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sexta-feira, 17 de julho de 2015

A PAIXÃO SEGUNDO CLARICE LISPECTOR

Nunca se falou tanto em Clarice Lispector como agora. É uma das recordistas de frases nas redes sociais, incluindo as que ela nunca escreveu, muitas com espírito de autoajuda (a última coisa que ela escreveria!). Pensadora poliglota (dominava seis idiomas!), cultíssima, o sofrimento que transparecia linha após linha em seus livros tinha coloração emocional bastante pesada, que já vinha alimentada desde sua infância viajante com a família judaica. Ao lado de Saul Bellow, Anne Frank e Franz Kafka, é considerada por muitos como um dos grandes nomes entre os escritores judeus. A origem e trajetória de vida delineiam a personalidade literária de Clarice.

Nascida em 1920 na Ucrânia, seu pai obteve na Hungria o passaporte alemão para a família, após um périplo para fugir. De Hamburgo, veio para Recife, logo após a I Guerra Mundial. Escreveu uma peça teatral (“Pobre Menina Rica”) aos tenros dez anos de idade. Mudou-se para o Rio de Janeiro ainda adolescente, e logo ingressou na Faculdade Nacional de Direito (hoje, da UFRJ). Entregou-se ao seu enorme talento literário, escrevendo suas primeiras matérias para a imprensa e alguns pequenos contos. Não tardou em se aventurar em um primeiro livro, “Perto do Coração Selvagem” (1946), um monólogo interior como outros de sua época, assim como meu pai, Autran Dourado, com quem ela compartilhou uma amizade com profunda cumplicidade intelectual.

Lucio Cardoso: escritor, jornalista, pintor e grande amigo
Identificava-se com escritores brasileiros, a exemplo de Lucio Cardoso, jornalista como ela, que a conheceu na redação da Agência, e que como ela também tinha um talento nato para a pintura. Mesmo após sofrer um AVC (1962), lembro-me do dia em que, ainda menino, fui com meu pai à casa do Lucio, e fiquei impressionado ao vê-lo criar um óleo com um pincel entre dedos dos pés. Entre Lucio e Clarice havia uma paixão espiritual, filosófica e intelectual - e apenas isso, já que ele assumira sua posição de homossexual.

Clarice e Maury em Veneza
Clarice conheceu um diplomata, Maury Valente, com quem se casou e foi residir nos EUA. Enquanto a FEB se unia aos aliados na luta contra o nazismo, foi para a Itália, onde colaborou em um hospital para feridos de guerra. Já madura em seus escritos, debruçou-se sobre a forma mais complexa, que em música chamaríamos ‘grande forma’: o romance. Desse novo tempo nasceu sua obra maior, a marcante “A Paixão Segundo G. H.” (1964). No livro, o personagem, de quem Clarice só menciona as iniciais, entra em crise após ter esmagado uma barata, e a partir dali se constrói uma figura envolta em uma espécie de terror, um turbilhão neurótico esmiuçado em capítulos cuidadosamente alinhavados e concatenados. Ao final, vendo uma gosma branca sair da casca da barata, G. H. a devora. É o abandono de uma personalidade, de sua existência como indivíduo no mundo.

Caricatura de Kafka como sua "barata"
Uma alusão ao enorme inseto em que Gregor, personagem de Kafka em “A Metamorfose”, se transformou? Pois Kafka foi uma das maiores influências de Clarice! As iniciais G. H. poderiam ser uma referência ao “Gênero Humano”, segundo alguns estudiosos. Em tempo: a “Paixão” de Clarice não é a dos amantes, é a do sofrimento, como as que Bach compôs para o calvário de Cristo: “Paixão Segundo Mateus” e “Segundo João”. (Veja e ouça abaixo o coro final da Paixão Segundo Mateus, de J. S. Bach)








Clarice e Pedro, com um mês e um dia
Vítima de um incêndio em seu apartamento provocado por um cigarro aceso ao adormecer enquanto descansava na cama, Clarice amargou o sofrimento das sequelas até sua morte, em 1966, no auge da maturidade literária. Antes disso, outro grande dissabor: a transferência de seu marido para Berna, na Suíça, onde nascera seu filho mais velho, Pedro (1948). Pedro foi mais tarde diagnosticado esquizofrênico com surtos agressivos frequentes e complicados, e mais esse fardo impusera à escritora uma grande dor e um sentimento de culpa sem fim. Nada mais lhe agradava e crescia-lhe a angústia, o que a levou a separar-se de Maury por falta de condições psicológicas e pelas mudanças constantes de país impostas pelo Itamaraty.

Alguns de seus livros foram temas de filmes, como “A Hora da Estrela”, de Suzana Amaral (prêmio da crítica no Festival de Berlim), trama de poética visualmente deslumbrante, introspectiva como Clarice, sua pessoa e seu livro. A notoriedade de Clarice pela profundidade de sua literatura, seu pensamento e seu estilo originalíssimo nunca a levaram à fama, como aliás sempre acontece no Brasil com a melhor literatura. Mas no exterior seus livros foram traduzidos em 93 edições. Benjamin Moser, escritor nascido em 1976 nos EUA e radicado na Holanda, apaixonou-se pela obra de Clarice e publicou Why this World: a Biography of Clarice Lispector (que no Brasil chamou-se "Clarice, uma Biografia”, versão que omite o elemento primordial do título em inglês: “Por que este Mundo”, uma pergunta em forma de afirmação).

Clarice (segunda à esquerda, em cima) e escritores.
Autran Dourado, à direita, embaixo.
Moser consegue fazer um retrato da vida intensa, conturbada e sofrida de Clarice, que já era revelada muitas vezes por seu estilo de vida e em palavras explícitas, como na dedicatória de uma pintura com que presenteou meu pai, em 1976: “Clarice Lispector, sua e de Lucia (N. do A.: minha mãe), Clarice. Você já conheceu como eu o desespero. Mas é um erro, tudo vai dar certo”.  Moser escreveu: “Autran Dourado, uma dos mais importantes intelectuais e novelistas brasileiros, lembra-se de longos domingos com Clarice e intermináveis discussões filosóficas que iam de Spinoza a Nietzsche”. E prossegue: “Em meados dos anos 1970, Clarice era tida como um gênio excêntrico, tanto quanto isolada da sociedade, que havia assumido lendárias proporções. Autran e Lucia Dourado convidavam-na para almoçar quase todos os domingos. No final da tarde, sentada no apartamento deles, ela tomava uma pílula para dormir e começava a retirar suas joias, para não adormecer com suas pulseiras e brincos. Eles a colocariam em um táxi e a despachariam para casa, onde às vezes chegava dormindo profundamente” (Trad. livre do A.).



“Aquela rara pessoa que se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Wolf” (Moser)

“Um grande livro...Clarice Lispector é um dos grandes gênios ocultos da literatura do século 20” (Colm Tóibín)

“Glamurosa, culta, espiritual, Lispector é uma emblemática artista do século 20 que pertence ao mesmo panteão de Kafka e Joyce” (Edmund White)

A vida de um artista é indissociável de sua obra. 
Clarice era ela própria sua grande obra viva. 

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