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domingo, 27 de novembro de 2016

GÈZA KISZELY

Figura musical que todos deveriam ter conhecido

O povo judeu teve entre suas grandes habilidades, em sua trajetória nômade, o comércio e a música. Quanto ao primeiro, bastaria lembrar que, fincados na Holanda, de lá foram para os EUA – “Uma Nação de Imigrantes” título de um dos livros de John Kennedy, quer Trump goste ou não. Lá, fundaram New Amsterdam (1624), em homenagem à capital holandesa, depois New York, após a invasão inglesa (1664), e hoje é o centro do negócios do mundo (pois teriam ficado no Brasil, com Nassau, se não fossem expulsos).

Outra habilidade, a música, tem uma lista interminável de estrelas, em que predominam instrumentos de arco - o violoncelo de minha filha, que mora em Londres, pertenceu a Paul Wisa, que fugiu da Alemanha e dos horrores nazistas, a pedido do pai, levando consigo naquele cello as economias da família, à procura de um lugar no mundo com o instrumento a tiracolo. Nos campos de concentração os violinos eram tolerados porque, apesar das atrocidades, os soldados eram grandes apreciadores de música clássica, inclusive o próprio Hitler. Com isso, ao lograrem escapar ou serem libertados, às vezes conseguiam levar consigo seus violinos. A maioria dos grandes virtuoses do instrumento, e mais ainda depois da II Guerra, é de origem judaica: de Milstein a Heifetz, de Perlman a Zucherman.

Antigo prédio da Fefierj
No Brasil, para onde a família Kiszely imigrou, o pequeno Gèza era conhecido como George, nome mais fácil. Foi um violista e violinista da mão cheia, tocou em muitas orquestras brasileiras, inclusive o Municipal de SP. Eu o conheci em 1972, quando fui estudar na Fefierj, hoje UniRio, onde ele era professor de História da Música e História da Arte. O diretor da Fefierj era um general, interventor nomeado nos macabros tempos do Médici. Pois foi em uma aula do Kiszely, com slides projetando instrumentos indígenas, que vi mais um exemplo da ignorância que nos assolava.

Abre a porta e entra o general Jayme Ribeiro da Graça, o diretor – hoje atitude inaceitável, intromissão dessas em sala de professor! -, que em determinado momento se levantou e começou um discurso bizarro, dizendo que flautas de osso eram coisa pré-histórica, pois a arte evoluiu (sic), hoje havia instrumentos como as flautas de prata, “infinitamente superiores”, e por aí vai.

O mundo deu uma volta, retornei do exterior anos depois, e, por ironia do destino, em 1989 tornei-me diretor da Escola Municipal de Música, onde Kiszely era professor. Falava, e como falava. Um dia lhe perguntei como vai, como está a vida, esperando uma breve resposta. Ouvi “minha mãe, quando veio da Hungria, nos pedia para vender pães para ajudar no sustento”, e daí desenrolava a saga de sua vida. Orgulhoso de sua excepcional memória, chegava a detalhes absurdos. Certa vez, eu ia fazer uma reunião com alguns professores, e ele contou para a excelente Laís Kauffman, já com certa idade mas, claro, vaidosa, que a viu tocando ainda criança, com um lacinho de tafetá, castiçais do piano acesos, ela com uns doze anos - e isso foi em mil novecentos e... disse, com precisão. A memória prodigiosa o traiu: Laís levantou-se, furiosa, xingou Kiszely e foi embora.

Sede da velha Oficinas Três Rios
Lecionamos juntos nas Oficinas Três Rios, embrião da ULM-Tom Jobim, hoje Emesp, co-irmã do Conservatório de Tatuí. Pegávamos o metrô, na saída, e certa vez Kiszely convidou-me para tomar alguns drinques. Paramos em um bar, e ele também pediu salgadinhos. O tempo passou e a certa altura a conta já estava salgadinha como o torresmo. Veio a nota, e discutimos sobre o porquê de ele não querer me deixar dividi-la. Foi enfático, e naquela altura, já alegre, confidenciou-me que o fardo de ser judeu lhe era bastante pesado, por isso tinha o costume de pagar todas as contas, para que ninguém o acusasse de mão fechada. Disse que se sentia bem com essas gentilezas, o sentimento atávico de culpa lhe parecia amenizar com isso.

Casou-se em segundas núpcias com sua sereia do rio, Yara, violista, com quem formou um quarteto de cordas. Em meu segundo casamento deu-me de presente uma bela apresentação do grupo. Bufê simples, só para familiares e amigos, mas claro que foi ele quem pagou ao seu pessoal pelo mimo que me dera.

Teatro Santa Isabel, Recife
E contava tantas histórias, mas eram tantas! Uma delas logo me vem na cabeça: Ele, que chegou a morar no Recife, contou-me uma folclórica sobre um recital do lendário virtuose Jascha Heifetz – sim, ele mesmo -, em 1931. O Teatro Santa Isabel segue os padrões e gostos franceses, cultura impregnada na vida recifense. Ainda não existia ar condicionado, e como o calor era enorme certa época do ano, havia algumas aberturas na parte superior, para que o vento refrescasse um pouco a sala.

O lendário Jascha Heifetz
Pois mal Heifetz começou a tocar, um dos ilustres visitantes contumazes do teatro, um morcego, entrou por uma abertura, tirou um voo rasante do gênio do violino, que parou e gritou, em inglês mesmo, “ou eu ou o morcego”, exigindo que os ingressos fossem devolvidos. Tiraram o público, e prometeram expulsar o invasor. Uma hora depois, Heifetz e plateia estavam a postos, e o virtuose terminou o recital profissionalmente, mas seco e frio.

Anos depois, um certo violinista, catedrático da Escola Nacional de Música do Rio, foi fazer um recital no mesmo teatro e lá veio um morcego em rasante. O solista, aproveitando a deixa do mito Heifetz, parou e gritou: “ou eu ou o morcego”! - ao que o público, em coro, bradou “morcego, morcego”. Fim do show.
Kiszely nos deixou em 
2010, mas dos momentos mais divertidos na carreira vários passei com ele.

Violino e viola


domingo, 20 de novembro de 2016

PAI, O ESPELHO DE UM FILHO

Acredito que grande parte da insatisfação e frustração na vida de um filho se deve ao mau exemplo dos pais, especialmente a figura paterna. É natural que o filho quer ser realizado materialmente na vida, mas que tenha a parte financeira como secundária: inverter valores é sempre perigoso. O filho quer se espelhar desde cedo no pai, de pater, que também quer dizer terra, de onde pátria, e essa ligação é tão forte quanto esse simbolismo.

Quem há de se orgulhar de um pai pilantra, corrupto, desonesto, falso? Ora, claro que somente o filho que nele se espelha, e acha que a vida é mesmo regida pela Lei de Gérson: “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo”. Até a personalidade sem rumo do filho de um bom pai pode ser desviada pelas trilhas obscuras da vida, ele se torna pródigo mesmo sob o teto paterno.

Meu avô paterno, Autran Dourado
Minha mãe teve um pai herói, constitucionalista preso e deportado pelo Getúlio, embora detestasse todas as histórias sobre aqueles tempos que passou, ainda criança, longe dele quando mais precisava, tinha ojeriza pelo assunto. Mas, dentro de si, guardava o pai-herói em segredo. Meu pai também foi contemplado com o dele, que começou juiz de direito na pequena Monte Santo de Minas – terra também de Ruth Luz, falecida em 2010, que foi professora do Conservatório de Tatuí e autora do hino da cidade. Meu avô chegou a desembargador em Minas e depois a ministro de Tribunal Superior no Rio. Foi seu pai-herói quem lhe deu o norte, a bússola, e, como diria o Gil, “régua e compasso". 

Biblioteca
Garimpando o imenso acervo de mais de 2.000 peças que, juntamente com os 5.000 livros, pelo testamento de meu pai, vai para a Biblioteca da UFMG, minhas irmãs, no Rio, vêm pescando alguns textos preciosos, que fazem crescer o orgulho e a admiração pela figura paterna – e os efeitos são vivíssimos, mesmo posto que sem a presença dele. Desde discursos para JK a coisas escritas para não serem publicadas, como uma carta pessoal para o Carlos Drummond, um desabafo contra a censura – na qual eu, surpreso, descobri-me citado e elogiado (havia dito a ele que “deveria ter orgulho de ter sido censurado”, e que eu me orgulhava disso também!).


A carta, que só não é auto-incendiável como em filme de ação de Hollywood, era para ser guardada por ele e pelo poeta, confidencialmente, e somente entre eles. Havia nela menções a alguns patrulheiros da literatura, figuras às vezes proeminentes, e até dedo-duro do regime de certa academia, pela qual ele não morria de amores (teria sido essa uma das razões?). Foi um desabafo, e, assim como a conversa tida com Drummond pela manhã, segundo escreve logo ao início, deve ter havido outra ou outras, mas confidência era confidência, de confiar (confidere, em latim), portanto morreria entre os dois. Mas meu pai não a jogou fora. Será que a deixou bem guardada para os filhos um dia terem um retrato do que passou na vida naqueles duros tempos?

Chegada de Eisenhower: croquis
Detalhes da segurança na visita de Eisenhower ao Brasil, recepção ao grande escritor André Malraux, que veio em nome de De Gaulle, discursos como ghostwriter, tudo é historicamente fundamental. Mas o que tem chamado a atenção – e me atraído, nessas descobertas -, talvez tenham sido, mais ainda agora, alguns escritos quase didáticos sobre a arte de escrever, tudo organizado em blocos, alguma coisa talvez publicada na imprensa e muitas inéditas. Entre esses textos, “Dois tipos de romance”, “Realidade e alienação do romance”, “Romance e personagem”, “Técnica narrativa e erros gramaticais” e “Um aprendizado literário e sentimental”, nota-se a preocupação com o didático, e isso valia para quem fosse ler ou para ele mesmo refletir, o que sempre é um meio de se autoaprimorar.

Publicou livros como “Uma poética de romance” (1973), “Uma poética de romance: matéria de carpintaria” (1976), “O meu mestre imaginário” (1982), “Um artista aprendiz” (2000) e “Breve manual de estilo e romance” (2003). Os que se aventuram nessa arte têm nesses escritos relatos da experiência de um homem que publicou seu primeiro livro aos 19 e escreveu até onde a saúde, já complicada, o permitiu. Leu e releu de tudo inúmeras vezes (ao final, vão restar-lhe apenas seis ou sete, disse um dia), de Machado a Bandeira, de Cervantes a Proust e de Faulkner e Joyce, sempre que possível no original.

Era um autor sistemático, metódico, que dizia não acreditar em inspiração (soa como “sopro divino”), mas em ideia súbita: uma vez surgida ‘do nada’, sabe-se lá se por associação, um objeto, uma palavra, uma relembrança dos seus tempos de criança até os 17 anos na pequena Monte Santo, começava a rabiscar notas (taquigrafia espanhola, mais rápida, dizia) em pequenos cartõezinhos, claros como hieróglifos, para mim. Em determinado momento, as anotações já eram a arquitetura de um livro pronto, era hora de começar o trabalho braçal de desenvolvê-lo na velha máquina de escrever. O horário era certo e sagrado, questão de método mesmo, e não apenas por causa do seu ganha-pão como funcionário público, que lhe permitia escrever. Curioso, segundo meu amigo Antonio Ribeiro, que foi aluno de composição do Camargo Guarnieri, mestre maior, é que o gênio de Tietê pensava da mesma forma: inspiração? Sentar e começar, trabalho duro, trabalho metódico.
***
Nunca pensei em ser escritor um dia, apenas escrevo, mas tenho aprendido essas lições como as outras, de vida, que já carrego como a melhor herança. Tudo isso forma um retrato completo, e, como meus avós foram para meus pais, faz dele o meu espelho e herói.



domingo, 13 de novembro de 2016

“TEJE PRESO!”, GRITO AMARGO DE UM REGIME E SUA CORRUPÇÃO

Hélio Pellegrino
“Acorda, amor / eu tive um pesadelo agora / sonhei que tinha gente lá fora / batendo no portão, que aflição / era a dura / numa muito escura viatura...” (Chico). Nunca fui preso, mas tive medo. Levaram amigos, parentes, conhecidos. Hélio Pellegrino, amigo de meus pais, escritor, psicanalista – suas armas eram a caneta e o divã –, morava perto de casa, no Rio, e seus filhos eram nossos amigos. Hélio havia se escondido em um apartamento perto da Lagoa Rodrigo de Freitas, mas caiu em emboscada.

Gen. Sílvio Frota

A esposa do Hélio, Maria Urbana, conseguiu uma audiência com o Gen. Silvio Frota, Chefe do Estado-Maior, conhecido pela sua arrogante grosseria. Tentando um afago no ego do General, Maria disse: “o senhor, como intelectual...”, ao que o Comandante chutou uma cadeira e esbravejou “intelectual não! Sou homem de ação!”

Francisco, ex-agente do SNI
Minha mãe já tinha tido seu pai, constitucionalista, preso e deportado pelo Getúlio, assim como seu avô. Mais tarde, vez do meu primo Frei Betto, em São Paulo. Para ela, ter alguém na família e amigos presos já não era novidade. Até que um dia chegou ao seu lado; o porteiro de nosso prédio no Rio chamou meu pai e disse que lá estava um sujeito, a ordem era encontrá-lo na calçada. Alertou minha mãe que parecia ter chegado a hora dele, e desceu. Um agente secreto “a caráter” o chamou para uma volta. Andando, disse a ele que havia recebido a missão de prendê-lo; conformado, meu pai falou que precisava de roupas. O sujeito disse não,  não vou levá-lo, deixando meu pai surpreso. Depois resolvo tudo, tenho como explicar, disse o policial.

Palácio do Catete, no Rio: sede da Presidência
Diante de tanta benevolência, meu pai perguntou o porquê. O agente disse: lembra aquele sujeito que ficava na portaria do Palácio do Catete? Sou eu. E continuou: minha filha estava desempregada, e eu lhe pedi ajuda para colocá-la em um emprego. O senhor logo me chamou mandando-a se apresentar no Iapetec (o extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões), e ela tomou posse no cargo. Pois eu lhe devo muito, senhor, nunca o prenderia. E foi-se, sem mais. O fantasma rondava intelectuais amigos, e prendia gente como Rita Lee, Bete Mendes e Carlos Heitor Cony, jornalista  (hoje na ABL), preso nada menos que seis vezes, e o escritor Joel Silveira, duas. Passei a peneira ideológica nos meus livros, a pedido de meu pai, mas do episódio da voz de prisão só vim a saber depois, lendo um dos seus raros livros de não-ficção, pois ele havia guardado o segredo a sete chaves.

Sede da escola de música e teatro da Fefierj
Medo tive, sim. Uma das amigas mais chegadas na PUC-RJ, Monica Tolipan, foi levada e passou 15 dias na “geladeira”, apelido da cela fria que torturava sem marcas. Voltou, despediu-se e saiu do país, vindo reaparecer muito tempo depois em Santa Maria (RS). Outra amiga, Maria Luiza, filha da professora de inglês, teve sua casa revirada e foi levada de camburão. Quem não temeria? Desde abordagens com fuzis nas ruas, recebi até ameaça do interventor da Fefierj (hoje Uni-Rio), o Gen. Jayme Ribeiro da Graça, do Serviço Nacional de Informações.  

Aquele regime de terror, para os alienados de hoje, sufocou a corrupção! Ledo engano, aquele foi o período dos maiores assaltos aos cofres públicos da história. Imprensa censurada, judiciário manietado, Congresso pro-forma ou inexistente, grassavam agentes dos serviços de “inteligência” com chantagens e achaques. Era a bandidagem oficial. 

Andreazza, no centro, com Figueiredo (esq., fardado) e Médici (dir.)
O que dizer de figuraças como o tenente-coronel Mário Andreazza, Ministro dos Transportes de Costa e Silva e de Médici, responsável por duas das maiores obras de engenharia do país, a ponte Rio-Niterói e a Rodovia Transamazônica - que continua sem ter sido concluída! -, monumentais ralos de dinheiro quando licitação era “apenas um retrato na parede”, diria o Drummond. O processo licitatório teve alguns raros decretos, mas só foi sacramentado de vez pela lei 8.666/93. E mesmo assim, como é burlado! 

Uma das usinas do monumental Projeto Jari, de Daniel Ludwig
Ministro da Justiça e mentor do regime, o Gen. Golbery, com a posse de Costa e Silva, de quem era desafeto, foi brindado com a presidência de nada menos que a poderosa Dow Chemical, colaboradora do golpe de 1964. Golbery, generoso, havia “cedido” ao americano Daniel Ludwig em 1967 uma área do tamanho do estado de Sergipe para o devastador Projeto Jari, na Amazônia, e a reboque sérios prejuízos ambientais. Foram duas enormes plataformas que foram rebocadas durante 53 dias do Japão e levadas para a Amazônia para um projeto de exploração e destruição.

Abi-Ackel e Figueiredo
O sucessor de Golbery no Ministério foi Ibrahim Abi-Ackel, que depois se envolveu em um milionário esquema de contrabando de gemas preciosas, após o preposto Mark Lewis ser preso na alfândega dos EUA com 10 (hoje 22,5) milhões  de dólares em gemas, em apenas uma de suas viagens. Sócio de empresa americana de pedras preciosas, Ackel transferiu fortuna incalculável para o exterior, mas também saiu livre, leve e solto como era de costume entre seus confrades.

Eliezer Batista e seu filho único e herdeiro, Eike
Eliezer Batista foi presidente da Vale do Rio Doce e comandante do Projeto Carajás, que envolvia estados no Norte do país, fazendo imensa fortuna com transações de alto porte. Seu filho Eike entrou no mundo do comércio de mineração com sucesso aos 24 anos, e ainda jovem chegou a ser um dos homens mais ricos do mundo. Ao Fantástico, da Globo, Eike disse que “cria riquezas do zero” (sic).

Houve ainda o estupro, mutilação e assassinato da menina Aracelli, de apenas oito anos, em 1973, por rapazolas filhos de altas autoridades (o livro “Aracelli, meu amor”, de José Louzeiro, sumiu, na época, mas hoje existe para download. Não dá nome aos bois, claro, troca locais, mas é um relato cruel). O crime dos rapazes, entre eles um futuro alto cargo na República, foi abafado, e notícias só se sabia ouvindo rádios de ondas curtas como a BBC de Londres.

Minha medalha das
Forças Internacionais
Paz, da ONU: orgulho
Hoje, nossas Forças Armadas são guardiãs da democracia e da Constituição. Não querem a volta daquele passado, pensam mais alto. Sabem que lhes cabe um papel de honra na República. Mas os jovens que hoje pedem a volta daquele terrível regime do passado como “solução” não sabem de nada, nem querem saber. Querem apenas 15 minutos de purpurina em suas fantasias.


domingo, 6 de novembro de 2016

BOB DYLAN: CANTO FALADO, PALAVRA CANTADA

Está aberta a sessão do repente. Quem é do canto falado, da palavra cantada, que se apresente na roda.
O som da voz, luz criada por Deus de presente aos homens e animais, veio no princípio, mas logo depois do Verbo, servia para os seres se comunicarem, fazer amigos ou apavorar inimigos e maus espíritos, além de conquistar terras e fêmeas, é a mais antiga e completa forma de expressão. 

Safo

Haja polêmica pela indicação de Bob Dylan para o Nobel de Literatura! Sem adentrar uma discussão que nunca será resolvida, acho  que Dylan às vezes quase que “declama” seus poemas, mais do que canta. (E algumas vezes, letra caudalosa, como a original de Like a Rolling Stone, com 10 páginas. Lembra-me a poetisa grega Safo (© 650 a.C.), e o épico Homero (© 850 a.C.), que meio que declamavam e meio que cantavam, assim como o bardo inglês Shakespeare (1568-1616). Todos adeptos da palavra cantada. Bob tem um pé na onda do "Talking Blues" a exemplo da gravação de Bouchillon (1926), ou das músicas de Woody Guthrie, Mean Talking Blues. Ouça abaixo: 

Canto Gregoriano
O canto gregoriano, meio falado (ad occasum laudabile nomen Domini), usava melismas que traduziam dúvida, súplica e elevava ao estado de contemplação, com longos vaivéns tricotados em poucas sílabas sobre os sons. O responsório da missa católica romana resistiu meio cantado em belíssimo latim, até tempos recentes. Dominus vobiscum; (resp): et cum spiritu tuum.  
Encenação do Pierrot Lunaire
Schönberg, liquidificando a palavra, revelou-a em sua fase abstrata, mas traduziu para a língua de Goethe o texto escrito por Albert Giraud originalmente em francês. Os pontilhismos do Sprechgesang do Pierrô Lunar, de 1912: J'ai les vers luisants pour fortune / Je vis en tirant, comme toi / ma langue saignante(“Tenho os versos brilhantes por sorte / eu vivo mostrando, como você / minha língua cáustica...”)
B´Boying
Esse canto falado e a palavra cantada, de antes da época de nossos vovôs, é desconhecido das gangues b-boying e MC de N.York e da molecada do Vidigal carioca ou Capão Redondo paulistano. Adotam o rap (Rythm And Poetry, “Ritmo E Poesia”), hoje "musiscigenado" até mesmo entre os rappers brasileiros sem conhecer-lhe significado e raízes. Gêneros similares sempre existiram.


Caymmi (Ag. JB)
O rap americano não usa mais do que duas ou três notas. Já o suposto criador do rap que alguns creditam ao Jair Rodrigues “deixem que digam, que pensem, que falem”, é uma balela - depois da introdução segue uma elaborada melodia, que desfila quase uma escala inteira (sem falar no fato de que os autores eram Alberto Paz e Wilson Menezes. É assim mesmo, Jair era o "canário", daí...Virou "dono" da música, outro vício brasileiro). Até “Águas de Março”, do Jobim, também teria sido precursora do rap, ou o divertido Caymmi do “João Valentão é brigão / pra dar bofetão / não presta atenção...”
E os brados populares, como aquele depois da vitória contra a Inglaterra, Copa de 1970? ? (“é canja, é canja, é canja de galinha / a nossa seleção...” – cujo final me abstenho de reproduzir). Ou o marketing político de “Getúlio, Getúlio, Getúlio e João Pessoa”, quem sabe ainda o mais recente “o povo unido jamais será vencido” e afins? Tecem loas até para o rap branco de classe média alta do Gabriel Pensador:  “Existem mulheres que são uma beleza / mas quando abrem a boca (...) Lôrabúrra!”. Aquilo é poesia mesmo, e bem construída.
Kid Morengueira
Moreira da Silva, o Kid Morengueira, frequentador contumaz do bas-fond da Lapa Carioca, era rei da palavra, da métrica perfeita, e contava estórias faladas entremeando partes cantadas em seus sambas de breque. Em “Olha o Padilha” (1952), Kid lembra o delegado carioca “caçador de playboys”. Prenderam o Kid, e, levado de camburão à chefatura, um barbeiro o aguardava. Ordem do “delega” Padilha: “raspa o cabelo desta fera”, humilhação mortal para o malandro “Chico cabeleira”. Para a música e ele entra com o breque: “Ah, ele quer ver minha caveira. Eu, hein? Se eu não me desguio a tempo ele me raspa até as axilas. O homi é de morte”.


Ilustração para L'Histoire du Soldat
Sublimes são os Rezitativ das “Paixões” (João e Mateus, entre 1724 e 1727) de Bach, narrados por um tenor. Canto falado é “A História do Soldado” (1918), de Stravinsky, com texto de Charles Ramuz. Um Fausto travestido de soldado entrega seu violino mágico para o capeta, tudo com direito a princesa, embalado em marchas, tango e ragtime, com tempero de folclore russo.
Aqui no Brasil, temos baiano, que mineiro diz que fala cantando, e temos mineiro, que baiano diz que fala cantando. E os cantadores, os repentistas que cantam falando e falam cantando: “triste ô feliz é o cantadô / qu’eu apanhá prá dá o castigo” (Elomar).
Sly and the Family Stone
E o “funk carioca”, modismo que nada tem a ver com o funk verdadeiro, como o do histórico Sly and the Family Stone? A dança dos piores bailes cariocas é pura catarse, com raras ou quase nenhuma nota, um vomitar de palavras no jargão das gangues de bandidos e traficantes, como no “Tchu Tchuca” do Bonde do Tigrão ("vem aqui com seu tigrão / vou (...) te dar muita pressão"). E há o “proibidão”, linha dos MCs Catra e Sabrina, de apologia à droga, ao crime e ao sexo versão XXX. MC, para quem não sabe, rapaziada, quer dizer Master of Ceremony: made in USA, Yes, Sir!

É hábito brasileiro “criar verdades” a partir de ilações. Essas, como dizia Goebbels, repetidas muitas vezes tornam-se reais para quem as comprar. Essas “verdades” não têm prazo de validade, infelizmente. Uma das mais curiosas delas fala do forró. Afirmam firme e forte que seriam bailes dos gringos, na Base Aérea de Natal, festas aberta para todos – os for all, de onde teria surgido o termo forró, garantem. É? Mas muito antes disso Chiquinha Gonzaga compôs seu “Forrobodó”, palavra que desde a segunda metade do século XIX dividia com forrobodança o nome dos bailes de maxixe (de “sô macho, ixe”), os forrós.  

Meu povo, estamos “à vontademente” redimidos. Em música nada se cria, nada se rejeita, derrepentemente tudo se aproveita. E termina aqui esse desafio de repentista, para que o Congresso Nacional, “no uso das atribuições e atribulações”, decrete, revogadas disposições em contrário:  “fica abolido a partir desta data, a bem público da péssima saúde mental do imaginário nacional, o rigor científico da nossa lorotada musical”.  Estão encerrados desafio e sessão e, concordando ou não, salve o jeito que sempre cantou e falou o bardo Bob Dylan.