresenta títulos compatíveis com as condições, geralmente óperas mais simples e de menor duração.

Armando Belardi
Mas nosso país foi bem diferente no passado: em 1941, era regente titular do Theatro Municipal de São Paulo o maestro Armando Belardi, e, conforme um programa da temporada daquele ano, foram executados nada menos do que 21 títulos diferentes de óperas – se bem que em sua maioria nada de grande complexidade -, o que a 3 ou 4 récitas por cada título, podemos pensar em mais de 70 apresentações, com casa lotada, claro, pois a tradição do canto lírico já era cultuada em São Paulo bem antes da construção do Theatro Municipal.  

Mesa de recepção: Opera Club do Metropolitan Opera de NY
Na Europa e nos EUA, há clubes desses operamaníacos e sei que em um deles, em NY, dão-se ao luxo de casar apostas sobre a mesa e logo depois alguém colocar um LP no toca-discos, para ver quem adivinharia primeiro quem seria a ‘diva’ (deusa, na mitologia grega, palavra com que os amantes da ópera se referem às grandes estrelas do belcanto). Em poucos segundos, um deles já batia com a mão na mesa após as primeiras notas e cravava certo o nome da cantora - às vezes, até o disco e o ano da gravação. Com direito a embolsar os dólares apostados. 

Padaria Amarante. Foto: José Ricardo Alves
Há coisa de uns 15 anos, em São Paulo, fiz dois amigos nos cafés da manhã de domingo. Começávamos geralmente na padaria Amarante, na Vila Mariana, e às vezes terminávamos com um almoço com vinho no Brazeiro, ali bem perto. Chamavam-se Serjão (só o conheci pelo apelido), já passado dos 70 e aposentado da Assembleia Legislativa, e Luís Oricchio, já perto dos 80. Eram meus grandes amigos de conversas sobre ópera e política, e com eles aprendi sobre as temporadas de ouro – 1950 e 1951 – do Municipal de São Paulo e as grandes estrelas de todos os tempos: Callas, Tebaldi, Del Monaco, Gigli e Caruso, sobre quem discorriam entusiasmadamente com a mesma facilidade com que torcedores falam sobre os grandes jogadores de futebol. Discutiam as melhores performances de ‘Turandot’, ‘Norma’, ‘Tristão e Isolda’, ‘Carmen’ e ‘Traviata’. Vida passada entre estudos e sinfônicas, longe dessa cultura de passar os dias a ouvir ópera após ópera, eu ouvia mais do que falava, e ia aprendendo.

Trabalhadores da construção do Theatro Municipal de SP (Acervo Municipal) 
Descobri que Oricchio teve um namorico adolescente com a filha do zelador do Municipal de SP (depois professora de piano), que havia sido o mestre de obras da construção no início do século 20, e com esse amigo o assunto foi ópera até seus últimos dias. Na casa dele, já bem enfraquecido por um câncer terminal, pele e osso, os braços magros deixavam pendurado o relógio que tanto adorava: a doença ia levando sua vida, a corrente de ouro já com bastante folga, mas a memória firme. A esposa aproveitava para fazer compras, e ficávamos papeando sobre música, ouvindo alguma coisa e conversando: ele e eu, aprendiz do mundo da ópera. Cheguei a gravar com ele algumas conversas que poderiam servir-me de material para um projeto que pretendia escrever.

Núcleo de Ópera do Conservatório de Tatuí (Foto: Kazuo Watanabe) 
Há em Tatuí ao menos um dos sérios cultores do gênero, o advogado Lincoln, que aliás estava presente na Igreja da Matriz. Porém, nunca levamos adiante essas conversas. Eles existem em toda parte, os operófilos. E com o crescimento do número de apresentações operísticas, contribuições como as do Conservatório - no mínimo dois títulos anuais -, é natural que ressurjam também, os aficionados, e que eles proliferem. Pois basta alguém assistir a uma bela ópera para que nasça mais um fã do gênero. É o que Richard Wagner (1813-1883) chamava "Obra de arte total". Caro leigo, músico ou estudante, ao se encontrar com um operamaníaco você vai estar falando com quem entende do riscado. Aproveite.


sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

CONSERVATÓRIO DE TATUÍ: LEI VOTADA EM 19/12/14 REVALIDA A LEI DE FUNDAÇÃO

Legem Habemus !

Site da Jucesp
Imagine que você é contratado por uma empresa, devidamente registrada na Junta Comercial. Claro, Há um nome real e você dirige uma firma que vai geri-la. Mas, que susto, leitor: por ironia do acaso, você descobre que algum ato legal havia declarado impedida a empresa mais de dois anos antes, e a firma que a dirige continua a carregar o nome original mesmo a partir da revogação da razão social. É com esse nome, mesmo revogado, que a firma contratada assumirá os riscos até que você consiga regularizar a situação perante a Jucesp, retornando o nome original e seus efeitos à legalidade plena.

Ilustração: Alegoria (Mito) da Caverna, de Platão
Essa alegoria (ficção que ajuda a criar ou compreender uma ideia ou fato real) serve para explicar os acontecimentos: era, se não muito me engano, o ano de 2009, e tive que encaminhar, como faço com relativa frequência, documentação para que os alunos estrangeiros do Conservatório de Tatuí pudessem regularizar seus vistos. Exige-se a comprovação da existência legal da escola, no caso uma fotocópia da lei que criou a instituição. As cópias estavam quase ilegíveis, mas a solução parecia bastante simples: no site da Assembleia eu poderia encontrar um texto 100% claro, e logo o achei, no original! Mas espere aí, que susto! Em letras vermelhas, uma palavra me fez tremer: REVOGADA. Não podia ser. Achei a lei 12.497/2006, que teria extinguido a de criação do Conservatório, e pasmei: tinham sido revogadas ao todo mais de 13 mil leis!

Alesp: foto Blog Siesp
O leitor vai me perguntar o porquê de o Conservatório não ter simplesmente parado durante esses anos. Pois desde 2006, mais de dois anos antes de eu assumir, a AACT (Organização Social) dirige todas as atividades por meio de um Contrato de Gestão celebrado com o executivo estadual. No caso da lei revogatória, resolvi agir. Polêmicas não ajudariam, precisava de resultados dentro do tempo possível. No final de 2010, o então prefeito Luiz Gonzaga intermediou meu contato com o deputado Samuel Moreira, que, em 2011, apresentou o Projeto de Lei 654, o qual propunha anular a exclusão do Conservatório da tal “faxina”. Samuel propôs que essa correção tivesse o fundamental efeito retroativo à data da revogação (2006) da lei que criou a instituição. Continuei acompanhando a tramitação via Internet, telefonemas e e-mails. Demorou um pouco, mas finalmente o deputado Fernando Capez, relator da Comissão de Constituição e Justiça, optou pela legalidade, no que foi seguido na íntegra pelos demais membros. Depois, a parte mais difícil: colocar o Projeto em pauta para as devidas votações em plenário, entre incontáveis outros PL na fila. Mas o destino fez Samuel Moreira ser escolhido Presidente da Alesp para o biênio 2012/2014.

Eram 13 mil leis consideradas obsoletas, inúteis e “que não serviam mais aos cidadãos”, segundo o proponente da “faxina”. Questionada pela imprensa, a assessoria do então deputado estadual Vaccarezza (depois deputado federal, hoje não reeleito), justificou dizendo que “a norma jurídica que cria uma instituição, ao ser cumprida (...) ser revogada sem que cause qualquer prejuízo” (sic). Pergunto: uma lei, mesmo extinta, produz efeitos? Ora, ao invés ajudar a corrigir o grave deslize, tentou justifica-lo com uma emenda pior do que o soneto, como se diz.

Ao Houaiss: “Lei: regra, prescrição escrita que emana da autoridade soberana e impõe a todos os indivíduos a obrigação de submeter-se a ela sob pena de sanções”.  A lei é o que assegura a organização de toda a sociedade. Não há instituição oficial sem lei, o Conservatório não teria sido criado sem lei. "Ninguém pode alegar ignorância da lei". "Não há crime sem lei que o defina" (Art. 1º, Cód. Penal), "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (Art. 5º, II, Const. Federal) e por aí vai, indefinidamente. No preâmbulo da lei 997/1951, lê-se: “Fica criado na cidade de Tatuí (grifo) um conservatório musical...”. Temos de pensar nos próximos anos e décadas, e não apenas na conjuntura atual, favorável. Até a garantia de que a verba seria destinada à escola criada na cidade poderia ser perigosamente fragilizada em um futuro incerto.


Capa da Veja, 1993
No Brasil, tudo é possível. No final dos anos 1970, Eleazar de Carvalho havia implantado na Paraíba uma orquestra sinfônica de altíssimo nível. Nos festivais, como professores vinham astros como Gingold e Parisot. E o mecenas disso tudo era o governador Tarcísio Burity, aficcionado pela música clássica. Seu sucessor, Ronaldo Cunha Lima, detestava. Tanto que, ao tomar posse, perguntado por uma importante revista nacional, afirmou: "meu negócio não é sinfônica, é sanfônica". Cunha Lima adentrou o restaurante Gulliver, em 1993, e desatou a atirar em Burity, seu desafeto. A orquestra definhou.

Como se deu tamanho equívoco? Faltou um cuidado essencial: incluir a ementa (um brevíssimo resumo sobre o conteúdo da Lei) de cada item ao texto apresentado, nada menos que 13 mil leis. Pois a proposta de Vaccarezza foi aprovada da seguinte forma: “DCCCXXIII – Lei nº 997, de 13 de abril de 1951” (veja cópia de trecho da lei, acima). E assim foi com as mais de 13 mil listadas em seu Projeto de Lei. Independentemente do enorme volume de leis revogadas, haveria que se incluir uma a uma as ementas de todas elas, que encabeçam todas as leis. Ora, vejamos: “Lei nº 997 (...) - Cria um Conservatório Musical na Cidade de Tatuí”. Isso bastaria para qualquer um arregalar os olhos e evitar o perigo que surgiu em virtude do oceano de números de leis dispostas em anonimato. Ressalto que esta crítica é técnica, visível aos olhos do leigo e compreensível, não há conotação partidária.

Dia 19 de dezembro, às 23h38, comemorando uma homenagem recebida em São Paulo, recebi mensagem do Luiz Gonzaga: “Lei do Conservatório aprovada”. Bastou para um viva! Ao ‘apagar das luzes’ do ano legislativo, difícil crer, terminava uma longa batalha, em pleno final de 2014, marcando com fecho de ouro os 60 anos do Conservatório. Uma placa de homenagem deverá ser colocada ao lado da original (que merecerá uma reforma), feita em homenagem ao deputado Narciso Pieroni, autor da lei de criação do Conservatório, e a ideia é que ambas fiquem perfiladas e bem visíveis, ao lado da que deu o nome de Mário Covas ao saguão do Teatro Procópio Ferreira. Salve o Conservatório, para sempre!
Teatro Procópio Ferreira