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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

NIRVANA: PARAÍSO OU INFERNO?

 Do sânscrito ‘nirvã a’, nirvana é um conceito presente em várias religiões e filosofias, e em diversas línguas, como o pali, o bengali, o chinês, o japonês e outros. O significado da palavra é amplo, mas gira sempre em torno de salvação, liberação. Presente no budismo e nas religiões indianas, é o estado de libertação do ciclo humano: nascimento, vida e morte (reencarnação). Seria um estado imperturbável da mente, isolada de desejos e ódios: um estágio de contemplação descrito até na Bíblia Sagrada, conforme veremos adiante.

O estado contemplativo é velho conhecido dos antigos monges da Igreja Católica, como bem descrevem os exercícios espirituais de um anônimo monge beneditino inglês do século 14, em escritos dirigidos a iniciados: ‘The Cloud of Unknowing’, ou ‘A nuvem do desconhecimento’ (publicado em português como ‘A nuvem do não saber’). O autor cita textualmente o conhecido trecho do Evangelho segundo Lucas, 10, 38-40, em que Cristo se refere ao estado contemplativo de Maria, em contraste com a representação da vida terrena, na pessoa de Marta (“Maria escolheu a parte certa" disse Ele). A mãe de Cristo estava, segundo o evangelista, em estado contemplativo, desligada espiritualmente dos laços terrenos, sob a ausência de pensamentos.

Muito antes disso, o 24° capítulo do Êxodo descreve Moisés recebendo um chamado divino, para que galgasse o caminho ao topo de uma montanha, onde foi encoberto por uma densa nuvem -  a do desconhecimento -, e ali ficou por ela envolto por seis dias, em estado de absoluta contemplação. Em 398 d.C., em suas confissões, Santo Agostinho também menciona a ‘nuvem’.

Mahatma Gandhi
O brahman-nirvana é o encontro da liberação do ego humano com o deus supremo da existência, Brahman, em diversas passagens do Baghavad Gita que citam os ensinamentos de Krishna. O grande líder Mahatma Ghandi (1869-1948), exemplo de uma das maiores espiritualidades que conhecemos, foi o fundador do estado moderno da Índia e defensor do Satyagraha, a revolução pela não-violência. Ele aponta diferenças de conceitos do nirvana entre religiões hinduístas:  para os budistas, seria o vazio (‘shunyata’), enquanto no Baghavad Gita ele representa a paz divina, sendo por isso chamado brahman-nirvana.

Estátua de Shiva
No Brahman-Kumaris, o nirvana seria o estado mais alto de três universos, onde fica a alma suprema, chamada Shiva. O termo nirvana vem de uma junção de três fonemas sânscritos (‘ni’, distante, sem; ‘va’, um sopro como o do vento, o exalar de um perfume; e ‘na’ carrega um sentido de negativa: nunca, não, nada).

Kurt Cobain: Nirvana
Em 1987, formou-se em Aberdeen, estado de Washington, EUA, uma banda de rock, chamada Nirvana, liderada pelo cantor e guitarrista Kurt Cobain e o baixista Krist Novoselic. Tornou-se um dos mais importantes grupos de sua geração, arrebanhando fãs e admiradores em todo o mundo, um ícone como Guevara. O primeiro disco, ‘Smells like teen spirit’ (‘Cheira a espírito adolescente’), fez algum sucesso. Mas logo depois, ‘Nevermind’ (‘não importa’), de 1991, popularizou de vez a banda como ‘porta-voz de uma geração’, até a tragédia: em 1994, aos 27 anos de idade, Cobain matou-se com um tiro na cabeça e uma grande quantidade de drogas no sangue. (Veja abaixo a animação sobre depoimento de Kurt Cobain, colaboração do amigo Felipe Cherubin)

Ainda existem especulações quanto a esse fim, que comoveu milhões de seguidores de Cobain pelo mundo inteiro. A mãe dele, também compondo o retrato da tragédia, carregava as cinzas do filho quando escorregou com a pequena urna, no aeroporto de Heatrow, em Londres, esparramando parte do conteúdo para dentro do respiradouro da calefação. Cobain havia interpretado à sua maneira alucinada a filosofia do nirvana: ‘libertação da dor, do sofrimento e do mundo exterior’.

Em depoimentos, Cobain falou de seu relacionamento com a mulher, Cortney Love, também musicista, regado a um consumo sem limites de drogas de todos os tipos, do LSD aos opiáceos, indo além dos limites ao beber solvente (álcool destilado de madeira, capaz de matar com a ingestão de simples 30 mL), que atacava seu estômago de tal forma que chegou a se dopar com heroína por três dias seguidos, sem dormir, para suportar a dor. Sucediam-se crises de depressão, ideias mórbidas e de suicídio.

Courtney Love
Não faltaram tentativas para ele e Courtney Love procurarem ajuda, após saberem que seriam pais de uma criança. Em vão. As apresentações em que se acidentava (ou se automutilava?) eram aterrorizantes, mas, sem sentir dor, gritava, para o delírio da plateia ensandecida pelo espetáculo selvagem: “eu sou um circo humano!”

Capa do LP Aneurysm
Apesar das crises de depressão, excesso de drogas e um histórico familiar de problemas mentais, depressão e suicídios, Kurt Cobain tornou-se ídolo de uma juventude que desconhecia o real significado da palavra nirvana e o inferno pessoal de seu astro. Títulos das músicas, como ‘Aneurysm’ (doença vascular cerebral), ‘Lithium’ (remédio para depressão bipolar) e seus poemas eram odes de caráter mórbido e deprimente: “estupre-me, estupre-me, amigo, estupre-me novamente”. “Minha inspiração interna favorita / eu vou beijar suas feridas abertas / agradeço sua preocupação / você vai feder e queimar” (em ‘Rape me’). Do punk ao punk-rock e de lá ao grunge de Seattle, Cobain deixou uma discografia historicamente importante para o rock. Porém, como ser humano e ‘pensador’ (sic), foi um lixo desqualificado e prestou um enorme desserviço a pelo menos duas gerações hipnotizadas.


Foto da perícia do local da morte de Kurt Cobain obtida com teleobjetiva

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

FIGURAS MUSICAIS QUE CONHECI II – JOE MANERI

Joe Maneri, sem a peruca
Joseph Maneri (1927-2009) era uma figuraça e tanto. Baixinho, peruca meio cor de acaju, meio louco. Minto, inteiramente louco, mas tinha seu fã-clube, pela figura quase mítica que representava. Falava besteiras com seriedade, como chamar o compositor austríaco Schubert (1797-1828) de “Galochabird” (‘pássaro galocha’). Toda semana, prometia contar sobre o ‘chapéu de Wagner’, grande compositor de óperas alemão, promessa nunca cumprida que lembrava a peça de teatro de Samuel Becket, ‘Esperando Godot’ – Godot era ‘o’ personagem que nunca aparecia, deixando os demais à sua espera (em Becket, Godot seria o apelido de ‘Gotter’: Deus, em alemão). Voltando ao Joe Maneri, nada de chapéu de Wagner, ele sempre adiando o assunto. E não era isca de pescador para a prender a atenção dos alunos, sua figura carismática já bastava!

Leinsdorf à frente da Sinfônica de Boston: temperamento impossível. 
Sentia-se à vontade em todas as linguagens, de Bach a Stravinsky, ele mesmo um dos herdeiros de Alban Berg, da chamada ‘Segunda Escola de Viena’, com Schönberg e Webern, dos mais importantes compositores do século 20.  Maneri recebeu encomenda do grande Erich Leinsdorf para compor para a Boston Symphony Orchestra, uma das maiores do mundo, e a peça chegou a ser ensaiada, mas nunca executada, devido aos costumeiros severos atritos com a orquestra. Maneri temperava seu gosto bastante eclético com sua origem jazzística, gênero em que foi exímio clarinetista. Lembro-me de um improviso que a plateia aplaudiu de pé, emocionada, aos gritos e urros, um delírio. Cansado de se curvar para agradecer, Maneri prostrou-se de joelhos diante do público, como que se ofertasse em humildade sua arte aos que ouviram sua música com tamanha emoção.

Piano de 1/4 de tons, dois teclados
Foi com Joe Maneri que tive um contato mais sério com a técnica dodecafônica (um sistema que emprega doze sons – teclas brancas e pretas do piano – em séries de combinações matemáticas). Compus uma ou duas peças, apenas como necessidade acadêmica: afinal, acho difícil alguém produzir alguma coisa razoável com aquilo. E se os ‘doze sons’ foram uma curta experiência necessária ao meu estudo, logo Maneri ingressou-me em outro universo, dividindo os sons não apenas entre aqueles 12 das teclas pretas e brancas do teclado do piano: ele procurava de início dividir cada tom não em meios-tons (teclas brancas e pretas), mas sim em ¼, ou seja, cada teclado de piano, a se seguir esta teoria, teria não as 88 teclas-padrão, mas 176 (houve exemplares, ver foto acima). E não parou aí. Introduziu o 1/6 de tom, que forçaria um piano eventualmente preparado para essa técnica ter 528 teclas! Porém, maluquice das maluquices, chegou a 1/12 de tom, o que faria um virtual pianista usar 1.056 teclas, e do afinador de instrumento um sujeito maluco a passar dias inteiros em um único instrumento, caso ele existisse.


Monocórdio moderno, para microtons. 
Para essas aulas Maneri usava o monocórdio, que, como se pode deduzir do nome, possui apenas uma corda. Algumas marcações na madeira permitiam criar essas divisões menores, e ele tentava fazer com que cantores, flautistas e violinistas executassem algumas ‘peças’ (leia-se: poucas notas!) com essas migalhas de tons (chamadas microtons); mesmo ao ouvido mais treinado, divisões de 1/12 são praticamente imperceptíveis. Ele confessava que executar aquilo era impossível, mas o fato era que, segundo ele, essas partículas sonoras estavam dentro de todos nós (por isso, a crítica o tinha como ‘o gênio que desafinava’, mas Maneri não lhes dava a mínima). O monocórdio era o instrumento que o grego Pitágoras (770 a 495 a.C.) já empregava em suas aulas e estudos, há mais de 2.500 anos! (Em arte, toda vez que ‘avançamos’ longe demais, ainda mais temos que retomar o passado para uma revisão). Progresso em arte, dizia meu pai, não existe. Ela está acima do tempo, apenas se transforma. E volta.
Esperando Godot
O 'chapéu de Wagner' talvez fosse o ‘Godot’ do Joe Maneri, aquele que nunca vinha. Décadas após deixar Boston, recebi um documento sobre o compositor. Qual não foi minha surpresa, não era apenas eu que usava o nome dele em meu currículo: na lista dele, eu figurava entre seus discípulos - e não imagino o porquê da distinção. Encheu-me de orgulho e de boas lembranças daqueles tempos, tempos repletos de grandes artistas e suas músicas. Mas a memória nos trai, e sempre que revolvida, como a terra, aflora algo como uma semente de nosso próprio crescimento interior, que germina revivida.

Louis Krasner, gravação com a BBC: Berg, "À memória de um anjo"
2009 foi um ano especial para mim: voltei a Boston, escala de uma visita a mais de duas dezenas de instituições musicais, a convite do Departamento de Estado dos EUA. Mas vou me deter apenas sobre a parte que me levaria a reencontrar Joe Maneri. Após o primeiro dia de visitas em Boston, recebi no hotel um telefonema do violista Renato Bandel, dando conta que Aírton Pinto havia morrido. Fomos amigos na Osesp, onde Aírton fora spalla (solista dos violinos e líder da orquestra), e ambos, com trajetórias semelhantes, respeitadas as diferenças de idade: na New England, Aírton havia estudado com Louis Krasner (à minha época uma lenda, apesar de já bem velhinho), simplesmente o responsável pelo mesmo Alban Berg de Joe Maneri ter escrito seu único – e lindíssimo – concerto para violino e orquestra, intitulado ‘À memória de um anjo’ (para Manon Gropius, a filha de Alma Mahler e o grande Walter Gropius, da Bauhaus, falecida de polio aos 18).

Wagner e seu chapéu, 'nosso Godot'
Aírton também foi professor da NEC e músico da Sinfônica de Boston por muitos anos. Mas ao indagar sobre Joe Maneri, olhares entristecidos me contaram que se ele acabara de nos deixar. Talvez tenha ido em busca de seu ‘Godot’, que nunca lhe apareceu em vida, encontro que deve ter acontecido lá no céu, três meses antes daquele mesmo dia da triste notícia. Fiquei sem ver o mestre e com ele o mistério do chapéu de Wagner.

(Veja e ouça abaixo a interpretação exclusiva e louca de Joe Maneri, em excertos de concertos em sua homenagem em Cambridge, MA)


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A OUTRA CRISE DA USP

Evolução de gastos nas três universidades públicas de São Paulo (FSP)
Matéria recorrente na imprensa, o gasto com a folha de salários da Usp chega a mais de 105% do orçamento, ou seja, há 5% negativos para manutenção e investimentos. É o sinal vermelho. Mesmo o reajuste salarial de 2,57%, neste segundo semestre, resultou em muito pouco alívio para os professores, mesmo com nova sangria nos cofres uspianos. Como agravante, é óbvia a previsível queda na arrecadação do ICMS em São Paulo em 2015 devido à crise econômica (as três públicas estaduais sobrevivem com 9,5% da arrecadação do Imposto sobre Consumo de Mercadorias e Serviços).

Pior: em 2013 as contas da Usp só foram ‘fechadas’ (sic) com créditos suplementares via decretos do governo: R$ 300 mi no primeiro semestre e 180 mi no segundo. São números impressionantes, mas é ainda muito pouco diante do orçamento de mais de 5 bi anuais e do enorme e crescente déficit. Resta acompanharmos atentos os que têm o conhecimento crítico e técnico e os que têm o controle da máquina, na busca de rumos para o futuro.

Os 'Bixos'
Isto dito e sabido, pretendo agora voltar-me a outra crise preocupante, o papel da Usp na sociedade. A Folha de São Paulo publicou, há poucos dias, duas matérias reveladoras: 50% dos calouros da Usp estão entre os 20% mais ricos do país (dados: Usp), o que significa que a universidade tem sido ocupada cada vez mais pelos mais ricos, deixando os demais, cidadãos comuns e os mais pobres, com espaço mais encolhido ao sol da formação de excelência.

Prouni:divulgação oficial
Essas cifras formam uma curva que vem se acentuando nos últimos anos de maneira perceptível. Mas qual o porquê dessa maior concentração de ricos? Guardem a bola de cristal e atentem para duas siglas: primeiro, o Prouni (Programa Universidade para Todos), criado em 2005, que concede bolsas integrais ou parciais para alunos de origem mais modesta no ensino superior privado, que recepciona 74% dos alunos de faculdades e universidades de todo o país. Por meio dele, é possível aos felizes contemplados (quase 10% dos alunos ingressantes) fazer um curso superior sem a maratona vestibular das chamadas ‘públicas’, facultando-os ainda estudar à noite para poder trabalhar de dia (pobre que é pobre, frise-se, tem que cavar seu sustento, papai não pode mantê-lo com seu parco salário). Esse programa tem se tornado um golpe na supremacia hegemônica das chamadas públicas – e, para que se faça justiça, informo que o Prouni foi criação, em 2005, do ex-ministro da educação Tarso Genro, no primeiro governo Lula (quem acha que 100% de tudo foi certo ou errado em um ou outro governo ou é cego ou, como diria o Mário de Andrade, “uma reverendíssima besta”).

Enem: divulgação oficial
Novo fator a se agregar a essa crescente elitização da universidade ‘pública e gratuita’ (mote da comunidade uspiana desde sempre) também foi revelado pela mesma Folha nesta segunda semana de outubro: em 2014 houve uma queda de 37,5% (dados oficiais) nas inscrições para o Fuvest (que realiza o exame vestibular) entre os alunos egressos de escolas públicas – em geral, vindos de classes menos favorecidas, que não podem pagar pelas caríssimas escolas particulares e cursinhos para ingressar nas pública estaduais. Mas haveria ainda outra razão desse ‘tombo’ de quase 40%? Vamos a outra sigla: o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), programa de avaliação que somente fica atrás do sistema chinês – comunista, aliás, mas cujo ensino não é gratuito, diga-se de passagem. Ainda outra vez, por justiça, o que é de César: o Enem foi gestado a partir de 1998, pelo então ministro Paulo Renato de Souza, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Fies: divulgação oficial
Com o avanço do Enem, 53% (tendência crescente) das universidades públicas federais em 2014 já empregam o exame para seleção de candidatos, boa parte deles em vias de concluir o curso médio em escolas públicas. Prouni e Enem, juntos, já trazem algumas luzes sobre o visível escoamento de candidatos pobres e clara elitização da universidade pública (no caso aqui, a maior do país, a Usp). Mas não é tudo: o Fies (programa do MEC) financia cursos a simpáticos juros de 3,4% ao ano, para que o aluno possa pagar com menor sacrifício seu estudo em uma particular; ironicamente, em prejuízo das públicas cada vez mais elitizadas e engordando cofres privados. Agora pela última vez, cabe a César o que lhe é de direito: o Fies foi criado em 1999, no mesmo governo Fernando Henrique, pelas mãos do ex-ministro Paulo Renato de Souza. O modelo do Fies guarda muitas semelhanças com o crédito universitário americano, da mesma forma que entre o Enem brasileiro e o SAT (Scholastic Aptitude Test), criado em 1926.

Aluno de ensino médio em prova de SAT nos EUA
Com o resultado do SAT em mãos, o aluno norte-americano tenta ingressar na universidade de sua escolha. Porém, para estudar em certa universidade média no ranking, a nota mínima exigida é, vamos supor, 7, mas com essa pontuação, independentemente de poder pagar a anuidade ou não, o aluno não pode sonhar com uma cadeira na Harvard, só para citar uma das maiores.

Concluindo, a universidade brasileira, mesmo pública e gratuita, aparenta ser cada vez um nicho da mais elevada elite social, e esses 20% dos brasileiros mais ricos que hoje ocupam metade dos bancos escolares uspianos, nessa progressão, em breve ocuparão algo como 60% dos assentos universitários. Os mais pobres ou menos favorecidos custeiam com seus impostos o estudo gratuito dos mais ricos. Agora, peço atenção para os mais apressados: nem de longe entrei aqui no mérito da discussão-tabu, ‘a universidade paga’, e sim à 'outra crise', a que me refiro e que precisa ser pensada sem bandeiras de quaisquer cores: a Usp é de todos nós, docentes, alunos e da comunidade paulista, que a sustenta.


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

FIGURAS MUSICAIS QUE TODO MUNDO DEVERIA CONHECER

Olivier Toni!

Meu caro amigo leitor músico, atribulado em seu trabalho ou estudo, não pense que vou aqui falar de semibreves, mínimas, semínimas, colcheias, semicolcheias e afins. Mesmo que eu volta e meia adote um tom didático em meus textos, devo ao leigo algumas pausas para descanso, para que pequenos excessos não lhe atrapalhem a leitura. Assim como na ciência, na música e na vida (ou na arte da guerra, diria Napoleão) é sempre importante dar um passo atrás, que não significa retroceder, mas recapitular para avançar e concluir.
Falo de figuras humanas, gente cujo caminho cruzei vez por outra, por breve ou mais longamente no caminho da vida. São pessoas que moldaram minha formação como profissional e pessoa; por enquanto, devo concentrar-me nos que fizeram a história da música no Brasil, os que tive o privilégio de conviver ou conhecer, às vezes mesmo sem ter estado em uma de suas salas de aulas, de olho na ‘pedra’ (como se chamava lousa, antigamente). E mesmo a certa distância, foram eles meus professores de vida.

Capa do CD, pintura de O. Toni em foto de Heloísa Bortz
Hoje recebi de presente do amigo Antonio Ribeiro o CD ‘Só isso e nada mais’, do músico, professor, regente, pesquisador e principalmente desbravador musical do Brasil, George Olivier Toni, com um amável autógrafo. O título é sugestivo: trata-se do primeiro registro exclusivo de suas músicas, aos 88 anos!!! A trajetória de Toni é longa, desde suas aulas com o grande Camargo Guarnieri à sua ‘deserção’ para a modernidade (‘pero no tanto’) que seduziu tantos compositores, pelas mãos de Koellreuter (1915-2005). Seus colegas, como ele, terminaram abraçando uma técnica sedutora pela facilidade, mas com prazo de validade já vencido quando chegada ao Brasil, o dodecafonismo: com ele, Guerra-Peixe, Aylton Escobar, Claudio Santoro e muitos outros.

Florestan Fernandes
Toni voltou ao seu caminho, que também teve como preparador o grande mestre austríaco Martin Braunwieser, trazido ao Brasil por Mário de Andrade. Mostrou-se coerente em sua obra e pensamento político, cria que foi da Faculdade de Filosofia da USP, orientado por Gilles Grangér, Otto Klineberg e o grande Florestan Fernandes.

Pesquisou a música brasileira, mas não quis passar para a história como musicólogo. Lecionou, mas era mais polêmico do que mero repaginador de surrados compêndios do passado. Discutia, questionava, fazia germinar o espírito investigativo e questionador tão necessários à vida na universidade – no caso, a USP, de cujo Departamento de Música foi fundador e chefe.

Matéria recente de João Luiz Sampaio para O Estado

É compositor, tem um técnica bastante pessoal, mas nunca aspirou a um busto de bronze na academia. É regente, trabalhou à frente de alguns dos melhores conjuntos orquestrais do país, mas não foi contaminado pela vaidade do estrelato. E foi um bandeirante musical: fundou a Orquestra Sinfônica Jovem Municipal de São Paulo (1968), até hoje mais viva do que nunca, a Escola Municipal de Música (1969), orquestras e festivais como os de Prados (MG), em que reunia poucos e bem selecionados alunos.

Willy Corrêa de Oliveira: o gênio do aluno
Criou um Departamento de Música na USP com nomes como Willy Corrêa de Oliveira e Gilberto Mendes, inicialmente em uma casa improvisada próxima ao lugar onde alunos de medicina iam dissecar corpos ou namorar (é tudo verdade!). Fez germinar a música na USP, agora muito bem revigorada.
Gilberto Mendes: vanguardista e revolucionário
Sua equipe era nitidamente influenciada pelo pensamento que tinha grande força na universidade, o marxismo em suas teorias políticas e estéticas, e nelas trafegava com naturalidade. Nunca deixou de ser crítico, como convém a todo marxista que se veste do título, sem modismos juvenis: disse-me certa vez que a esquerda brasileira (penso em Cecilia Meireles, sobre a liberdade: “que ninguém sabe o que seja”) nunca teve certeza do que fazer com a cultura, e muito menos com a música.


Em um de seus diversos cartões, que recebo e coleciono, a marca de sua personalidade (aliás, mais parecem declarações de amor paternal): “Teve o destino que afastar-nos, mas tenho você sempre presente...” Ele havia também se esquecido de outra vez em que nos 'apartamos', apenas ignorou-a com sabedoria. Refiro-me à primeira ocasião, quando rompemos por alguns anos por conta de certos vícios acadêmicos, coisa rotineira intramuros. Porém, mesmo sendo chefe, nunca me importunou, menos ainda perseguiu-me. Tenho obrigação que deixar esse registro. Da segunda vez que nos distanciamos, quando Natal de 2013 me enviou o cartão acima, ele se referia à distância física mesmo.

CCSP: entrada, na R. Vergueiro
Grata surpresa foi em um certo dia no Centro Cultural São Paulo, enquanto eu fazia a abertura das comemorações do 25º aniversário da fundação da Escola Municipal de Música, e percebi o próprio fundador sentado na plateia. Após minha fala, bem ao meu lado, estava o Toni, pedindo para si o microfone. Em público, desculpou-se por ter se oposto a mim como diretor da escola que ele fundou, fez o ‘mea culpa’ e passou a tecer-me rasgados elogios – esse é e sempre foi o Toni: sabe tanto atacar sem papas na língua quanto retroceder com a humildade que é exclusiva dos grandes homens. Aquela noite foi a de um reatamento informal. Toni, quatro meses mais novo do que meu pai, ainda é um amigo à distância, elogioso mas sempre desinteressado estimulador. Aqui retribuo ao mestre, com carinho.

"Só isso e nada mais"
Na capa do CD, algo abstrato. Apenas na parte interna, uma discreta foto, em pleníssima forma e jovem aos seus 88 anos, mais lúcido do que nunca, desenhou com sua caligrafia peculiar: “Pra meu caríssimo Henrique Dourado, exemplar músico e amigo, com o abraço do Olivier Toni. 22/10/14”. Uma figura, como disse, de enorme importância na música brasileira do século 20 e até hoje. Suas palavras do passado ainda ecoam em meus ouvidos – e se ontem eu as achava 'caretas' ou quase sem sentido (coisa de jovem profesor), hoje as vejo como a lição de um mestre que permanece na memória, sabedoria que levei uma década para assimilar. O CD, lançado recentemente pelo SESC, tem a abertura do incansável Danilo Miranda, ministro sem pasta da cultura desde sempre, e um texto saborosíssimo do Willy que, só pelas citações, para mim nem precisaria estar assinado: cada letra tem seu perfil estampado! A obra do Toni ali gravada é moderna, mas querendo ser eterna, como diria o Drummond, e mostra um apreço especial pela voz humana, com Caroline de Comi, e o talento do pupilo de sempre, o grande Claudio Cruz,  na voz do violino. Acabamos de completar os 30 anos de nossa amizade!  Um abraço para você também e longa, longa vida, Toni!