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sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

ADEUS, JEAN GERALD. O HAITI NÃO ERA AQUI

“O Haiti é aqui”, frase de uma música do Caetano Veloso, serviu de título para um artigo que escrevi há uns anos sobre esse jovem haitiano. Refiz dois parágrafos para revisitar sua história, ainda cheia de mistérios para todos. Pois vamos a ela: foi por intermédio do oboísta Alex Klein, durante 20 anos solista da Sinfônica de Chicago, que vim a saber do Jean Gerald. Com 24 anos de idade, resolveu certo dia cabular aulas de música na Holy Trinity School de Porto Príncipe, capital do Haiti. Pois foi exatamente naquele dia que Jean perdeu na escola ali cinco amigos, vitimados pelo absurdo terremoto de 7 pontos na escala Richter que devastou o país. (Segunda-feira passada, 12 de janeiro, o terremoto completou 5 anos!). A casa da família milagrosamente resistiu, mas seus amigos de fora ficaram sem saber, durante semanas, se ele teria sido morto na tragédia, por falta de comunicação.

Foto: megaarquivo.com. Janeiro de 2010
Eu o conhecia apenas por uma gravação. Mas foi com felicidade que pudemos receber o jovem oboísta, e ver pessoas daqui e dos EUA ajudando-o a superar aqueles momentos indizíveis, cruéis. Sim, a tragédia que vimos em cores na TV existiu mesmo, não foi ‘thriller’ de horror: cortou fundo como navalha, queimou com ferro em brasa milhares de inocentes, esmagou idosos, crianças e jovens, ceifou talentos, amores e profissões.

Foto: Letícia Moreira, Folhapress
Cumprida a etapa da aprovação no teste de admissão no Conservatório, passamos à busca do visto de estudante, condição para seu ingresso. Na Polícia Federal, seguindo as instruções que uma moça gentil havia nos dado ao telefone: bastaria ir lá, uma vez entregue a documentação, para sair com o visto tão desejado. Mas não. Jean teria de ir ao seu país de origem para pedir o visto! – liguei para um agente: mas qual embaixada? (“cara pálida”, quase completei, lembrando a velha piada). Ela está no chão! A nossa era um entulho disforme de tijolos e pedras!

Relatório da Assistência Social do Conservatório
Pois Jean logrou obter o visto, obteve lugar no alojamento, eu comprei o ‘enxoval’ de quarto, com toalhas, edredon, roupa de cama, artigos de higiene, outros deram ajuda em dinheiro. Fez jus a receber uma bolsa-auxílio (R$ 415,00, ver relatório acima), e em pouco tempo, talentoso músico, ingressou na Banda Sinfônica e após na Orquestra Sinfônica, passou a receber uma bolsa-performance (R$ 1.000,00) e foi indicado por professores para usar um dos instrumentos doados por um acordo de delação por sentença da Justiça Federal. O despacho exigia do aluno nunca ser reprovado, e que a propriedade (ele tinha apenas uma posse precária do oboé) se daria com a conclusão do curso. Jean foi matéria na imprensa, era muito dedicado e tinha um futuro brilhante pela frente. E deixou de lado seu velho oboé com rachadura e defeitos para receber um instrumento que valia o preço de um carro popular.

Mas algo aconteceu nesse caminho. Jean estava confuso, alheio, muito devido ao seu retorno à tradição de sua família, cristã, e os ritos haitianos, sincretismo que não se sabe exatamente quando começava um e quando terminava outro. Na verdade, era uma espécie de mesclagem, um ‘medley’ religioso. Houve ajuda de nossa assistente social Lucilene Pedrina, encaminhamento a auxílio profissional e muita preocupação nossa, apesar de Jean ser avesso a drogas, não beber ou sequer fumar.

Passaporte cancelado
Em resumo, precisava ser tratado por especialista. Perambulava pelas ruas, e quando reapareceu um dia mostrou-me que seu visto brasileiro estava vencido. Missão impossível, mexi até com o Ministério das Relações Exteriores, na busca insana por uma chance; porém, onde estaria Jean? Ele foi visto dormindo no metrô Barra Funda em SP, mas desapareceu e meus esforços legais e políticos chegaram ao limite de minhas possibilidades. Tivemos de lavrar dois boletins de ocorrência no Distrito Policial: o Dr. Ivan Rodrigues registrou o desaparecimento do jovem e do instrumento, pois eu também deveria, fiel depositário do oboé sob responsabilidade via sentença, documentar e relatar a perda à Justiça Federal. (Veja abaixo a reportagem da TVTEM/Globo da época, relatando o desaparecimento e pedindo ajuda a quem o visse. Você deve copiar o endereço inteiro do link abaixo e colá-lo em seu navegador).

http://globotv.globo.com/tv-tem-interior-sp/tem-noticias-2a-edicao-itapetiningaregiao/v/estudante-haitiano-do-conservatorio-de-tatui-sp-esta-desaparecido-ha-uma-semana/2140370/

Caribe: Cuba (esquerda, no alto), Haiti, a capital Porto Príncipe,
e a fronteira com a República Dominicana, à direita. Imagem: Wikipédia
Tempos se passaram, e um pai de aluno achou na internet vídeo de Jean Gerald em Vilhena, Rondônia, uma das portas de entrada e saída de haitianos via Acre. (Veja e ouça o vídeo no final deste texto). Bem mais magro, Jean tocava oboé, e com essa pista tratamos de procura-lo. Sem visto brasileiro, se pego por alguma autoridade poderia ser preso e deportado. Pois foi via redes sociais que refizemos o contato com Jean. Depois, ele passou a assumir outra identidade na rede, um ícone no lugar da foto, e respondia por um apelido nativo (dialeto ‘créole’). O tempo passou, e um anjo da guarda, o francês Pierre Picard (hoje na Noruega), que então trabalhava no atelier de luteria de Paulo Gomes, em São Paulo, conseguiu trazer Jean de volta. Assim, foi feita a baixa na ocorrência de ‘desaparecido’, assim como na do oboé. Porém, Jean estava transtornado e decidido a retornar ao seu país, não suportava mais estar longe dos pais e de suas raízes. Teve um belo instrumento, uma carreira pela frente, bolsa de estudos, um quarto para si, tempo para estudar... tudo isso perdera sentido. Foi em busca do que queria, e, via Acre e rotas conhecidas, chegou à República Dominicana, que divide a ilha caribenha com seu país. Ficamos aliviados ao saber que ele havia chegado vivo vivo no Haiti.


Haiti: voluntária do 'Médicos sem Fronteiras"
Mas o destino foi outra vez cruel com Jean: seu anjo da guarda Pierre Picard recebeu um e-mail de uma amiga norte-americana, Janet, que traduzo a seguir: “Eu escrevo com a notícia muito triste de que Jean Gerald faleceu por ferimentos sofridos em um incêndio. Os detalhes são muito obscuros mas, ao que tudo indica, ele sofreu fortíssimas queimaduras em seu quarto (na casa de Jeoboahm?). Foi levado a um médico, mas não havia ‘hospital sem fronteiras’ (N. do A.: organização humanitária, ver foto acima) e morreu ontem à tarde. Tão triste. Saudações, Janet. 27 de novembro de 2014”. 


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