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sexta-feira, 31 de julho de 2015

A MÚSICA CONTRA O CRIME

Ensaio (onedirection.com)
No calor das polêmicas sobre responsabilidade criminal e matérias correlatas, nesta segunda-feira (27/07) um assunto me caiu de súbito como luva para um artigo. Aconteceu no Rio Grande do Sul um fato ao qual me reportarei no final, após relatar coisas do passado e minha experiência de 25 anos dirigindo escolas de música. Pois foi essa vivência (entre outras) que me levou a refletir várias vezes sobre a não-interação entre violência e um ambiente musical sadio. Falo não apenas de infrações penais, refiro-me também à convivência social diferenciada dos que vivem a música.

Crianças: uma aula pacífica
Nesses longos anos, não me lembro de ter visto uma vez sequer um caso de violência entre alunos, enquanto hoje, fora do ambiente musical, episódios grotescos são cada vez mais frequentes nas escolas, na falta de limites. A sociedade está cada vez mais permissiva quanto à questão da indisciplina e indiferente aos abusos; moralmente, ao inverso, está cada vez mais retrógrada, uma amarga contradição entre dois lados de uma mesma moeda.

Professora: boletim de ocorrência (extra.noticias.com.br)
São frequentes os noticiários da TV ou postagens nas redes sociais mostrando agressões físicas violentas até contra professores! Disciplina e hierarquia parecem letra morta nessa “nova ordem” obtusa de perigosas consequências. Rasga-se a lei, a indisciplina parece tolerada e, pior, começa a ser aceita como corriqueira. Pais frequentemente tomam partido de filhos agressores e instâncias competentes têm espaço para pleitos descabidos na justiça.

Lang Lang, prodígio
Em música, não se conversa enquanto se toca. Ela mesma é a combinação de sons e pausas, elementos indissociáveis. E o silêncio interior do executante lhe é parte fundamental, é a alma do fazer música, seja no estudo, seja no palco. Quando se toca, tem-se que estar envolvido e submerso em apenas uma coisa: o som, e esse é estado de contemplação quase monástico.

Cristo com Maria (sentada) e Marta
Óleo de Vermeer (1635-1675)
Corto aqui para lembrar o episódio do Evangelho Segundo Lucas (10:40) em que Maria contemplava Cristo quando Marta, irmã dela, reclamou ao Senhor que lhe faltava ajuda nos afazeres domésticos. Jesus respondeu: “Maria escolheu a parte certa, que nunca lhe será tomada”, conforme explicou-me um doutor em teologia da Universidade de Chicago, versado nas línguas bíblicas - a tradução vulgata (popular) “Maria escolheu a melhor parte” parece sugerir que Maria estava acomodada).

Ed. Fundamentos
A contemplação é exercício espiritual milenar que ressurge no mundo cristão em The Cloud of Unknowing (“A Nuvem do Não-Saber”, outro título em português não bem traduzido). O escrito original, de um monge beneditino inglês anônimo do séc. 14, é na verdade um guia para iniciação na meditação e no caminho a ser percorrido rumo ao estágio mais próximo do Altíssimo, a contemplação em transcendência terrena, que nada difere do que sempre foi praticado pelos monges budistas tibetanos.

A boa música exige concentração, e com o progresso do artista o grau de introspecção deve ser crescente. Ao topo do Gradus ad Parnassum (degraus, ou passos, para a perfeição) somente chegam os grandes e abençoados músicos, mas o domínio dessa espiritualidade deve estar aliado a uma técnica adquirida em estudos de rigor quase canônico. Gradus ad Parnassum serve de título para inúmeros trabalhos de estudos musicais, de Clementi (1752-1832) a Debussy (1862-1918).

Sidney Mattos: músico, educador
No início de 2007, participei de um seminário em São Paulo que avaliaria o que vinha sendo produzido com os milhares de jovens do Projeto Guri, um trabalho social como fim e musical como meio, especialmente em áreas mais pobres na capital e no interior. Lembro-me de ter indicado o músico Sidney Mattos, que havia ido parar na França depois de ter participado do GUM (Grupo Universitário de Música) de Gonzaguinha, Ivan Lins e outros então estudantes, ocasião em que o conheci. Sidney ficou paraplégico após uma cirurgia na coluna, e hoje se dedica a uma ONG que trabalha com jovens em uma favela carioca. Nossas palestras e reuniões com orientadores do Guri foram muito proveitosas – não apenas pelo que pudemos acrescentar-lhes, mas também pelo que aprendemos sobre o papel da música nos segmentos mais carentes da sociedade.

Rebelião de internos no CASA 
Impressionou-me de maneira especial o depoimento de pessoas que trabalhavam com jovens internos do CASA (antiga Febem). Nas rebeliões, colchões foram queimados e até mortes aconteceram, mas o que mais chamou a atenção foi que, conforme os monitores, a sala de instrumentos era sagrada, ninguém depredava, era o símbolo do acesso à liberdade via conquista interior. A música lhes servia como elemento mágico!

Complexo Presidiário Frei Caneca (1850-2010)
Salto mais para trás: nos anos 1970, toquei com uma big-band no Presídio Frei Caneca, no Rio (construído em 1850, implodido em 2010). Auditório abarrotado, perguntei a um dos policiais se havia perigo de uma rebelião. Calmo, ele sorriu e respondeu que não, nas apresentações musicais os presos se transformavam. Tudo ocorreu na mais completa normalidade, aplausos, até uma certa euforia para relaxar do confinamento decretado em suas penas.

Dalmir e banda (ajuris.com)
Costurando aqui o primeiro parágrafo deste texto, há dias uma reportagem na TV narrou o caso do juiz Dalmir Franklin de Júnior, de Passo Fundo, no RS, musicista amador na juventude que passou a tirar a toga depois do expediente para aplicar sua experiência musical junto aos próprios jovens por ele mesmo condenados na Vara da Infância e da Juventude: com a ajuda do músico Marcelo Pimentel, o magistrado, baixo elétrico nas mãos e um microfone, tocou acompanhado pela Banda de Percussão Liberdade, formada por jovens apenados.


O comentário da promotora local foi sábio: “todos são iguais perante a música”, e isso pode ser interpretado como uma comunhão entre a Justiça e infratores que ela mesma condena. Os depoimentos daqueles internos e dos que já estavam livres após cumprirem sua pena soaram quase em uma só voz, ilustrando o achado da representante do Ministério Público: “todos são iguais perante a música”. Pois se “todos são iguais perante a lei”, conforme reza o artigo 5º da Constituição, também o devem ser na vida espiritual os que através da música se elevam e se iluminam. A música liberta!

sexta-feira, 24 de julho de 2015

O FESTIVAL DE BESTEIRA QUE ASSOLA O PAÍS

Sergio Porto
Stanislaw Ponte Preta era o pseudônimo adotado por Sergio Porto (1923-1968), jornalista, escritor e compositor (quem não se lembra do memorável “Samba do Crioulo Doido”, título que hoje seria alvo de campanhas ‘politicamente corretas’? Ouça abaixo uma ótima versão dos Demônios da Garoa).


Stanislaw publicou dois volumes do “Febeapá” (1966/1967) - título que tomo emprestado por extenso neste artigo -, uma coleção de besteiras então em voga pelo país, no pós-golpe de 64. Sergio morreu aos 45 anos, pouco antes do recrudescimento da censura e do regime pelo AI-5, e fez de suas troças bem-humoradas ao besteirol nacional de então uma arma camuflada contra a ignorância e a manipulação de informações pela ditadura e seus filhotes. No fim do mesmo ano de sua morte, como homenagem, amigos de copo e caneta (Tarso de Castro, Sergio Cabral e Jaguar) fundaram o histórico "O Pasquim", evocando o tabloide "A Carapuça", de Sergio - que era conhecido boêmio e também antológico autor de frases, como a lapidar:

Febeapá vale ser lido, quase idoso de meio século, especialmente durante esses novos tempos em que o desfile de erros, frases e absurdos linguísticos e políticos tem agredido nossos olhos e ouvidos. Minha homenagem serve como recomendação de leitura, extensiva ao divertido “Tia Zulmira e Eu”. Famosa também era a seleção anual de vedetes em "As certinhas do Lalau", do diário Última Hora. No Febeapá, Stanislaw narra casos hilários, como o de um delegado de BH que mandava prender quem gritasse mais de três palavrões em um estádio, durante uma partida de futebol.

Sófocles (destaque à esquerda, em cima) e uma encenação
Prudentemente, o consumo de vodca foi proibido por um secretário de segurança mineiro para evitar qualquer costume comunista no Brasil. E, pasme, mandaram prender um tal de Sófocles (nascido quase 2.500 anos antes) por considerarem sua peça teatral subversiva. Febeapá, do Stanislaw, é uma coleção de absurdos ditos ou escritos, compilados e organizados com grande humor.

Palácio das Indústrias, então sede da Prefeitura
Hoje, tenho urticária quando leio ou ouço certas tolices de escola primária. Recuso-me a falar “presidenta”, mesmo se estendessem também a flexão a “gerenta”, “superintendenta”, se por decreto fosse possível mudar a ortografia brasileira - assunto já por demais (de)batido. Luiza Erundina, após tomar posse na Prefeitura de São Paulo, em 1989, mandou trocar todas as placas de "Gabinete do Prefeito", na portaria e dentro do Palácio das Indústrias, corrigindo-as para "da Prefeita". Certíssimo: prefeito, governador, deputado e senador flexionam, sim senhor (ou senhora).

Lucy: hominídeo
Quase tive catapora dia desses ao ouvir “mulher sapiens”, quando a palavra latina homo se refere a indivíduo da espécie humana, e não ao sexo masculino, o macho. Esse homo latino nada tem a ver com macho, e sim com a raça humana, daí ser hilário alguém dizer "mulher sapiens".



EUA: arresting a homicidal
   O que me faz arrancar os cabelos é ouvir falarem “feminicídio” (tem até Projeto de Lei aumentando a pena para homicídio de mulher que usa esse nome!). Homo vem do grego homós, significando “o mesmo, igual, comum”, nada tendo a ver com o homem-macho! Se sairmos das línguas latinas, que trouxeram o homo do grego, fica mais fácil entender: em inglês existe man para homem, e homicide para homicídio, nada a ver com homem. Em alemão, homem é Mann, e homicídio é Mord. Igualmente, “homólogo” é “concordante", "a mesma coisa”, e homocêntrico é sinônimo de concêntrico, “que tem o mesmo centro”. Nada de “homem”! Por fim, homocinética é uma peça mecânica cujas partes fazem movimentos iguais, nada a ver com filme ou homossexual.

Honoré de Balzac
Nesse ritmo de verdadeiro estupro linguístico, em breve vão querer dizer “feminissexual”, para se referirem à mulher homossexual. Nas demais línguas latinas, o francês se aproxima do português, com homme e homosexuel. Já em italiano existem diferenças, a exemplo de uomo e omossessuale.  E “homofobia” é aversão por quem é do mesmo gênero, seja masculino ou feminino. 


Mais: homoafetivo(a) é o que tem afeição por (ou se une a) 
pessoa do mesmo gênero, seja do sexo feminino ou masculino. Quando Balzac (1799-1850) escreveu La Comédie Humaine referiu-se a toda a humanidade. Mulheres e homens.

Rubens (1577-1640): Adão e Eva
Essa visão promíscua e superficial da nossa língua, além de levantar ilações absurdas sobre machismo onde ele não existe, leva ainda a outras aberrações. Há quem questione o porquê de se falar “pátria” e não “mátria” (machismo, devem pensar os órfãos de melhores estudos). Pois pátria vem do latim pater (terra, solo), e só passou a significar país na Idade Média. Pelo contrário, é palavra feminina, nada tendo a ver com pai ou homem. “Patrimônio”, da mesma raiz, vem de terra, propriedade, ideia da antiguidade, e nada tem de machismo: as propriedades de um homem e ou de uma mulher são seu patrimônio. As palavras latinas pater e mater têm o mesmo sentido de Adão e Eva em hebraico, Adamah e Avaah, que significam terra e vida (a terra fertiliza a vida, daí os nomes do primeiro casal sobre a terra, simbolizado nas antigas escrituras).

Reedição do Código Civil de 1916
O antigo Código Civil chamava “pátrio poder” (em latim, patria potesta) o que hoje se chama “poder familiar”, direito que é exercido tanto pelo homem quanto pela mulher – ou apenas um deles, conforme a causa da separação, caso haja risco para a integridade física ou psicológica da criança. A perda desse direito é decretada em juízo juntamente ou após a perda da guarda do menor por uma das partes.  A origem arcaica da expressão é dos tempos em que a criança era uma espécie de propriedade dos pais. Aquele “pátrio poder” nada tinha a ver com o sexo de seu titular, a justiça podia concedê-lo em favor da avó da criança, caso julgasse que nenhum dos genitores teria como exercê-lo, ou por risco iminente ao infante - e avó não é pai nem mãe, para lembrar o óbvio ululante!

Portugal, terra patriota, tem algumas particularidades inteligentes em sua rica língua de mãe-pátria (que bela expressão!), o termo foi trocado em 2008 por “responsabilidades parentais”. Pois patriota é quem ama sua pátria, terra, torrão, solo. Sejamos patriotas e respeitemos o idioma de nossa mãe gentil: 

Pátria amada (no feminino!), Brasil!


sexta-feira, 17 de julho de 2015

A PAIXÃO SEGUNDO CLARICE LISPECTOR

Nunca se falou tanto em Clarice Lispector como agora. É uma das recordistas de frases nas redes sociais, incluindo as que ela nunca escreveu, muitas com espírito de autoajuda (a última coisa que ela escreveria!). Pensadora poliglota (dominava seis idiomas!), cultíssima, o sofrimento que transparecia linha após linha em seus livros tinha coloração emocional bastante pesada, que já vinha alimentada desde sua infância viajante com a família judaica. Ao lado de Saul Bellow, Anne Frank e Franz Kafka, é considerada por muitos como um dos grandes nomes entre os escritores judeus. A origem e trajetória de vida delineiam a personalidade literária de Clarice.

Nascida em 1920 na Ucrânia, seu pai obteve na Hungria o passaporte alemão para a família, após um périplo para fugir. De Hamburgo, veio para Recife, logo após a I Guerra Mundial. Escreveu uma peça teatral (“Pobre Menina Rica”) aos tenros dez anos de idade. Mudou-se para o Rio de Janeiro ainda adolescente, e logo ingressou na Faculdade Nacional de Direito (hoje, da UFRJ). Entregou-se ao seu enorme talento literário, escrevendo suas primeiras matérias para a imprensa e alguns pequenos contos. Não tardou em se aventurar em um primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem” (1946), um monólogo interior como outros de sua época, assim como meu pai, Autran Dourado, com quem ela compartilhou uma amizade com profunda cumplicidade intelectual.

Lucio Cardoso: escritor, jornalista, pintor e grande amigo
Identificava-se com escritores brasileiros, a exemplo de Lucio Cardoso, jornalista como ela, que a conheceu na redação da Agência, e que como ela também tinha um talento nato para a pintura. Mesmo após sofrer um AVC (1962), lembro-me do dia em que, ainda menino, fui com meu pai à casa do Lucio, e fiquei impressionado ao vê-lo criar um óleo com um pincel entre dedos dos pés. Entre Lucio e Clarice havia uma paixão espiritual, filosófica e intelectual - e apenas isso, já que ele assumira sua posição de homossexual.

Clarice e Maury em Veneza
Clarice conheceu um diplomata, Maury Valente, com quem se casou e foi residir nos EUA. Enquanto a FEB se unia aos aliados na luta contra o nazismo, foi para a Itália, onde colaborou em um hospital para feridos de guerra. Já madura em seus escritos, debruçou-se sobre a forma mais complexa, que em música chamaríamos ‘grande forma’: o romance. Desse novo tempo nasceu sua obra maior, a marcante “A Paixão Segundo G. H.” (1964). No livro, o personagem, de quem Clarice só menciona as iniciais, entra em crise após ter esmagado uma barata, e a partir dali se constrói uma figura envolta em uma espécie de terror, um turbilhão neurótico esmiuçado em capítulos cuidadosamente alinhavados e concatenados. Ao final, vendo uma gosma branca sair da casca da barata, G. H. a devora. É o abandono de uma personalidade, de sua existência como indivíduo no mundo.

Caricatura de Kafka como sua "barata"
Uma alusão ao enorme inseto em que Gregor, personagem de Kafka em “A Metamorfose”, se transformou? Pois Kafka foi uma das maiores influências de Clarice! As iniciais G. H. poderiam ser uma referência ao “Gênero Humano”, segundo alguns estudiosos. Em tempo: a “Paixão” de Clarice não é a dos amantes, é a do sofrimento, como as que Bach compôs para o calvário de Cristo: “Paixão Segundo Mateus” e “Segundo João”. (Veja e ouça abaixo o coro final da Paixão Segundo Mateus, de J. S. Bach)








Clarice e Pedro, com um mês e um dia
Vítima de um incêndio em seu apartamento provocado por um cigarro aceso ao adormecer enquanto descansava na cama, Clarice amargou o sofrimento das sequelas até sua morte, em 1966, no auge da maturidade literária. Antes disso, outro grande dissabor: a transferência de seu marido para Berna, na Suíça, onde nascera seu filho mais velho, Pedro (1948). Pedro foi mais tarde diagnosticado esquizofrênico com surtos agressivos frequentes e complicados, e mais esse fardo impusera à escritora uma grande dor e um sentimento de culpa sem fim. Nada mais lhe agradava e crescia-lhe a angústia, o que a levou a separar-se de Maury por falta de condições psicológicas e pelas mudanças constantes de país impostas pelo Itamaraty.

Alguns de seus livros foram temas de filmes, como “A Hora da Estrela”, de Suzana Amaral (prêmio da crítica no Festival de Berlim), trama de poética visualmente deslumbrante, introspectiva como Clarice, sua pessoa e seu livro. A notoriedade de Clarice pela profundidade de sua literatura, seu pensamento e seu estilo originalíssimo nunca a levaram à fama, como aliás sempre acontece no Brasil com a melhor literatura. Mas no exterior seus livros foram traduzidos em 93 edições. Benjamin Moser, escritor nascido em 1976 nos EUA e radicado na Holanda, apaixonou-se pela obra de Clarice e publicou Why this World: a Biography of Clarice Lispector (que no Brasil chamou-se "Clarice, uma Biografia”, versão que omite o elemento primordial do título em inglês: “Por que este Mundo”, uma pergunta em forma de afirmação).

Clarice (segunda à esquerda, em cima) e escritores.
Autran Dourado, à direita, embaixo.
Moser consegue fazer um retrato da vida intensa, conturbada e sofrida de Clarice, que já era revelada muitas vezes por seu estilo de vida e em palavras explícitas, como na dedicatória de uma pintura com que presenteou meu pai, em 1976: “Clarice Lispector, sua e de Lucia (N. do A.: minha mãe), Clarice. Você já conheceu como eu o desespero. Mas é um erro, tudo vai dar certo”.  Moser escreveu: “Autran Dourado, uma dos mais importantes intelectuais e novelistas brasileiros, lembra-se de longos domingos com Clarice e intermináveis discussões filosóficas que iam de Spinoza a Nietzsche”. E prossegue: “Em meados dos anos 1970, Clarice era tida como um gênio excêntrico, tanto quanto isolada da sociedade, que havia assumido lendárias proporções. Autran e Lucia Dourado convidavam-na para almoçar quase todos os domingos. No final da tarde, sentada no apartamento deles, ela tomava uma pílula para dormir e começava a retirar suas joias, para não adormecer com suas pulseiras e brincos. Eles a colocariam em um táxi e a despachariam para casa, onde às vezes chegava dormindo profundamente” (Trad. livre do A.).



“Aquela rara pessoa que se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Wolf” (Moser)

“Um grande livro...Clarice Lispector é um dos grandes gênios ocultos da literatura do século 20” (Colm Tóibín)

“Glamurosa, culta, espiritual, Lispector é uma emblemática artista do século 20 que pertence ao mesmo panteão de Kafka e Joyce” (Edmund White)

A vida de um artista é indissociável de sua obra. 
Clarice era ela própria sua grande obra viva. 

sexta-feira, 3 de julho de 2015

UMA NOITE NA TUNÍSIA

Charlie Parker e Dizzie Gillespie
“A Night in Tunisia” é talvez um dos mais tocados e gravados standards de jazz da história. Foi composto em meados dos anos 1940 pelos lendários Charlie “Bird” Parker, saxofonista, e Dizzy Gillespie, trompetista. Sarah Vaughan, uma das grandes damas do jazz, criou o subtítulo “Interlude”, quando a gravou (1953) com letra escrita por Ella Fitzgerald.
Mais de 500 CDs que incluem a música foram gravados em versão instrumental ou com voz, por estrelas como Art Blakey, Bobby McFerrin, Count Basie, Miles Davis, Stan Getz, Ray Brown e muitos outros, com ou sem a letra (T. livre do A.): “A lua é a mesma lua que você vê lá em cima / incandescente com sua luz ao frescor noturno / mas quando brilha à noite, na Tunísia / ela ilumina como nunca brilhou igual”. A ritmada linha do baixo na introdução, uma sequência harmônica que é campo rico para improvisação, sob medida para o saxofone e o trompete, instrumentos dos compositores Parker e Gillespie.

O fascinante Zembra Resort
A inspiração do tema remete ao famoso luar de Tunis, capital da Tunísia, que lá é imbatível, como também o brilho do sol, dizem os que conhecem o país. Por isso mesmo, e por suas praias lindas, o país de pouco mais de 10 milhões de habitantes tornou-se um resort confortável para os europeus: o mais setentrional país da África tem sua costa no Mar Mediterrâneo, a apenas 55 minutos de voo (370 Km) de Roma, na Itália.
O jornal The New York Times, em sua seção de turismo, diz que o país africano “é conhecido por suas praias douradas, tempo ensolarado e grande luxo a preços convidativos” (voando de Roma para Tunis, um casal hospedado em um belo hotel 4 estrelas vai pagar R$ 2.800,00 por pessoa, por uma semana).
O cenário paradisíaco contrasta com os 40% de terra em pleno deserto do Saara, e a arquitetura moderna casa com respeito com as heranças do passado, o berço da civilização de Cartago, em Tunis, criada há quase 3 mil anos pelos fenícios.
Ruínas de Cartago
Tomada pelo Império Romano no século 3, constituiu-se domínio da dinastia Husainid (1705), até sua ocupação pela França (1881), país de que a Tunísia se declarou independente em 1956. Há bairros judeus e muçulmanos em Jerba, além de preciosas ruínas históricas. Tudo isso faz do turismo uma atraente fonte de arrecadação do país, com bom IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), em 90º lugar.
Anfiteatro El Jem, construído pelos romanos
Imperial Marhaba Hotel, local da tragédia
No dia 26 de junho de 2015, o luxo e as belas praias foram esquecidos, apagaram-se a lua e o sol ímpares da Tunísia, e ninguém ouviu os solos de Parker e Gillespie ou a voz de Fitzgerald. No Hotel Imperial Marhaba, na bela cidade de Sousse, leste do país, 38 pessoas, em sua maior parte vindos de diversos países da Europa, foram fuziladas, tombando diante de um cruel atentado terrorista que também feriu pelo menos 36 pessoas.
Pânico durante fuga do ataque
Um dos assassinos (não se sabe ao certo quantos mais), portando um fuzil russo Kalashnikov, foi morto no local. O prédio hospedava 565 turistas, quase todos europeus, e vídeos amadores registraram o tiroteio e a fuga em massa: tudo era pânico, terror e morte. (Saindo um pouco do tom da música, França, Kuwait e Síria também foram alvos dos violentos ataques).
Formação armada do Estado Islâmico
Uma luz de alerta já havia sido acesa: em 15 de março de 2015, pouco mais de três meses antes da tragédia de Sousse, terroristas invadiram o Museu Nacional Bardo, mantendo turistas como reféns e matando 22 pessoas e ferindo outras 50, com uma ameaça: “voltaremos!”. O Estado Islâmico e a organização Levant (ISIL) reivindicaram a autoria do ataque, mas a polícia local credita o assassinato em massa ao Okba Ibn Nafaa, espécie de braço do al-Qaeda – esta última, responsável por muitos ataques, a começar pelo assassinato em massa e destruição das monumentais Torres Gêmeas de NY, no voo suicida de 2003 conhecido como 9/11, data que se tornou sinônimo de terror. Ainda antes da Tunísia, no dia 7 de janeiro deste ano, 12 pessoas foram assassinadas cruelmente em Paris, na sede do jornal de humor e crítica Charlie Hebdo.
Pregação de Maomé
O que está em cena, neste momento, são o crescimento e o avanço assustadores do Estado Islâmico. Sob esse título, terroristas alucinados maculam o islamismo, religião de gente que, em sua maioria, segue o bem e os pensamentos de seu grande líder, Maomé, cujo livro sagrado, Alcorão, não difere muito do Antigo Testamento e do Torá judaico. Na insanidade e ignorância, possuídos por um fanatismo demoníaco e animalesco, esquecem-se das palavras de Maomé simplesmente para matarem, sempre em nome de qualquer coisa que nem de longe é religião.

"O Corão é um livro de paz, é um profético livro de paz. Isto (o terrorismo) não é Islamismo". Papa Francisco, 1º de julho, ao Daily Mail, do Reino Unido. 
E. I. destruindo o passado histórico
E essa ira descabida não se volta apenas contra o ocidente, ela quer derrubar símbolos históricos, as ruínas de seu próprio passado, acumulando um bárbaro conjunto de crimes contra a humanidade. Espera-se que os líderes mundiais se unam para, com urgência, darem fim a uma organização criminosa digna de figurar entre os atores dos piores episódios de barbárie da história da humanidade. Na legítima defesa de um mundo que se quer livre e em comunhão com o bem.
Praia de Sousse
Quando a paz voltar a reinar na Tunísia, poderemos tornar a sorrir ao se reacenderem a lua e o sol, suas praias e sua beleza. E que soe alto a voz de Ella Fizgerald (T. livre do A.): “palavras não bastam para contar uma história / exótica demais para ser contada / cada noite, cada vez mais profunda / em um mundo de eras  arcaicas. / As atenções do dia parecem esvair-se / o final do dia traz conforto, / cada linda noite na Tunísia / onde as noites são plenas de paz”.