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sábado, 16 de junho de 2018

A NECESSIDADE DO REGENTE DE ORQUESTRA



Muitos leigos perguntam se o maestro é mesmo necessário, especialmente quando veem orquestras de câmara conduzidas por seu violino solista, costume muito antigo. Um bom conjunto de câmara, a depender da peça, nas músicas que não abusam de alterações de andamento, como complicados accelerandi ou ritardandi (o inverso), pode tocar parte do repertório sozinho. Mas para a maior parte das músicas que vão do pico do romantismo aos dias de hoje a coisa é bem mais complicada. Ígor Stravinski (1882-1971) disse que a carreira dos regentes na maior parte das vezes se faz com obras do período romântico. E que as músicas do chamado período clássico ‘eliminam’ o regente, ele não é lembrado.

Orquestra de Câmara: sem regente
Houve tentativas de extinguir a figura do regente, e várias nos anos 1920, na então recém-criada União Soviética do igualitarismo sedutor Marx de e Lênin. Conforme lembrou o amigo, compositor e regente Aylton Escobar, logo alguém se sobressaía e os olhos dos colegas a ele se voltavam nas entradas – gestos que indicam o início de uma peça, uma seção, ou alguma alteração de andamento. Também na orquestra, como é da natureza humana, uns eram mais do que os outros. Nos grandes grupos, contudo, a figura do regente teve de prevalecer, impondo-lhes disciplina musical na complexidade.

Frank Battisti: quando a orquestra aplaude o maestro de pé (Xpress)
Bernstein imprimia sua personalidade sacudindo a batuta e às vezes dando pequenos saltos. Osawa chegava a se agachar nos pianíssimos, enquanto para os ataques fortíssimos reservava um gesto, às vezes com ambas as mãos, que eu apelidei de ‘golpe do machado’. Exemplo de boa regência controlada vi em 1980, tocando em uma master class do maestro Frank Battisti, que aliás já esteve no Brasil, em Tatuí. A demonstração foi dirigida a um jovem que tentava em vão fazer com que os músicos do Wind Ensemble da NEC iniciassem perfeitamente juntos o Pássaro de Fogo, de Stravinsky. Disse-lhe que não precisava tanto da batuta – ali, até olhos e sobrancelhas eram mais importantes. Battisti pegou-lhe a batuta e com um discretíssimo golpe, que eu diria de mestre, iniciou a peça com absoluta precisão. Ah, e além dos regentes econômicos há os franciscanos, de mínimos gestos.

Zukermann, o solista regente
O grande violinista, violista e dublê de regente Pinchas Zukermann, dono de cachês altíssimos, liderava a orquestra de Saint-Paul e costumava solar nos concertos. Bastava um gesto do corpo, um olhar, um movimento de arco. Sério no palco, meio moleque fora dele, não hesitou em tirar seu violino do estojo e tocar em plena rua de Vancouver - com a brincadeira, auferiu uns trocos e degustou um belo frango assado.  

Giuseppe Verdi
Voltando aos primórdios da regência, desde Lully (1632-1687) maestros tornaram-se assunto saboroso na língua áspera dos instrumentistas. Por essas e outras, o grande compositor de óperas italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) costumava referir-se à orquestra, à boca pequena, como la divina canaglia, lembrando a Divina Comédia (séc. XIV) de seu conterrâneo Dante. Episódios reais muitas vezes tendem a se transformar em anedotas, rapidamente incorporadas ao repertório da classe, seja um fato real, com os coloridos de praxe, ou os que talvez nunca existiram e surgem como fato em conversas aqui e ali, sabe-se lá se ‘verdade verdadeira’, a vera veritas. Um conhecido maestro, em um ensaio, reclamou da afinação da terceira trompa. O primeiro do naipe, rindo, disse maestro, a terceira faltou hoje. Diz a lenda que o maestro retrucou dizendo-lhe que então quando o terceiro viesse era para avisá-lo (fazendo troça, mas meio encabulado pela gafe. Pior o remendo do que a sonata).

Bach em família 
Já em tempos distantes, Johann Sebastian Bach não se conformava com murmurinhos crueis, prática comum a nove entre dez músicos de orquestra. E ficava uma onça quando sabia que o assunto eram suas divinas habilidades musicais. Ora, resmungou, eu trabalho como um operário! (A ele se reputa a autoria da frase ‘a música é 10% inspiração e 90% expiração’). Admirável que ele tenha feito tudo o que fez como genial e prolífica formiguinha da música e à parte ainda duas dezenas de filhos, legando-nos numerosa obra musical. E descendentes.

Caymmi: "nas ondas verdes do mar"
Ao contrário de Bach, o genial baiano Dorival Caymmi deixou-nos os talentos de Nana, Dori e Danilo e compôs pouco mais de uma canção por ano de vida. Cantava ‘365 igrejas a Bahia tem’ – se a vida é um dia após o outro, daria para passar um ano inteiro a percorre-las. Webern, nascido em 1873, também foi um compositor para lá de econômico - o conjunto de sua obra não soma três horas de duração, caberia em pouco mais de dois CDs. Morreu em 1945 baleado por um soldado americano, vítima da perseguição a um genro seu procurado por atuar no mercado negro, durante a ocupação aliada da Áustria.

Felix Mendelssohn
Ao revés da produção econômica, retornamos ao prolífico  Bach, autor de algumas obras fartamente caudalosas, como suas duas Paixões: Segundo Mateus e Segundo João. A primeira delas possui nada menos que 78 seções, e em uma das vezes em que toquei houve intervalo para jantar, fazendo daquela tarde-noite um concerto extenuante, mas compensador para o espírito e o estômago. Graças à Paixão Segundo Mateus que Bach, que andava quase esquecido, foi redescoberto por Felix Mendelssohn (1809-1847), que a regeu depois de quase dois séculos. Um crítico, sabe-se lá se por causa do antissemitismo que grassava na época, escreveu, destilando seu veneno mais desaforado, que aquela ‘descoberta’ da longuíssima Paixão de Bach terminou de matar Cristo para lustrar a vaidade de Mendelssohn.

sábado, 2 de junho de 2018

REGER, VERBO INTRANSITIVO

A batuta

Mais vulneráveis aos olhos e línguas do público e dos músicos, é natural que exista um amplo folclore acerca de regentes, e quanto maior a exposição, melhor alvo ele se torna. A história da regência não é  muito curta, mas a trajetória de seus protagonistas costuma ser  bastante rápida.
Leonard Bernstein
No século 13, Elias Solomon, em Tracatus de Musica sugeria ao líder do coro apontar  o erro de alguém sem que se percebesse quem era o cantor de que falava, uma tímida psicologia regencial. No século 15 surgiu o ‘sol-fa’, e uma partitura enrolada era dirigida por quem se achava mais competente para marcar. Ornithopachus, no final daquele século, recomendou ao cantor-líder a suavidade das mãos. No século 18, o alemão John Böhr sugeriu o dedo indicador ou... um pedaço de madeira. Modernamente, as técnicas de direção, bem  como aqueles sinais e gestos, são absolutamente individuais, existindo apenas algumas poucas convenções comuns entre os grandes (amadores fazem maquinalmente o trivial). Divergem em muitas coisas, até quanto ao uso da batuta, a varinha condão. Enquanto Toscanini e Bernstein a manobravam com habilidade, Karajan e Kurt Masur optaram pela expressividade das mãos. 
Kurt Masur
Alguns candidatos ao posto, ao largarem seus instrumentos para alçar voos mais altos na carreira de regente, eram jocosamente chamados batteurs de mesures, ou ‘batedores de compassos’ (franceses adoram criar expressões para todas as finalidades). Algo como o que os músicos do filme Ensaio de Orquestra, do Felini, procuraram demonstrar: sai regente, entra um metrônomo gigante. Pode-se ver a história do regente do ponto de vista geométrico: começa com o líder de pé e os músicos sentados, depois, juntando-se a eles. Enfim, levanta-se novamente, deixando-os sentados, caminho que levou bom tempo até se consolidar de vez. Logo, o regente viu que não estava ‘elevado’ o suficiente: teve de pedir um estrado - o pódio! - para de cima melhor exercer seu poder. Na correlação de forças musical a ascensão do regente, e, ao revés, a queda do poder da orquestra ou coro foram inevitáveis. Ele era o dono da sabedoria (quando não, bastava-lhe ser protéjé de um governante ou mecenas poderoso).
Regente ensaiando no fosso
Com a ópera, o regente teve de descer ao fosso (apertada clausura invisível à plateia) sob o palco onde a cena se desenrola. O regente, a cabeça um pouco mais acima no nível do fosso, tinha de fazer gestos um pouco mais espalhafatosos para ser percebido pelo público. A consolidação da ‘geometria orquestral’ de hoje é recente, pois até 1905, na Gewandhaus de Leipzig, os músicos ainda tocavam de pé! As orquestras atuais, salvo alguns detalhes, parece terem sido congeladas em algum lugar do passado, perdendo a constante mutação anterior. Daqui para a frente, qualquer mudança maior, se acontecer, deve demorar muitos, longos anos.
A simpatia dos músicos é reservada aos poucos regentes 'eleitos',  unge apenas os prediletos. Franz Strauss (1822-1905), trompista e pai do Richard Strauss de Assim Falou Zaratustra (popularizada no filme 2001, Odisseia no Espaço), era conhecido por sua ojeriza à batuta. Certa vez, aproximou-se de um maestro convidado e disse-lhe que desde o momento em que ele entrara no palco, e antes mesmo de subir ao pódio, já pelos passos sabiam quem iria mandar: ele ou os músicos (naquele caso, foi o conjunto). Orquestra é como um potro bravio: no pisar do peão no estribo ele já se sabe quem vai levar quem.
Birgit Nilssen
Entre os motivos mais comuns de desavenças entre músicos e regentes estão os tempos - tempi, em italiano. Acostumados com certo andamento, instrumentistas volta e meia têm alguma rusga com o chefe. (O spalla do Municipal do Rio contou uma nota de jornal há muitos anos, teve séria discussão com o regente, e saiu do sério. O imbróglio só se encerrou com o grande Pareschi atirando seu precioso instrumento no chão, abandonando o ensaio). Nem as estrelas são poupadas. A lendária cantora sueca Birgit Nilssen teve uma saia-justa com o poderoso Herbert von Karajan. No ensaio, a solista disse ao maestro que aquele andamento estava muito lento. Karajan olhou-a e perguntou quem pagava quem, ele ou ela. E nem esperou resposta, continuou do jeito que queria.
No folclórico repertório de esquisitices da música, mesmo fatos reais às vezes adquirem status de anedota. Tal como um episódio da vida do compositor, violinista e líder de orquestra Jean Baptiste Lully (1632-1637), da corte de Luís XIV, talvez o ‘pai’ da regência com, digamos, uma batuta. Chegado a uma comédia, foi parceiro e amigo de Molière, autor de peças de teatro como O Burguês Fidalgo, e teve seus dias tragicômicos. A Lully também se credita a organização da direção dos arcos dos instrumentos, antes sem rumo e cada qual em uma direção. Depois dele, os movimentos tornaram-se belas ondas sinuosas, homogêneas como em um exercício de Tai-chi-chuan.
A 'bengalada' de Lully
Praxe da época, Lully comandava a orquestra de seu lugar de primeiro violinista, e se irritava com a dificuldade de segurar o andamento correto de alguma passagem: seus comandados atravessavam caoticamente o ritmo com mínimas, semínimas e colcheias que, rebeldes, teimavam em escapulir dos instrumentos. Parou de tocar, e como era coxo, usou seu cajado para bater o tempo no chão, cada vez com mais força. Pronto! Estava definitivamente inventado o regente com batuta. Mas um desses golpes de seu “bengalão” caiu errado e acertou-lhe o pé, ferindo-o seriamente. Talvez primeiro caso conhecido de ‘olho gordo’ de orquestra contra regente, a lesão no pé gangrenou, e por causa dela dizem que Lully morreu coisa de quinze dias depois.
[O título no início deste artigo é inspirado em Amar, Verbo Intransitivo, do Mário de Andrade. Finalizo com um abraço a todos os amigos regentes]