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sábado, 25 de março de 2017

NOSSOS PRESIDENTES E A LITERATURA

A magnífica Biblioteca Joanina, em Coimbra (detalhe) 
De Portugal, o escritor e articulista Ignácio de Loyola Brandão escreveu um ótimo artigo (Estadão, 17 de março - C8) Intitulado “Correntes d’Escritas, pedaço de Utopia possível” (frase da célebre escritora lusa Lídia Jorge). Apesar de o título soar erudito, o conteúdo é de fácil compreensão, e poderia ser resumido em uma frase destacada em uma caixa de texto no centro do artigo: “No Brasil, jamais vi um presidente aparecer em um acontecimento literário”. Depois retomaremos o assunto do evento mencionado por Loyola e Portugal, mas vale antes uma digressão sobre o comentário em destaque.

Sem entrar em questões políticas, se fizermos uma retrospectiva veremos que é quase verdade. Quase. O presidente atual, Temer, é um poeta de horas vagas que toma o cuidado de não divulgar muito seus versos. Não demonstra apego pela literatura, apenas se pretende erudito, com os “fá-lo-ei” à Jânio. Da Dilma lembro-me apenas de um episódio, a entrega da Ordem do Mérito Cultural, em Brasília, 2012, na qual minha irmã Inês, emocionada, recebeu homenagem, in memorian de meu pai, apenas um mês após a partida dele (a premiação havia sido votada meses antes).

Grã-Cruz
Dilma, ao lado de Mercadante, Sarney e Marta, entregou-lhe um estojo aveludado em vermelho, dentro uma belíssima placa dourada com a estampa “Ordem Grã-Cruz”, a mais alta láurea. Tivesse lido a placa, Dilma teria visto a data de um ano depois, de volta ao futuro. Falei para minha irmã guardá-la, por via das dúvidas, fotografá-la e requerer outra corrigida. Detalhe: apesar de a família inteira não simpatizar com a Dilma, meu pai e minha mãe mais radicalmente, minha irmã recebeu o prêmio dispensando qualquer discurso oportunista contra a presidente, bastou-lhe um sorriso à noblesse oblige (nobreza exige).

Sala São Paulo - FHC e o príncipe do Japão, Naruhito
Já Lula foi adulado por intelectuais ‘de esquerda’, mas nada escreveu ou leu - falo de literatura, repito aos apressados. Antes dele, FHC, acadêmico (e política também à parte), não só frequentava lançamentos como esteve ao menos na abertura da Bienal do Livro de 1995. Recebia literatos e adorava música – era assíduo no Teatro Municipal de São Paulo. Eu tinha direito a ingresso e ia muito, já ele requisitava o camarote presidencial, sua entrada recebida com aplausos. Depois, o mesmo na Sala São Paulo, com a Osesp, de cujo Conselho foi presidente após retirar-se da cena política.

Retrocedendo mais, tivemos um presidente que, apesar de formado em bom colégio do Rio, o São Vicente, de nada aproveitou o empenho literário dos professores: Fernando Collor. Sucedeu José Sarney, autor de “Marimbondos de fogo”, livro que me abstenho de comentar porque não li mais de quatro páginas, que foi “demolido” em artigo do Millôr Fernandes. Sarney foi guindado à Academia de Letras. Tancredo Neves, apesar de ter nascido em terra de escritores, Minas Gerais, parecia pouco ligar. Os presidentes da ditadura, Figueiredo, Geisel, Médici, a Junta Provisória e Castelo Branco foram sete fiéis retratos de 21 anos de trevas literárias no governo, censura à parte, para ficar só na arte de escrever.

Gen. Silvio Frota, em revista à tropa
Um amigo e quase vizinho de meu pai, o escritor e psicanalista Hélio Pellegrino, quando foi preso, teve sua esposa, Maria Urbana, recebida a pedido de um pistolão (no sentido figurado!) pelo Comandante do I Exército, o temido Sílvio Frota. Para quebrar o gelo, Maria Urbana tentou adocicar o General, dizendo “o senhor, como intelectual...” E foi bruscamente interrompida por Frota, que chutou uma cadeira e exclamou “não sou intelectual, sou homem de ação!” Esse foi o tônus de um longo regime.

André Malraux
Passando Jango a Jânio, professor mas não promotor das letras, chegamos a JK, que acredito tenha sido uma exceção. Apesar de não parecer um aficionado pela leitura, cercou-se de escritores em seu governo: meu pai, Autran Dourado, Geraldo Carneiro e Augusto Frederico Schmidt, entre outros. Recebeu gente como André Malraux e fez várias ações em favor das letras, como tombar a obra de Machado de Assis, batalha de meu pai. JK gostava dos discursos inteligentes que lhe escreviam, de estar cercado por intelectuais, escritores, pintores, músicos, gostava de ser visto como homem culto e interessado na arte.

Cena de Fahrenheit 451, de Truffaut
Antes de JK, não me lembro de nada que mereça nota. O destaque negativo fica para Getúlio e seu órgão censor, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), que se possível teria mandado incinerar todos os livros, como no filme Fahrenheit 451, dirigido por Truffaut (do livro de Ray Bradbury).  

Em 2.000, meu pai foi laureado em Portugal pelas mãos do presidente Mário Soares, em pessoa, com o Prêmio Camões de Literatura. Na pátria do autor de Os Lusíadas, terra também de mestres como Alexandre Herculano, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz e o mais recente Saramago, a literatura é orgulho nacional. No evento Correntes d’Escritas deste ano, escreveu Loyola no seu artigo do Estado, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi convidado a abrir a cerimônia, e fez as honras da casa. (Convidado a abrir a Bienal do Livro de 2016, Temer não compareceu).


Presidente Marcelo Rebelo
Loyola descreve as Correntes como um “tsunami literário”, evento impecável, superlotado todos os dias pelos amantes das boas letras. O apreço dos portugueses pela literatura não é de hoje, vem de longe. Pena mesmo é que nossos políticos preocuparam-se mais em nos impingir a ortografia lusitana, com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), e não em incentivar no país o que os irmãos da península têm de melhor do que nós, o amor pela boa literatura. 

sábado, 18 de março de 2017

O (DES) ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Não faz muito tempo, a Folha de São Paulo publicou, na primeira página: “Tempestade para São Paulo”. Seria aquilo um desejo dos editores, uma tormenta cair sobre a capital paulista? Eu adoro ler linhas, entrelinhas, frente e verso. O problema foi a falta do acento em pára, como era antes do Acordo Ortográfico, aprovado em 1990. Forçosamente, eu, se repórter, jornalista ou revisor, teria trocado para “Tempestade paralisa São Paulo”, e ficaríamos todos em casa, ponto final.  Coincidentemente, ontem, no dia 13 de março, a Folha se repetiu em título de capa: “Atoleiro para caminhões em rodovia...” É um problema que se torna diário, mal-entendidos são frequentes - antes, freqüentes, com trema, e tudo bem que o sinal dava mais trabalho ao digitar, mas essa simplificação veio mais para pasteurizar o idioma do que para outra coisa.

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi votado pelo Senado em 1990, e até hoje, 27 anos depois, é uma caravela sem rumo, como a de Cabral, a vaguear na calmaria. Países de língua portuguesa assinaram o acordo: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, e, em 2004, o Timor Leste independente. Tudo bem, mas o único que usa mesmo (e obriga a cumprir) o Acordo é o Brasil, a nossa pátria mãe gentil, único seguidor quase totalmente fiel do tratado. A intenção dos signatários era unificar a ortografia dos países de língua portuguesa, mas e as diferenças?
Não sou escritor, como disse em artigo da semana passada, e menos ainda filólogo ou linguista. Mas arrisco um sobrevoo neste vespeiro, tabu para alguns, apenas para lamentar também que expressões como pé-de-moleque, pão-de-mel, pé-de-chinelo e outras perderam o hífen. Ficou parecendo que nos referimos ao pé de algum moleque, a um pão feito de mel ou a um pé de um par de chinelos. Bem lembrou meu colega Antonio Ribeiro que os alemães vão juntando palavras para completar o sentido. Algumas delas longas, como Gesamtkunstwerk (Obra de Arte Total) de Richard Wagner, referindo-se à ópera como gênero musical completo.
Vapor do Danúbio
Algumas chegam a um certo exagero, como a longa e complicada Donaudampfschifffarhtselektrizitätenhauptbetriebswerkbauunterbeamtengesellschaft: Sociedade dos Empregados Subalternos de Construção de Usina da Companhia Principal de Eletricidade dos Navios a Vapor do Rio Danúbio. Não precisamos seguir a tradição germânica, mas por outro lado nosso simplismo e reducionismo ortográfico...
Meu pai, em um antigo texto para um jornal, lembrou que a Constituição Federal poderia ter acrescentado “segundo as normas do falar e escrever brasileiros”. Problemas tinha aos montes com revisores, que, segundo ele, eram mais gramáticos e filólogos do que os melhores gramáticos e filólogos brasileiros. Consultam o “Aurélio” e, se não está lá, podam o texto. Dava um exemplo clássico: “errei todo o discurso dos meus anos”, que, não encontrando ressonância nos revisores, trocaram para “decurso”, deturpando o sentido. Trocaram “estufar o peito” porque acharam “estofar” no dicionário. Logo, parou de escrever tãopouco, como era aqui e em Portugal, porque a Academia Brasileira de Letras cismou de criar “tampouco”.
Antonio Houaiss
E foi adiante: correspondeu-se com o Fernando Henrique Cardoso, então senador por São Paulo, assim como o Darcy Ribeiro, senador pelo Rio, com quem tinha certo trânsito. Disse que o Houaiss defendeu o acordo porque, como diplomata e cumpridor da lei, o filólogo conhecia o direito internacional, e faz menção ao Art. 49 da Constituição: “I - é de competência exclusiva do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais...”
Meu pai e mais outros “quixotes” (o Houaiss usaria dom-quixotes, no caso) continuaram a brigar pela causa brasileira, ele próprio recebendo respostas de que as cartas dele seriam lidas nas discussões da regulamentação do Acordo Ortográfico. A partir daí, começou-se a descobrir quem eram os maiores interessados, o que havia por trás do tratado. Em primeiro lugar, aos portugueses, que desejavam vender livros em sua própria “irretocável e platônica” língua, disse ele.
Casteleiro (à esquerda)
Em segundo, de acordo com as “más línguas” de Portugal, teria havido um conluio entre o linguista lusitano João Malaca Casteleiro, filólogo e dicionarista da Universidade de Lisboa, no primeiro Encontro para a Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa, em 1986, no Rio, e Houaiss, também dicionarista, que participou como delegado do governo brasileiro no evento na ABL. Trocando em miúdos, Portugal queria impor sua língua, e um dos próceres do governo português chegou a questionar coisas como, por exemplo, no passado o Brasil usar “facto” e “projecto”, e mudou por sua conta para “fato” e “projeto”. Por que então Portugal teria de seguir-nos na mudança, se a língua-mãe é deles?

Ionesco
Ao pé do ouvido, meu pai contou-me que a republicação e distribuição dos dicionários brasileiros para todos os governos, bibliotecas, consulados e representações do mundo, fora escolas e universidades do Brasil, foi em larguíssima escala. Sou franco, não posso ser exato, mas o assombroso número de exemplares de apenas um certo dicionário que me vem à mente teria sido da ordem de 3 milhões, segundo ele. Ao preço de hoje, custaria a bagatela de R$ 400,00 o exemplar, e mesmo que fosse ao preço de R$ 200,00, dada a enorme quantidade, a coisa teria ido aos R$ 600 milhões – um naco disso para as famílias dos autores. Em outro texto, meu pai lembrou Ionesco, do Teatro do Absurdo: “cuidado, professor, a filologia leva ao crime”, referindo-se especificamente ao que se iria cometer com a nossa língua. E nunca aos melhores filólogos, que tanto respeitava e admirava. 

sábado, 11 de março de 2017

PORQUE NÃO SOU ESCRITOR

Gustave Flaubert
O leitor mais atento pode ter estranhado a razão de eu ter usado, para este título, ‘porque’ conjunção causal explicativa, e não ‘por que’, expressão interrogativa. Guardo a explicação para o final do texto. Também, não deixa de ser uma brincadeira com o leitor sobre as regras gramaticais, que uso mas sem idolatrá-las, até distorcendo-as ou violando-as conscientemente, como recomendava Flaubert, quando apraz ao autor, pelo bem do estilo de escrever.

Fernando Sabino
O título ‘escritor’ ficou ainda mais claro para mim quando, por ocasião do falecimento de meu pai, em 2012, o crítico literário e articulista Humberto Werneck escreveu sobre um caso divertido que acontecera com o Fernando Sabino. Na conversa, meu pai, seu amigo, dissera que passara a vida inteira em “trabalho de formiguinha para ser romancista”. E que se escrevesse poesia certamente seria um lixo.

Humberto Werneck
Insistia que Sabino, seu dileto amigo, tentasse publicar algo mais do que crônicas, enveredasse pelo romance, pela verdadeira literatura. Werneck assim publicou a boutade em O Estado de São Paulo, uma semana depois da partida do meu pai (2012):

Autran Dourado
“Nos anos 70, trocou divertidas farpas com Fernando Sabino quando o amigo, inebriado pelo sucesso do primeiro romance, O Encontro Marcado (1956), que o impedia de reincidir no gênero, andou apregoando que o romance estava morto (sic). Gozado o Fernando”, comentou meu pai: “foi campeão de natação, e agora, que já não dá conta de nadar, quer esvaziar a piscina..." Essa uma tirada típica do velho Autran.

Sabino voltaria a tentar o romance, com O Grande Mentecapto, mas o trabalho de elaborar uma grande trama literária lhe parece ter morrido após mais duas tentativas. Já meu pai continuou a ser formiguinha, e construiu uma obra já consolidada internacionalmente que deixou um lastro de quinze romances, nove livros de histórias mais curtas, um de memórias e seis de ensaios. Por isso, foi considerado pela Unesco autor de textos que figuram entre as obras representativas da literatura universal.

Herbert Von Karajan
Faço agora um paralelo entre ‘a pessoa que escreve e o escritor’ com ‘aquele que rege e o maestro’. Hoje a ‘produção’ de maestros no Brasil é como a “geração espontânea” da antiguidade. Eu me autodenomino maestro porque quero (ou seria uma autofagia oculta?). Muitos, muitos regem, mas, como os que escrevem e não são necessariamente escritores, serem regentes não significa serem ‘maestros’. Em outras línguas, não há paralelo: chef d'orchestre, em francês, conductor, inglês, e Dirigent, alemão. Na Itália, diz-se que é maestro o mestre, independentemente até do instrumento.

Isaac Karabtchevsky
Quem confere então tal título no Brasil, perguntaria o leitor. Os músicos! Nem a imprensa, nem a universidade, nem o público, apenas os músicos, que reconhecem na liderança que os guia estarem diante de um mestre - do italiano “maestro”.  Nem quando músicos o dizem por respeito ou costume, mas quando têm gabarito musical que lhes confere esse poder de ‘unção’, de dar a quem os rege o galardão de líder de orquestra, é que se ergue um maestro. Disse uma vez o célebre Isaac Karabtchevsky: é maestro quem possui na cabeça as 9 sinfonias de Beethoven para reger amanhã, entre outros cavalos de batalha. Na questão requisitos, como músico eu endosso o maestro paulistano de anos muito bem vividos musicalmente aqui e no exterior, hoje aos 83.

Silvio Romero (1851-1914)
Há e houve ensaístas e críticos, e gente preciosa, como o Humberto Werneck, que mencionei acima (a imprensa recente desgastou “citar”, devido à Lava Jato, provocando confusão quanto uso da palavra, entre o ‘mencionar’ e a 'citação judicial'). Afrânio Coutinho, o mestre Antonio Cândido, Alceu de Amoroso Lima, e, do século 19, Sílvio Romero, sem me esquecer do professor emérito da Usp e membro da ABL Alfredo Bosi, independentemente de serem também poetas ou escritores. É um ofício trabalhoso, cheio de espinhos, cujo protagonista tem de estar pronto para receber de volta farpas dos criticados.

Cecília Meireles
Dos poetas, artesãos de dificílima arte, temos muitos, desde o versátil Gonçalves Dias à Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond (o “poeta maior”), João Cabral, dos meus favoritos, e tantos outros. Cronistas da imprensa temos aos montes, alguns que admiro pela memória e versatilidade no jornalismo, destacando Carlos Heitor Cony, o saudoso Gullar, Sérgio Augusto, bem versado em cinema, o às vezes debochado e cáustico Arnaldo Jabor, e outros menores que servem para encher página de jornal, cujos nomes declino de mencionar, por respeito à classe dos que emitem boas opiniões fora da aparente (mas não transparente) isenção das notícias.

Marlos Nobre
Entre compositores, o mesmo. Escrevi dezenas de peças curtas, mas nem por isso sou compositor. No máximo, um ‘cronista da composição’. Um compositor que merece esse título tem de ter escrito uma ou mais sonatas, ou peças cuja complexidade mostrem sua expertise no tema, quem sabe chegar a uma ópera ou sinfonia. Sou modestíssimo artesão, outra coisa são Guarnieri, Villa-Lobos ou Marlos Nobre, entre outros. Componho, mas não me atrevo a usar o título de compositor.

Escrevi alguns livros, quase todos técnicos, fora uma brincadeira musical publicada como diversão. Mas nada de literatura. Minha obra mais importante é o Dicionário de Termos e Expressões da Música, que tem trânsito entre músicos em geral. Nunca pensei em me aventurar pela literatura, pois o trabalho deveria ter sido iniciado como meu pai, aos dezenove. Gostaria, até, claro, a coisa me atrai, mas sei dos meus limites.  Sou músico, e está na alma, mesmo que não persista diretamente na atividade devido a problemas que, há anos, me obrigaram a deixar de exercê-la diretamente. Dirijo escolas de música há 28 anos. Mas quanto a escrever, digo que não sou do ramo, apenas faço minhas crônicas.

Porque não sou escritor.

sábado, 4 de março de 2017

BREVE ROTEIRO MUSICAL PARA UM BEBÊ

Parto Leboyer
Diz-se que a formação da personalidade da criança se inicia quando ela vê a luz - “dar à luz”: entregar um bebê à claridade, em contraponto com o escuro anterior. Mas sabe-se também que ainda na gestação o bebê ouve, e bem. O obstetra francês Frédérik Leboyer, autor de Nascimento sem Violência (Pour une Naissance sans Violence), pregava o parto mais suave possível: dentro de uma pequena banheira, de forma a se minimizar a transição do líquido amniótico para o contato direto com o ar. Houve ainda quem agregasse sons absolutamente suaves: um bem agudo, semelhante ao do sistema nervoso, e outro grave, como o do circulatório da mãe, para a melhor passagem do ventre materno para o mundo exterior.

No berçário, esses sons teriam feito, segundo os cientistas, a suave viagem entre o mundo da placenta e o externo. Outros experimentos foram realizados, e os resultados surpreenderam: no Canadá, pesquisadores separaram recém-nascidos em três grupos. Um que ouvia Mozart, outro que escutava coisas bem mais simples (medievais, por exemplo) e um grupo “placebo”, que não ouviu nada.

Depois de algum tempo, os três grupos ficavam juntos, e ao escutarem a música mais simples, a renascentista, o segundo grupo, que a ouvira, reagiu como se reconhecesse aqueles sons, mas sem muito entusiasmo. Os bebês que ouviram Mozart pareciam reagir com vivacidade à música, enquanto o grupo “placebo” (que ficou no silêncio) demonstrava certa indiferença em geral. Mas quer dizer que os bebês reconhecem Mozart? É mais ou menos por aí. Outro experimento, em uma granja nos EUA, revelou que galinhas poedeiras produziam mais ouvindo Mozart do que as que não ouviam nada. Crianças expostas ao som de Mozart por um período de tempo mostraram resultados melhores em testes de QI do que, em geral, as que não ouviram nada.

Tommy e seu bongô
Minha filha mais velha, Marta, ouviu Mozart pelos headphones encostados na barriga da sua mamãe; depois de nascer, foi por um aparelho que levei para o quarto. E assim tem sido em sua vida inteira, agora doutorando-se em música em Londres, onde nasceu meu netinho Tommy – este, efeito do próprio ambiente doméstico, também mostra certo entusiasmo por músicas bem complexas, como o romântico Brahms, chegando a acompanhar a 1ª sinfonia do alemão com gestos cadenciados, como se regesse. É bom nunca subestimar a audição de um bebê, e penso novamente em minha filha quando lembro que ela, antes mesmo de falar, cantarolava coisas simples como “Terezinha de Jesus” sempre na tonalidade em que aprendeu, ré menor!

Mozart conduzindo um ensaio
É de se perder de vista o número de experiências feitas com música, especialmente Mozart. Chamado “o predileto dos deuses”, foi um prodígio que se apresentava para a nobreza aos cinco anos, idade em que compôs suas primeiras peças, daí em diante transbordando produção. E sua música é uma inconfundível trama plena de mistérios.


À esquerda: no silêncio. À direita: ouvindo música

A boa música exige um raciocínio interior involuntário cujos efeitos são estudados de há muito, mas não há conclusões comprovadamente definitivas. Médicos que ouviam um suave Mozart durante o trabalho estressante de cirurgias complexas apresentavam batimentos cardíacos menos acelerados, demonstrando que os cirurgiões ouvintes da boa música ficavam menos tensos.

Outro dia, uma amiga que toca e leciona flauta relatou que uma criança, sua aluna, fazia tratamento psicológico e que sua mãe tinha começado a introduzir a música de Mozart em casa, por conselho - sábio! – da terapeuta. E logo sentiu o resultado em suas aulas de música! A musicoterapia tem feito avanços nesse sentido. O bardo Shakespeare dizia que o homem que não gosta de música não merece confiança, em uma versão medieval para o nosso “quem não gosta de samba / bom sujeito não é / é ruim da cabeça / ou doente do pé”. Agressões físicas são relativamente comuns em escolas públicas e particulares, mas em minha vida dirigindo unidades de música (desde 1989!) nunca vi uma cena de violência acontecer. Isso quer dizer alguma coisa, porém, como já disse, apenas constato, não consigo explicar.

Exame audiométrico: perda acentuada a 1.000 Hz
Claro, um fator de suma importância é a qualidade da música. Se obras clássicas ou música popular da melhor qualidade se traduzem em crianças mais sadias, as que ouvem a pior “música” em alto volume e ruídos “bombando”, têm o batimento cardíaco mais acelerado, e costumam ser mais agressivas. Estudos sobre excesso de ruídos e alto volume já constataram, de órgãos da Saúde às universidades de todo o mundo, o PAIR (Perda Auditiva por Indução de Ruído), dano neurossensorial irreversível, stress, doenças coronarianas, desempenho mais fraco nos estudos ou no trabalho, hipertensão, mau humor e insônia, entre outros. Já uma boa música mais suave, seja ela clássica, MPB ou um rock de boa qualidade ajuda a tornar as pessoas mais alegres, sociáveis, educadas e calmas.

Decibelímetro: acima de 70dB, em ruído
constante: zona de perigo
O exemplo vem sempre de casa. Seus filhos são o que você ouve e o que você assiste na TV. Se seguem o que ouvem na rua, o lar serve de contraponto, ao menos, como saudável refúgio. O costume cria o hábito e leva ao bom gosto, e o som, como parte desse ambiente, afeta o comportamento para melhor. Um local de trabalho silencioso ou com música suave induz a maior produtividade. Proteger o meio ambiente não é só defender a natureza e a pureza do ar e da água, é também evitar poluição sonora. Todos seus efeitos nocivos afetam a vida e o bem-estar dos cidadãos. Ou para o bem, como a boa música, desde que nascem.